Rogério Cassimiro/FolhapressMarcos Camacho, o Marcola, chefão do PCC: a facção, assim como as milícias, também quer ter lugar nas instituições públicas

O PCC e a milícia querem seu voto

Como o crime organizado comum - aquele que trafica drogas, rouba e mata - está se infiltrando cada vez com mais força na política. Representantes da maior facção criminosa do país e milicianos também disputam os votos dos brasileiros neste domingo
13.11.20

As eleições municipais do próximo domingo podem ser analisadas sob diferentes perspectivas. No campo estritamente político, o resultado das urnas servirá de termômetro para a disputa presidencial de 2022 e testará as preferências de momento dos brasileiros. Há um outro aspecto, porém, que não é tão visível para o eleitor comum, mas que atrai a atenção de uma parcela das autoridades cuja missão é monitorar a atuação de grupos criminosos pelo país afora: o avanço das facções criminosas e das milícias sobre o poder constituído, apoiando candidatos e até injetando recursos em campanhas. Investigações recentes e informes de inteligência apresentam um cenário preocupante, em que os chefões de diferentes organizações consolidaram a diretriz que prega o aparelhamento das instituições, nem que para isso seja preciso entrar na disputa direta pelo voto. Como resultado dessa estratégia, além de ampliar seus tentáculos com o objetivo de obter proteção, as organizações miram outros tipos de vantagem, incluindo a obtenção de contratos milionários no serviço público – em um sinal eloquente de que os criminosos comuns resolveram avançar também sobre o mercado dos criminosos do colarinho branco.

Nos últimos dias, duas ações da Polícia Federal mostraram o tamanho do problema. Na quarta-feira, 11, uma operação deflagrada no Mato Grosso prendeu uma mulher que seria responsável por organizar a candidatura de um vereador na cidade de Barra do Garças para o Comando Vermelho, a quadrilha de narcotraficantes que nasceu no Rio de Janeiro e se espraiou pelo Brasil. Para ter uma ideia do nível de planejamento, antes de a candidatura ser oficialmente adotada, houve uma “prévia” em que integrantes da facção, incluindo os presos, votaram por meio de mensagens de WhatsApp. O “escolhido” recebeu ajuda financeira para a campanha – em contrapartida, se eleito ele deveria representar os interesses do grupo. O caso ainda está em andamento, mas a suspeita da PF é que o mesmo modus operandi tenha se repetido em várias cidades do estado.

Um dia depois, no Rio de Janeiro, os policiais federais também bateram à porta de candidatos a cargos públicos nas eleições do próximo domingo, para cumprir mandados de busca e apreensão e levar adiante a apuração sobre o financiamento de políticos pela Liga da Justiça, uma das maiores milícias do estado. Foram alvos os irmãos José Guimarães Natalino e Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, fundadores da organização. Uma filha de Natalino é candidata a vice-prefeita do Rio pelo PMB, na chapa de Suêd Haidar, e uma filha de Jerominho disputa uma vaga na Câmara de Vereadores pela mesma legenda. As duas também são investigadas.

De acordo com os policiais, os milicianos escolhiam seus candidatos por meio de enquetes em grupos nas redes sociais. O método era similar ao usado pelo Comando Vermelho no Mato Grosso: uma vez “eleitos” pelos criminosos, os candidatos recebiam verbas para campanha e outros tipos de ajuda que incluíam até a disseminação de notícias falsas. Relatórios de inteligência do Coaf revelam a movimentação de mais de 1 milhão de reais em empresas ligadas aos investigados. A PF suspeita que ao menos uma parte das transações, realizada durante o período eleitoral, esteja relacionada com as campanhas.

Depois de alçadas ao cenário nacional pelas relações da família presidencial com alguns de seus integrantes – o filho 01 de Jair Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro, não só empregou parentes do miliciano Adriano da Nóbrega em seu gabinete como o condecorou na Assembleia Legislativa do Rio -, as milícias cariocas passaram a integrar, ao lado das facções criminosas, em especial o Primeiro Comando da Capital, o PCC, o rol de organizações criminosas sob suspeita atuarem com o objetivo de infiltração nas instituições públicas.

José Lucena/FolhapressJosé Lucena/FolhapressNa operação desta quinta, a PF mirou a interferência de milicianos na campanha eleitoral no Rio
A Polícia Federal monitora esses grupos criminosos e sua relação com a política a partir da Coordenação-Geral de Repressão a Entorpecentes, baseada em Brasília. Além de mapear o possível financiamento direto por meio de doações, os policiais têm procurado identificar empresas ligadas aos criminosos com contratos públicos e acompanham possíveis casos de uso de força para influenciar voto em territórios comandados por eles. Embora estejam no radar, as milícias são vistas ainda como um problema menor por estarem mais concentradas no Rio de Janeiro. O problema principal, afirmam os investigadores, é o PCC.

Em uma operação recente que identificou uma rede de empresas utilizadas para lavar dinheiro para integrantes da facção, entre eles Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, os policiais produziram um organograma com a teia de suspeitos de atuar no esquema a mando do líder máximo da organização. O documento é a prova, para a PF, da proximidade da cúpula do grupo com agentes políticos. Logo abaixo da foto de Marcola está a de Ney Santos, do Republicanos, prefeito de Embu das Artes, cidade da região metropolitana de São Paulo. O motivo para Santos estar ali é o fato de um posto de gasolina em seu nome ter o mesmo contador de uma empresa vendida por familiares de Marcola para seu principal lavador de dinheiro. O prefeito, que chegou a ser preso, é candidato à reeleição. Desde o início da campanha, ele recebeu três repasses da fatia do fundo eleitoral destinada ao seu partido, o Republicanos. Os valores alcançam a cifra de 1 milhão de reais – sim, 1 milhão de reais dos cofres públicos foram parar nas contas do comitê de um candidato que aparece em uma investigação da PF ao lado da cúpula do PCC.

Mas o caso mais exemplar descoberto até agora dessa nova frente de atuação do PCC é o da cidade de Arujá, também na Grande São Paulo. Uma investigação da Polícia Civil de São Paulo mostrou como a facção financiou o prefeito José Luiz Monteiro, do MDB, e seu vice, Márcio José de Oliveira, do Republicanos, em 2016, com dinheiro do narcotráfico. Após a vitória da chapa, a prefeitura passou a gestão de um hospital municipal para uma entidade “comprada” por um megatraficante parceiro de André do Rap, o chefão do PCC solto em outubro por um habeas corpus do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO delegado Secco: a PF acompanha as tentativas de infiltração
É um exemplo bem acabado de como o PCC agora também procura faturar naquela seara onde antes só os políticos bandidos atuavam: assaltando os cofres públicos. Em apenas dois anos, segundo a apuração, o grupo teria recebido 77 milhões de reais em contratos da prefeitura de Arujá. Os recursos eram desviados por meio de contratações superfaturadas e por empresas de fachada pertencentes à organização. Uma delas, uma padaria que fornecia comida para o hospital da cidade, tinha como endereço uma residência a 500 metros da casa do prefeito. “O esquema com as prefeituras começa aí. Márcio (o vice) pediu apoio financeiro ao traficante na eleição e, em troca, deu a ele o controle de serviços públicos na cidade”, afirma o delegado Fernando Santiago, responsável pela apuração. “Com alto número de empresas e entidades criadas, a gente acredita que eles tenham se infiltrado em serviços públicos de outras cidades, como gestão de saúde, coleta de lixo, tapa-buracos, provavelmente com métodos parecidos de financiar campanhas políticas”, segue o delegado. Em São Paulo, a capital, suspeita-se que o setor de transportes públicos está contaminado pela facção.

Na Polícia Federal, a descoberta dos braços políticos financiados pelo PCC e por outras facções, além das milícias, se deu no curso de investigações cujos alvos eram os responsáveis por cuidar das finanças das quadrilhas. Segundo o coordenador de Repressão a Entorpecentes, delegado Elvis Secco, um dos objetivos do esforço dos policiais para identificar responsáveis por cuidar da lavagem de dinheiro para esses grupos é, justamente, “identificar toda e qualquer tentativa de infiltração de membros no poder público”.

Antes de se mudar para Brasília, o delegado atuou em Londrina, onde, ainda em 2013, uma investigação já indicava o interesse de uma facção em financiar candidaturas de vereadores. Sete anos depois, é consenso na corporação que a situação piorou. “As investigações policiais devem cada vez mais buscar se aprofundar na questão financeira, identificar os núcleos responsáveis pela lavagem de dinheiro, descortinar as empresas e os sócios que servem aos líderes. É através da estrutura empresarial que as facções encontrarão o caminho para concorrer em certames públicos e bancar campanhas políticas”, diz Secco.

Tanto as milícias quanto as facções, segundo as investigações, buscam interferir nas eleições de formas diferentes: além do financiamento direto de candidaturas, elas influenciam o resultado das urnas pelo domínio do território e pelo uso da violência a favor ou contra as campanhas de determinados políticos. Um caso ainda sob investigação, mas que aponta para a atuação de facções via controle de território e uso da violência, é o da candidata a prefeita da cidade paulista de São Vicente, Solange Freitas, do PSDB. Ela foi alvo de um atentado a tiros na quarta-feira, 11. Em outubro, o PCC divulgou um “salve” — como são chamadas as mensagens da cúpula da facção para baixar ordens para subordinados — proibindo a campanha de determinados candidatos em áreas comandadas pelo grupo. Fontes a par da investigação disseram a Crusoé que, semanas antes de ser alvo da tentativa de assassinato, Solange esteve em uma comunidade e recebeu o alerta: não poderia continuar a fazer campanha por ali. Ela deu de ombros, e a ameaça foi cumprida.

A mesma tática dos criminosos de usar a violência para impor suas vontades é usada de forma escandalosa no Rio de Janeiro. Levantamentos recentes mostram que milícias e facções têm algum tipo de influência em 96 dos 163 bairros da capital do estado. As facções dominam cerca de 25% dos bairros onde mora quase um terço dos 7 milhões de habitantes da cidade. O resultado do controle territorial, segundo investigadores e estudiosos do tema, é uma espécie de “voto de cabresto”. Em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, um candidato a vereador pelo PHS, Domingos Barbosa Cabral, foi morto no início da campanha. Uma das linhas de investigação indica que ele teria ligação com uma milícia rival da que controla a região e, por isso, não estaria autorizado a pedir votos em certas áreas.

Divulgação/Prefeitura de ArujáDivulgação/Prefeitura de ArujáEm Arujá, na Grande São Paulo, o PCC conseguiu até contratos públicos
Se para os investigadores a nova frente de atuação das facções e das milícias é a prova da necessidade de sufocá-las financeiramente, para estudiosos do assunto a movimentação em busca de infiltração no poder público é o último passo para que organizações como o PCC passem a ser classificadas como máfias. Como explica o ex-desembargador Wálter Maierovitch, estudioso do crime organizado e presidente do instituto que leva o nome do juiz italiano Giovanni Falcone, morto pelos mafiosos sicilianos da Cosa Nostra, a facção nascida nos presídios paulistas na década de 1990 preenche boa parte dos requisitos para mudar de patamar. “Já é uma máfia. Essas organizações são parasitárias. E eles ainda têm controle sobre o território, como as máfias italianas”, diz Maierovitch. Já as milícias, para o ex-magistrado, estão um estágio atrás. São pré-máfias, afirma ele, porque ainda atuam apenas em suas regiões e não têm características transnacionais.

Para Maierovitch, assim como as organizações criminosas ligadas aos últimos grandes casos de desvios de dinheiro público, as facções e milícias querem influenciar nas decisões dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como forma de manter e aumentar o lucro dos seus negócios. Além disso, elas querem se proteger. “Da mesma forma que aquelas organizações formadas por empresários e empreiteiros, as facções e milícias precisam ter políticos e agentes públicos dispostos a ajudar seus interesses”, afirma.

Autor do livro “A República das Milícias” e integrante do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, o pesquisador Bruno Paes Manso vê diferenças entre o velho modelo de atuação do tráfico em campanhas eleitorais e aquele adotado agora pelas milícias no Rio, por exemplo. “No caso do tráfico, era mais a cobrança para atuar no território. Já as milícias, além da cobrança, começaram a lançar candidatos para dar respaldo a esses grupos nos parlamentos. Além de proibir oposição, passaram a deixar saírem, nos seus territórios, somente candidatos com algum tipo de aliança com os grupos”, diz. Quanto ao PCC, Manso afirma que ainda faltam dados concretos e estudos sobre a relação da facção com o poder público, mas observa que as recentes investigações têm apontado para um nível de profissionalização cada vez maior. “Ao que parece, pelos esquemas de lavagem de dinheiro, estão se profissionalizando.”

Na mesma operação em que descobriram a atuação das empresas ligadas ao PCC em Arujá, os investigadores fizeram gravações ambientais de integrantes do grupo. Em uma das conversas, eles falam sobre o suposto pagamento a um magistrado, sem dar detalhes, em troca de um habeas corpus para um traficante ligado à facção. Como mostram as fartas provas colhidas até aqui, em várias frentes a criminalidade comum organizada está caminhando a passos cada vez mais largos para atuar nos mesmos padrões das grandes organizações criminosas desarticuladas em investigações como a do petrolão. Envergando terno e gravata ou não, os diferentes tipos de bandidos nunca estiveram tão alinhados em seus objetivos.

Colaboraram Fabio Leite e Luiz Vassallo

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