Reprodução/FacebookBoulos agora tenta maquiar o discurso radical que sempre adotou

Boulos paz e amor

Assim como Bolsonaro, Lula e o PT definham nas urnas e abrem alas para a extrema esquerda, que tenta chegar à prefeitura da maior capital do país maquiando seu discurso radical
20.11.20

Guilherme Boulos ainda não dançou no TikTok, mas não duvide se em breve você vir essa cena. Não faz muito tempo, na cozinha de sua casa, no bairro do Campo Limpo, periferia da zona sul de São Paulo, o candidato do PSOL à prefeitura da capital paulista foi advertido pelas duas filhas: elas queriam saber por que ele ainda não aprendeu a fazer a dancinha que ficou famosa no aplicativo de vídeos que virou febre entre os jovens. Boulos ainda não se exibiu dançando, mas tem usado o TikTok para repaginar a imagem de político radical que até pouco tempo atrás berrava ao microfone em cima de caminhões liderando multidões de sem-teto prestes a invadir terrenos vazios e pressionando o poder público a construir moradias populares. Entre memes, banners e entrevistas, a galeria digital de Boulos mostra ele praticando boxe na garagem, preparando o jantar para a família e comendo uma fatia de bolo, uma cena que, na legenda, foi explorada em trocadilho pela campanha: “Um Boulos com seu bolo não quer guerra com ninguém”. Como tudo em eleição, cada gesto é estrategicamente pensado para atrair votos. A fala mansa, a barba aparada e as camisas em tons claros complementam a nova roupagem do político de 38 anos que acabou com três décadas de hegemonia do PT na esquerda paulistana e tenta agora maquiar o discurso radical que sempre adotou para se tornar um nome mais palatável ao eleitorado mais conservador e conseguir derrotar o atual prefeito Bruno Covas, do PSDB, no segundo turno da corrida municipal.

No primeiro turno, o figurino paz e amor, o mesmo que serviu para o ex-presidente Lula vencer a eleição presidencial em 2002, mostrou ser eficiente. Mas Boulos terá de ir além se quiser vencer a eleição. Com uma maior exposição, uma vez que agora são apenas dois candidatos, não será tão simples se livrar da pecha de radical. Ele também será instado a demonstrar conhecimento sobre temas considerados caros ao morador da capital paulista. Na semana seguinte ao primeiro turno, o candidato do PSOL já cometeu uma parvoíce ao dizer que o déficit previdenciário no serviço público ocorre porque as pessoas se aposentam e não há novos concursos — e sugeriu que uma solução para o problema é, pasme, a contratação de novos servidores. A situação da Previdência é um dos gargalos econômicos de São Paulo. Atualmente, o setor registra um rombo anual de 8 bilhões de reais. Segundo Boulos, “fazer concursos é uma forma de arrecadar mais para a previdência pública e equilibrar a conta com os inativos”. “Então, é isso que eu vou fazer”, prometeu. Horas depois, diante da repercussão negativa nas redes sociais, já que qualquer pessoa com o mínimo de noção de aritmética sabe que aumentar o número de servidores num sistema que já é deficitário vai colaborar é para ampliar o buraco, Boulos tentou consertar, mas já era tarde. “O radicalismo ideológico sabe criticar, mas não sabe fazer conta”, tripudiou Bruno Covas. O economista Gustavo Franco, presidente do Banco Central no governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, fez chiste da ideia do psolista: “Eu nunca vi uma explicação tão clara sobre a ideia de Pirâmide Financeira, ou de Corrente da Felicidade. É para a CVM (a Comissão de Valores Imobiliários, que fiscaliza o mercado financeiro) abrir um Processo Administrativo por Indução à Fraude e propor o impedimento do personagem.”

Na primeira etapa das eleições, com a pulverização de candidaturas, menos holofotes e poucos sobressaltos, tudo funcionou dentro do script esperado por Boulos. Ele atraiu uma parcela do eleitorado tradicionalmente petista e conseguiu desbancar o ex-governador Márcio França, do PSB, e o deputado Celso Russomanno, do Republicanos, na disputa pela segunda vaga, alcançando mais de 1 milhão de votos, votação superior à que ele mesmo teve na eleição presidencial de 2018 – 617 mil votos –, quando foi apenas o décimo colocado. O desempenho inverteu a lógica eleitoral na cidade e transformou o candidato do PT, Jilmar Tatto, em nanico. Com apenas 8,6% dos votos válidos, ou seja, menos de 500 mil, o partido que já comandou a cidade três vezes, teve o pior desempenho da sua história e ficou de fora do segundo turno pela primeira vez desde 1988, quando Erundina, hoje vice de Guilherme Boulos, foi eleita. Agora, os petistas mergulharam na campanha de Boulos para tentar tirar os tucanos do comando da cidade, mas o apoio não deve ser explorado na propaganda de TV para não afugentar os votos necessários ao candidato do PSOL na difícil missão de virar o jogo. Segundo a última pesquisa do Ibope, Covas tem 58% dos votos válidos, contra 42% de Boulos.

Reprodução/Facebook/Bruno CovasReprodução/Facebook/Bruno CovasBruno Covas largou na frente no segundo turno: tem 58% dos votos válidos
O resultado das urnas na maior capital do país retrata a decadência eleitoral do PT no Brasil como um todo. O partido de Lula saiu do primeiro turno apenas como a 11ª legenda em número de cidades que irá administrar a partir do ano que vem. São apenas 179 prefeitos petistas eleitos, nenhum nas capitais. Outros 15 candidatos da sigla disputam o segundo turno, mas a maioria em condições bem desfavoráveis. Na principal delas, Recife, Marília Arraes trava um duelo com seu primo João Campos, do PSB, filho do ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos, morto num trágico acidente aéreo em 2014. Neta do também ex-governador Miguel Arraes, Marília escondeu o PT em sua campanha — até trocou a estrela vermelha por um coração em bandeiras e adesivos, para tentar furar a bolha e angariar votos dos não petistas. Em Vitória, outra capital em que o PT ainda está no páreo, João Coser chegou em segundo lugar por uma margem de apenas 1.201 votos e deve ter grandes dificuldades para reverter o quadro.

Mesmo que vença todas as disputas de segundo turno, o que é pouquíssimo provável, o PT amargará seu pior resultado em eleições municipais em mais de 20 anos, e encolherá ao tamanho que tinha na década de 1990, antes de chegar ao Palácio do Planalto com Lula. O partido acreditava ter chegado ao fundo do poço em 2016, quando perdeu mais da metade das prefeituras — de 638 para 256 municípios — no auge da Operação Lava Jato e na esteira do impeachment de Dilma Rousseff. Nas eleições de 2018, lideranças petistas sonhavam com o ressurgimento do partido a partir da eleição de quatro governadores e da ida de Fernando Haddad para o segundo turno com Jair Bolsonaro. “Parece uma hemorragia lenta que vem tirando cada vez mais o protagonismo do PT. Se o partido não fizer autocrítica, admitir que muitas das acusações feitas têm procedência e se comprometer com uma nova conduta, a tendência é, a médio e longo prazo, ele se tornar um partido irrelevante. Outros partidos como o PSOL já estão ocupando esse espaço junto aos eleitores mais lúcidos de esquerda”, afirma o cientista político Rui Tavares Maluf.

No estado de São Paulo, onde o PT foi fundado há 40 anos, o resultado das urnas foi “trágico”, nas palavras de lideranças estaduais. Apesar de quase três décadas de hegemonia tucana no estado, o partido chegou a governar mais de 70 cidades em 2012, além da capital. No domingo, 15, foram apenas duas vitórias, em Araraquara e Matão, entre os 645 municípios. No região do ABC, berço da legenda e onde chegou a vigorar uma espécie de cinturão vermelho, petistas sofreram derrotas históricas. Em São Bernardo do Campo, domicílio de Lula, o ex-prefeito e ex-ministro Luiz Marinho foi derrotado pelo tucano Orlando Morando, que teve 67% dos votos. Na vizinha Santo André, o revés foi ainda mais acachapante. O prefeito Paulo Serra, do PSDB, se reelegeu com 77% dos votos, enquanto a candidata petista Bete Siraque somou apenas 7%, mesmo percentual de Bruno Daniel, irmão do ex-prefeito assassinado Celso Daniel, que saiu candidato pelo PSOL. O ex-prefeito petista Carlos Grana não conseguiu sequer se eleger vereador. A última esperança do partido é retomar o comando de Diadema, primeira prefeitura conquistada pelo PT na história, em 1982, com José de Filippi, ex-prefeito e ex-tesoureiro de campanhas do PT no auge do petrolão.

Roberto Casimiro /Fotoarena/FolhapressRoberto Casimiro /Fotoarena/FolhapressCom Tatto, o PT teve o pior resultado de sua história em São Paulo
Para o cientista político Sérgio Praça, professor da Fundação Getúlio Vargas, o quadro para o PT mina as chances não só de o partido ser o principal player da esquerda em 2022 como também de eleger uma boa bancada de deputados, o que garantiria uma cota mais robusta do fundo partidário. “O problema para o PT não é só perder eleitor, mas também perder o discurso, a narrativa, os formadores de opinião da esquerda. Se você for na USP (a Universidade de São Paulo sempre foi conhecida como um reduto de petistas) hoje, por exemplo, vai encontrar mais simpatizantes do PSOL do que do PT. A mesma coisa está acontecendo na classe artística”, diz Praça.

As candidaturas de Boulos em São Paulo e de Manuela D’Ávila, do PCdoB, em Porto Alegre já evidenciaram esse fenômeno. Artistas que antes apareciam em campanhas petistas, como Caetano Veloso, neste ano gravaram vídeos, fizeram lives e até doaram dinheiro para outros candidatos da esquerda. Só para Boulos, Caetano e a mulher, Paula Lavigne, doaram 200 mil reais. Nas duas capitais ficou claro que a dupla conseguiu ocupar o vácuo político deixado pelo declínio do PT, mas ainda precisa se descolar do petismo e escamotear o radicalismo para conseguir vencer nas urnas. Haja maquiagem. Tanto Boulos quanto Manuela foram apresentados ao país pelo próprio Lula como seus herdeiros políticos no dia em que o petista se entregou à Polícia Federal, em abril de 2018, para cumprir a ordem de prisão expedida pelo então juiz federal Sergio Moro. Dissociar-se dessa imagem vai exigir muito mais habilidade, convenhamos, do que uma dancinha do TikTok.

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