RuyGoiaba

Um náufrago na pororoca

13.11.20

Começo esta coluna passando mais um atestado de tiozão: tenho idade suficiente para me lembrar de Amaral Netto, o repórter. Ao som da versão übercafona de Ray Conniff para “Aquarela do Brasil”, seu programa na Globo exibia as glórias do Brasil Grande: a Transamazônica — que antes de ser engolida pela floresta era, ao lado da Muralha da China, “obra humana visível da Lua a olho nu” — e aquilo que o deputado-repórter chamava de “monstro das mil faces”. Era o Fenômeno da Pororoca, que o leitor sabido sabe tratar-se da onda gigantesca gerada pelo encontro entre as águas do rio Amazonas e as do mar.

(Mais tarde, Amaral Netto ficaria célebre por sua defesa incondicional da pena de morte, o que levou a turma do Casseta & Planeta a sugerir uma pena alternativa ainda pior que a morte: ser degredado para uma ilha deserta junto com Amaral falando non-stop do Fenômeno da Pororoca. Mas divago. Fecho o parêntese.)

Por que comecei dizendo isso? Porque na semana que passou (e acho que vocês me serão solidários) eu me AFOGUEI em uma pororoca de cretinices: era a torrente fluvial de Jair Bolsonaro disparando sua metralhadora de asneiras —manobra diversionista já manjada para desviar a atenção de coisas mais sérias, como aquela abjeta comemoração da suspensão dos testes da “vacina do Doria” — se encontrando com a recusa de Donald Trump a aceitar sua derrota, em meio a um oceano de teorias conspiratórias sobre a “fraude” estimuladas pelo próprio bufão que ocupa a Casa Branca. O New York Times ouviu responsáveis pela eleição em 50 estados e nenhum apontou irregularidade, mas ah, os brasileirinhos do WhatsApp, esses têm as provas mais contundentes!

Ter muitos temas para a coluna, no fim das contas, é tão complicado quanto não ter nenhum: o náufrago precisa emergir da pororoca para conseguir escrever sobre ela. Além disso, a gente faz o que — além de piada, e todas já foram feitas— quando o fucking presidente do Bananão fala em resolver com pólvora disputas com os americanos? Reclama no Procon que o chefe do Executivo veio com defeito? Processa por concorrência desleal como humorista? Cutuca o Rodrigo Maia até ele parar de sentar em cima daquela pilha de pedidos de impeachment? Já escrevi aqui, mas repito: comédia só é legal a certa distância sanitária, não quando a gente está DENTRO dela, e eu já estou meio cansado de ouvir o Universo gargalhando enquanto caímos no bueiro todo santo dia.

Mas é como diz o clichê da “sabedoria popular”: tá no inferno, abraça o capeta. Quero ver Trump agarrado a um pé de mesa no Salão Oval, esperneando e gritando que não vai sair, como uma criança de cinco anos, e sendo retirado à força por marines. Quero ver a brava gente brasileira indo para a guerra e derrotando as tropas dos EUA à base de passar cal em absolutamente TUDO, coisas e pessoas, no território inimigo — ou desestabilizando o psicológico dos ianques à base de muito sertanejo universitário. Quero ver as filhas de milicos que recebem pensão na linha de frente da nossa artilharia. Quero ver Compadre Washington tomando posse de Washington, ordinária. Enfim, ver a cobra fumar, a jiripoca piar: chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor.

(Tudo somado, virarmos Havaí do Sul não é má ideia. Mesmo assim, se o Sargento Pincel me convocar, estamos aí. Bananão, verás que um filho teu não foge à luta: como diria Sidney Magal, me chama que eu vooou.)

***

A GOIABICE DA SEMANA

A rigor, tudo que entrou nesta coluna e muita coisa que ficou de fora dela é “goiabice da semana” (talvez do mês, do ano). Mas hoje o foco é nos idiotas das redes sociais que reclamaram de a vitória de Joe Biden na eleição americana ter sido “decretada pela imprensa”. Como nos EUA não existe um TSE para centralizar os dados das apurações estaduais — a rigor, são 51 eleições simultâneas, nos 50 estados e no Distrito de Colúmbia —, é precisamente isso que a imprensa americana faz em TODO pleito. A Associated Press, por exemplo, começou ontem: consolida o resultado nacional em toda eleição desde 1848.

Acho que esses oligofrênicos só foram superados pelos que descobriram agora que, oh céus, a Globo paga por pesquisas do Datafolha e do Ibope — coisa que a própria emissora anuncia claramente a cada vez que noticia os resultados no Jornal Nacional, os institutos explicitam, os jornais publicam, a Justiça Eleitoral registra etc. Sou obrigado a concordar com Roberto Campos sobre o passado glorioso e o futuro promissor da burrice — e não apenas no Brasil. A capacidade do pessoal de ter nascido ontem nunca cessa de me espantar.

Reprodução/CNNReprodução/CNNDonald Trump desconfiando que o voto de Melania talvez não tenha sido nele

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