MarioSabino

Os maricas

20.11.20

Na cúpula dos Brics, o tirano russo Vladimir Putin elogiou Jair Bolsonaro com uma frase saída do século XVII, na minha estimativa generosa. Afirmou, que diante da pandemia, o presidente brasileiro “expressou as melhores qualidades masculinas e de determinação”. E explicou: “O senhor foi buscar a solução de todas as questões, antes de tudo, na base dos interesses do seu povo, seu país, deixando para depois as soluções ligadas aos problemas de sua saúde pessoal”. Em bom português, disse que Jair Bolsonaro vem sendo muito macho nas suas atitudes em relação ao pesadelo sanitário.

Vladimir Putin envenena os seus adversários políticos, expediente utilizado na Antiguidade por mulheres que, sem força física suficiente, recorriam à química para eliminar os seus algozes. Hoje, o envenenamento ainda é o método mais utilizado por serial killers do sexo feminino, juntamente com a asfixia, de acordo com um estudo conduzido em 2015, nos Estados Unidos, pela psicóloga Marissa Harrison, da Penn University. Ela explicou à BBC que “há teorias que dizem que elas escolhem esses métodos por serem parecidos com a morte natural e tornar mais difícil que seus crimes sejam descobertos. São menos brutais que outros. Só depois que a terceira ou quarta vítima morre em circunstâncias suspeitas é que começam a despertar desconfiança”. Desse ponto de vista, portanto, Vladimir Putin expressaria certa qualidade feminina.

Na Rússia, o envenenamento pode ser especialidade, mas não goza de exclusividade, obviamente. Os adversários do regime também podem ser mortos a tiros, que é mesmo coisa de macho, como todo mundo sabe. Um dos adversários abatidos foi a jornalista Anna Politkovskaya, que reportou ao mundo as brutalidades de Vladimir Putin e denunciou o seu objetivo (que viria a ser plenamente alcançado) de estabelecer uma ditadura no país. Ela foi assassinada no dia do aniversário de 54 anos do tirano, em 2006, executada com cinco disparos à queima-roupa, um deles na cabeça. Provavelmente foi um presente ao ocupador do Kremlin. Anna Politkovskaya expressava as melhores qualidades de um ser humano de qualquer gênero, com determinação e deixando para depois os cuidados com a sua saúde, como ficou demonstrado pelo seu assassinato. Recomendo vivamente a leitura do seu A Rússia de Putin — A Vida numa Democracia em Derrota.

O admirador de Jair Bolsonaro não é exatamente uma originalidade russa. Produto soviético, Vladimir Putin é a expressão de um país que jamais conheceu a democracia de fato, seja na monarquia, no comunismo ou depois do fim da Cortina de Ferro. Um dos que melhor definiram a Rússia foi o Marquês de Custine, aristocrata francês que viveu entre os séculos XVIII e XIX, era amigo de Honoré de Balzac e esteve por lá em 1839. Ele escreveu que “o governo russo é a ordem da cidade substituída pela disciplina do acampamento, o estado de sítio transformado no estado normal da sociedade”. As opiniões do Marquês de Custine incomodaram tanto o tzar que ele contratou gente para escrever livros que refutavam a sua visão. Quando se conseguem depurar os seus escritos do racismo e da xenofobia, sobra uma verdade que vem se demonstrando irrefutável.

Se vivesse hoje na Rússia, o Marquês de Custine, só encontrável agora em alguns sebos parisienses, seria alvo de Vladimir Putin não apenas pela sua opinião, mas também por ser gay. Seria tratado como criminoso, embora a preferência não esteja configurada como delito na lei russa. Aparentemente, as melhores qualidades masculinas e de determinação do tirano não resistem à liberdade dos que expressam a sua própria homossexualidade.

Não canso de expor a minha perplexidade com a insistência desses senhores em fazer alusões de caráter sexual a tudo, de preferência ao esfíncter alheio. Já o fiz aqui na Crusoé. No caso do elogio de Vladimir Putin ao que seria a virilidade de Jair Bolsonaro, acho que a deixa foi a frase do presidente brasileiro dita dias antes, durante uma cerimônia no Palácio do Planalto: “Não adianta fugir disso, fugir da realidade (da pandemia). Tem que deixar de ser um país de maricas. Olha que prato cheio para a imprensa. Prato cheio para a urubuzada que está ali atrás. Temos que enfrentar de peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa?”

Ao contrário de Vladimir Putin e do próprio Jair Bolsonaro, não vejo masculinidade nenhuma em negar a gravidade da pandemia. Masculinidade nesse sentido que ambos emprestam à palavra, como sinônimo de bravura, desassombro e firmeza. Pelo contrário. Acredito que se trata de covardia, como deixei claro em O Antagonista:

Voltar atrás em atitudes e opiniões erradas não é apenas demonstração de racionalidade. É ato de coragem. Em especial, da parte dos governantes. Um verdadeiro estadista é aquele que também sabe aprender com os próprios erros e, assim, visa a alcançar o bem comum. Tiranos, por sua vez, insistem em cometer os mesmos erros, porque acreditam que admitir que erraram é sinal de fraqueza e têm medo de abrir brechas para os adversários. O bem comum é a última coisa na qual pensam, quando nele pensam.

Noticiamos que o Ministério da Saúde havia publicado no Twitter uma mensagem recomendando o isolamento social e reforçando o fato de que não há remédio eficaz contra a Covid-19. A mensagem era de uma banalidade absoluta, mas útil para alertar as pessoas que, se as vacinas em testes se provaram eficazes, isso não significa que já se possa relaxar. A mensagem dizia: “Olá! É importante lembrar que, até o momento, não existem vacina, alimento específico, substância ou remédio que previnam ou possam acabar com a Covid-19. A nossa maior ação contra o vírus é o isolamento social e a adesão das medidas de proteção individual.”

Como foi o Ministério da Saúde que postou, muita gente acreditou que Jair Bolsonaro finalmente caíra em si e passara a admitir que as medidas restritivas são a única maneira de impedir a difusão do vírus da Covid-19 e que a cloroquina não funciona para curá-la, como afirmam os estudos médicos. Mas a ilusão logo se dissipou. Foi noticiarmos o tuíte e o Ministério da Saúde correu para apagá-lo.

É mais um episódio ridículo protagonizado pelo governo federal. Bolsonaro inspira medo em gente que tem receio de perder o emprego por fazer a coisa certa. E ele, na mais benigna das hipóteses, morre de medo de admitir que errou e mudar de atitude ou opinião sobre o que é evidente em direção contrária. Coisa de tiranete maricas, para colocar a situação nos termos que o presidente costuma utilizar.

Espero que ninguém tente me envenenar. Já basta o veneno moral que temos de engolir a cada dia.

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