FelipeMoura Brasil

O binarismo suicida

06.11.20

“A esquerda é bem organizada em nível mundial. Por isso é importante acompanhar as eleições dos EUA. O que acontece lá pode se repetir aqui.”

Foi o que escreveu Eduardo Bolsonaro no Twitter, no dia seguinte à eleição americana, quando Joe Biden superava Donald Trump na apuração, precisando apenas manter a liderança em Nevada e Arizona, ou virar na Pensilvânia, para conquistar a Casa Branca.

Os Bolsonaro precisam do fantasma da volta da esquerda ao poder no Brasil para mobilizar mentes binárias a favor da família, do mesmo modo que Flávio Bolsonaro – finalmente denunciado com Fabrício Queiroz por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa – precisava de fantasmas para desviar dinheiro público na Alerj.

Embora registrada no gabinete de Flávio e depois em outros departamentos da Assembleia Legislativa, Luiza Paes admitiu nunca ter trabalhado para o então deputado estadual e apresentou aos promotores do caso extratos bancários que demonstram a transferência de cerca de 160 mil reais entre 2011 e 2017 ao ex-PM Fabrício Queiroz, apontado pelo MP-RJ como operador financeiro do esquema criminoso liderado pelo filho 01 de Jair Bolsonaro. Ela disse em depoimento que ficava com apenas 700 reais de uma remuneração oficial de mais de 5 mil e que ainda tinha de entregar os valores de 13º salário, férias, vale-alimentação e até a restituição do Imposto de Renda.

O pai de Luiza, amigo de Queiroz, chegou a pedir que ela reunisse extratos bancários para “combinar com o operador financeiro uma versão falsa de que se trataria dos pagamentos de uma suposta dívida”, de acordo com o relato do MP baseado em mensagens apreendidas. É a mesma alegação inicial de Jair Bolsonaro sobre depósitos de Queiroz e da esposa também denunciada, Márcia Aguiar, na conta de Michelle, embora o presidente tenha se calado depois que Crusoé revelou terem sido 89 mil reais, não 40 mil. Sempre que a investigação encontra registro de repasse, alega-se que se trata de quitação de empréstimo anterior, não registrado em lugar algum. No caso de Luiza, que não tem foro privilegiado, nem caneta presidencial, a mentira não prosperou.

Mas não faltaram tentativas de garantir seu silêncio. Frederick Wassef, então advogado de Jair e Flávio, e Luís Gustavo Botto Maia, que já atuou para o 01, disseram em reunião de 20 de dezembro de 2018, em hotel na Barra da Tijuca, no Rio, que não era para Luiza prestar o depoimento marcado para o mesmo dia porque nenhum assessor iria fazê-lo, conforme ela, porém, acabou revelando aos promotores. Eles próprios apreenderam outra mensagem enviada na véspera, na qual Botto Maria antecipava essa orientação a Luiza. Curiosamente, foi no dia 7 daquele mesmo mês que Jair Bolsonaro alegou a O Antagonista que os “40 mil” de Queiroz eram “uma dívida que ele tinha comigo”. Enquanto o presidente eleito tergiversava, emissários da família mandavam funcionários fantasmas que repassavam grana ao operador/depositante ficarem calados.

Como o bolsonarismo não conseguiu conter os avanços da investigação, o jeito foi transferir o Coaf, aliar-se a Dias Toffoli contra a CPI da Lava Toga, sancionar a lei de abuso de autoridade, desidratar o pacote anticrime, nomear um inimigo da Lava Jato para a PGR, interferir na PF, fazer ‘toma lá dá cá’ com o Centrão e indicar Kassio Marques ao STF, apadrinhado pelos atuais réus Frederick Wassef e Ciro Nogueira, além do denunciado Flávio, e com aval de Toffoli e Gilmar Mendes, com quem está o recurso do MP contra o foro privilegiado retroativo do 01, ainda não pautado na Corte.

Para blindar a família, Jair Bolsonaro fez a alegria do velho establishment sabotando o combate à corrupção, enquanto Trump, pelo menos, indicou três juízes realmente conservadores à Suprema Corte dos EUA – Neil Gorsuch (2017), Brett Kavanaugh (2018) e Amy Coney Barrett (2020) –, sem falar nas nomeações de centenas de juízes federais durante seu governo, sob a articulação do senador já reeleito Mitch McConnell. A vantagem conservadora em uma Suprema Corte mais jovem e em outros tribunais torna uma eventual derrota de Trump para Biden menos preocupante para conservadores do que seria em 2016 para Hillary Clinton, que, contando a vaga deixada pela morte de Ruth Bader Ginsburg aos 87 anos, teria indicado três esquerdistas.

Caso Biden vença, o legado judicial de Trump e um eventual Senado de maioria republicana servirão como contrapeso a eventuais radicalismos de esquerda, em matéria de saúde pública, armas, aborto, liberdade religiosa, direitos LGBTQ+, regulações ambientais e outros temas sensíveis cujas nuances a polarização histérica ignora.

O trumpismo é o último refúgio do “direitismo” bolsonarista, mas Bolsonaro, com um imenso telhado de vidro familiar e sem um McConell por trás, só emulou o lado rasteiro de Trump: o populismo reacionário e fanfarrão, que pode até causar graça em temas menores, mas, diante de problemas vitais complexos (e muito acima do embate político-ideológico) como uma pandemia, é percebido por milhões de eleitores como inconsequência, irresponsabilidade, incompetência e falta de empatia. O desdém de Trump com prisioneiros americanos de guerra, por exemplo, certamente afetou sua votação no Arizona, terra do desafeto republicano John McCain, morto em 2018.

Se há uma lição a ser tirada da eleição apertada nos Estados Unidos, é que enfrentar a esquerda sem bom senso e empatia só reforça no eleitorado independente a caricatura que ela faz da direita – que dirá quando a “direita” também desvia dinheiro público.

Em 2020, 2022 e sempre, o Brasil não precisa ficar refém de um binarismo suicida.

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