Isac Nóbrega/PR

Os poderes de Michelle

Do terceiro andar do Planalto, a primeira-dama influi em decisões de Bolsonaro e escala assessores do governo para atendê-la. Nenhum ministro ousa contrariá-la
30.10.20

Ao contrário da antecessora, a quem tem em mais alta conta, a primeira-dama Michelle Bolsonaro jamais foi tachada de “bela, recatada e do lar”, embora, para muitos, reunisse os atributos capazes de justificar os rótulos. Como Marcela Temer, Michelle é bonita, reservada e vive à sombra do marido, dizia em uníssono quem a descrevia antes da posse. Primeira-dama não constitui um cargo formal, mas um posto decorativo que se convencionou incorporar à paisagem do poder. Isso não impede que limites sejam quebrados. E, ao que tudo indica, têm sido. Nos últimos tempos, do mesmo modo que Bolsonaro trocou de discurso para poder se refestelar nos braços do establishment e do Centrão, Michelle deixou as roupas mais coladas de lado, adotou o terninho básico e não se limita mais a ser apenas a mulher destinada a cuidar do seu quadrado.

Para além do trabalho social, ainda sua prioridade número 1 e o que atrai a maior parte dos holofotes, do terceiro andar do Planalto, de onde despacha, Michelle dá conselhos, influi em decisões de Bolsonaro e tem poder até para determinar a criação de cargos comissionados e escalar servidores do governo para atender seus interesses. Como nos tempos de Marisa, nenhum ministro ousa contrariá-la.

No papel, Michelle trabalha para a Casa Civil, a qual está vinculado o programa que ela comanda e que conta com 12 funcionários, o Pátria Voluntária. Na prática, a história é outra. Não raro, a primeira-dama se serve da estrutura a serviço do gabinete presidencial para atender aos seus desejos. Recentemente, a Secretaria de Comunicação da Presidência, chefiada pelo secretário executivo do Ministério das Comunicações, Fábio Wajngarten — com quem Michelle tem ótima relação –, teve de separar um servidor apenas para atendê-la. Funcionários da pasta dizem que, muitas vezes, precisam parar o que estão fazendo para prestar serviços à primeira-dama, sob o temor de que o assunto seja levado para o gabinete presidencial. Um auxiliar de Wajngarten relata que atividades da Secom, como o atendimento a jornalistas, já foram deixadas de lado para que Michelle tivesse uma determinação atendida. Nem mesmo o ministro das Comunicações, Fábio Faria, escapou da rogatória da primeira-dama. Partiu de Michelle o pedido para que todos os vídeos oficiais do governo, sem exceção, contassem com tradução em Libras, a língua brasileira de sinais. O pleito, é claro, vem sendo atendido – neste caso, pode-se dizer que foi por uma boa causa.

Outra solicitação prontamente atendida foi a instalação de uma enorme escultura azul em forma de orelha na fachada principal do Palácio da Alvorada. A peça da designer e ilustradora Ketileine Stefanini foi doada pela Sociedade de Otorrinolaringologia à primeira-dama e faz parte do acervo privado de Michelle. No Planalto, comenta-se que se tratou de uma imposição da mulher do presidente. Num primeiro momento, todos ficaram não com uma orelha, mas com um pé atrás, já que interferências na fachada do palácio sempre geram questionamentos. Em 2017, quando Michel Temer chegou à Presidência, a instalação de uma tela de proteção na fachada do monumento para impedir acidentes com o filho pequeno foi criticada por especialistas em preservação do patrimônio. Construído em 1958, o Palácio da Alvorada é considerado uma das obras-primas de Oscar Niemeyer, mas, a cada novo inquilino, sofre alterações de decoração e até de projeto – Fernando Collor, por exemplo, determinou a instalação de persianas azuis na fachada principal, e Marisa plantou um coração de flores vermelhas na forma da estrela do PT tanto no jardim do Alvorada quanto no da Granja do Torto.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMichelle determinou que a Secretaria-Geral instalasse uma enorme escultura em formato de orelha na fachada do Palácio do Alvorada, que é tombado
A “caneta bic” do chefe do Planalto não esteve livre das reinações de Michelle. Há pouco mais de um mês, veio à tona uma divergência entre o primeiro-casal que, até então, era assunto reservado em conversas no Palácio da Alvorada. A primeira-dama queria que o marido sancionasse o aumento da pena de três meses a um ano de reclusão para até cinco anos de prisão a quem maltrata animais, mas o presidente achava um absurdo que a penalidade fosse superior à de abandono de incapaz, por exemplo. O mediador do impasse foi o deputado bolsonarista Hélio Lopes, o “Hélio Negão”, que apresentou um projeto de lei para, com o apoio de líderes do Centrão, resolver o problema apontado pelo presidente da República. Pelo projeto já em tramitação no Congresso, as sanções para os crimes de maus-tratos a pessoas, como menores e idosos, serão mais rigorosas. Com isso, o caminho ficou livre para a “Lei Sansão”, em cerimônia palaciana que teve até latido do mandatário do país. “Au au”, disse Jair Bolsonaro, ao lado da mulher.

Um assunto considerado proibido no Alvorada é a história dos 89 mil reais em cheques depositados pela família de Fabrício Queiroz nas contas da primeira-dama, revelada por Crusoé. Quando a denúncia veio à tona, Michelle, segundo fontes palacianas, submergiu, o que chegou a preocupar até o presidente Bolsonaro. “A Michelle se retrai muito quando vê o nome dela envolvido nisso. Ela se afasta de tudo”, diz um amigo da família. A repercussão do caso, especialmente nas redes sociais, onde recebeu a alcunha de Micheque, fez com que ela ameaçasse processar os detratores por calúnia e difamação. Também teria causado um pequeno entrevero em família, já contornado.

Ao longo da história do Brasil, as primeiras-damas se acostumaram a assumir papéis coadjuvantes. Isso fica claro no livro Todas as Mulheres dos Presidentes, em que os jornalistas Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo contam a trajetória das trinta e quatro primeiras-damas do Brasil nos 130 anos de República. Pioneira no posto, Mariana Cecília de Sousa Meireles da Fonseca, mulher do marechal Deodoro da Fonseca, nem no mausoléu da família teve o seu nome gravado. Morreu como viveu: à sombra do marido. Scila Médici, esposa do general e ditador Emílio Garrastazu Médici, que presidiu o Brasil entre outubro de 1969 e 15 de março de 1974, ao virar primeira-dama foi logo avisando: “Serei o que sempre fui, a esposa de meu marido. Duas vezes mãe”. A primeira a ir além dos afazeres domésticos foi Darcy, esposa de Getulio Vargas, quando a assistência social passou a ser uma função do Estado. Marisa Letícia, falecida em fevereiro de 2017, chegou a ter algum protagonismo nos bastidores do governo Lula. Não eram incomuns os episódios em que o ex-presidente tomava decisões e, no dia seguinte, voltava ao seu gabinete com outra ideia, depois de conversar com “dona Marisa” durante a noite. Aos 38 anos, Michelle, foi a primeira mulher de presidente da República a discursar antes do marido na posse.

Fabio Pozzebom/Agência BrasilFabio Pozzebom/Agência BrasilDona Marisa Letícia tinha influência no governo do marido: Lula costumava tomar decisões e mudar posicionamentos a pedido da mulher
Os caprichos de Michelle Bolsonaro se reproduzem na estrutura física do poder em Brasília. Ela conta com uma sala de despachos a poucos passos do escritório presidencial. Tem à disposição nove cargos e três funções comissionadas. Em julho, contratou um assessor para melhorar seu desempenho durante as cerimônias de trabalho. Ela desistiu de ocupar a ala da biblioteca após a cena de livros empilhados nos corredores da sede do governo viralizar nas redes sociais. Enquanto isso, sua equipe está acomodada em uma sala no subsolo, de onde despacha Adriana Pinheiro, nome que espalha “terror e pânico” entre auxiliares palacianos. Com certa frequência, a secretária-executiva do Pátria Voluntária e seus subordinados telefonam para a equipe presidencial para reclamar que as suas demandas não estão sendo atendidas com presteza. “A verdade é que todos têm medo da primeira-dama. É só falar no nome dela ou da Adriana Pinheiro que todos no Planalto já tremem nas bases”, diz um auxiliar do Planalto ouvido por Crusoé.

O episódio do projeto que aumentou a pena para maus tratos a animais não foi o primeiro em que a assinatura presidencial levou a rubrica de Michelle Bolsonaro. No ano passado, durante a Reforma da Previdência, a primeira-dama interferiu no Ministério da Economia para obter regras previdenciárias mais favoráveis às pessoas com deficiência. Já em julho deste ano, o presidente editou um decreto para transferir quatro cargos para o Pátria Voluntária, com custo anual de 683 mil reais. “Porém, isso não significa aumento de despesa, visto que os cargos em tela estavam alocados e em uso em outros órgãos da administração pública federal e seus custos de ocupação já constavam devidamente previstos no orçamento anual”, correu para justificar o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéBolsonaro reconheceu que a sanção da lei para aumentar a pena por maus tratos contra animais só ocorreu após a intervenção da primeira-dama
A desenvoltura com que Michelle se move na capital federal tem lhe rendido alguns problemas. Em setembro, soube-se que parte das doações arrecadadas pelo programa tocado pela primeira-dama foi repassada a organizações religiosas ligadas à ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. Segundo revelou o jornal Folha de S. Paulo, o Planalto direcionou ao programa uma doação de 7,5 milhões de reais da empresa Marfrig, que inicialmente havia repassado o dinheiro para a aquisição de testes de Covid-19 pelo Ministério da Saúde.

Damares e Michelle atuam em sintonia fina no governo. Peregrinam juntas pela Esplanada. No último mês, no mesmo dia em que Jair Bolsonaro deu um “cartão vermelho” a Waldery Rodrigues, secretário especial de Fazenda, a primeira-dama e a ministra tinham uma videoconferência com a cúpula do Ministério da Economia, incluindo Paulo Guedes e o próprio Waldery, para tratar de assuntos de orçamento do ministério da pastora. Passada a crise, o encontro acabou acontecendo alguns dias depois.

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