MarioSabino

27.11.20

Quando comecei no jornalismo, havia os que escreviam e os que falavam — uns no rádio; outros na televisão. As exceções capazes de fazer os dois podiam ser contadas nos dedos. Eu pertencia ao primeiro grupo. Em posições de comando, só me sentia obrigado a fazer piadas em voz alta na redação e preleções à equipe que trabalhava diretamente comigo. Algumas tiradas eram boas, eu também podia ser ofensivo, mas tenho certeza de que na esmagadora maioria das vezes riam porque eu era o chefe, o riso esvaindo-se no momento em que eu virava as costas. Quanto às preleções, a minha loquacidade era proporcional à relevância do tema. Dizia o necessário, não me estendia muito, e depois de vinte minutos, mais ou menos, era tomado pela impaciência. Nos momentos em que desatei a falar, isso sempre se virou contra mim. Tenho o defeito de não perder a piada para ganhar inimigos. 

Não gosto de falar, a minha aptidão resume-se a escrever. Adestrei-me para isso. A habilidade adquirida com as décadas nunca teve muito valor, mas é assim que vinha ganhando o meu pão. Acostumado que estou a dividir o meu mundo profissional entre quem escreve e quem fala, o meu espanto com o sumiço dessa fronteira permanece grande desde que um monte de jornalistas que só escreviam agora também falam — e não são poucos os que mais falam do que escrevem.

Refiro-me aos profissionais que foram parar em programas de rádio, tevê e internet, com o enxugamento das redações. O meu espanto é admirativo. Eu nunca pensei que tantos pudessem ser tão loquazes a respeito de tantas coisas. Todos com discurso fluido, opiniões assertivas e grande capacidade de réplica no que chamam de debates. Adaptaram-se bem à realidade que mais ouve do que lê. Tento fazer o meu melhor nesse terreno lavrado para a profissão que está acabando tal como a conheci, mas sou um desastre. Minha dicção não é lá essas coisas e, como penso mais rápido do que falo, minhas frases são entrecortadas e tendem ao anacoluto. Repito termos, sem que configurem bordões, e uso muito o advérbio “né”. Para gravar podcasts, tenho de repetir a fala seis, sete vezes, e o resultado é invariavelmente ruim. E tudo é agravado quando tenho de aparecer: a iluminação é péssima e sempre há problemas no Wi-Fi, por mais que eu pague os olhos da cara por ele.

Às vezes ganho elogio pela participação no programa apresentado pelo Felipe Moura Brasil. Fico surpreso de verdade, porque falo apenas o que julgo ser obviedade espalhada em frases meio truncadas. Para além da generosidade de quem elogia, parece que as obviedades são artigo de primeira necessidade, e então lá vou eu, tentando acreditar que expressar obviedades é trabalho.

Com um monte de gente tendo de falar pelos cotovelos (noto ainda que passou a valer outra parte do corpo menos nobre), o mercado abriu-se para jovens palradores. Eles têm opinião sobre tudo e geralmente tecem considerações depreciativas sobre o que leem nos jornais. A crítica a jornais pode e deve ser feita, obviamente, mas acho curioso que muitos dos rapazes e moças afirmem ser jornalistas, apesar de nunca terem feito uma reportagem na sua vida de aparentemente longos 30, 35 anos, por aí. Nada contra pareceres de gente jovem — julgar não é monopólio de gente madura ou velha. Mas fico pasmo com as certezas absolutas sobre tudo transmitidas para milhares, quando não milhões, de ouvintes e espectadores. A juventude é pródiga em certezas absolutas sobre tudo, mas elas nunca tiveram um alcance como o de hoje. Ainda bem que as minhas certezas juvenis e absolutas sobre tudo ficaram restritas a poucas pessoas que já morreram ou esqueceram o que eu escrevi e disse.

Ter de emitir opiniões em áudio e vídeo é outro problema para mim. Quem fala no ar não escolhe assunto, é escolhido por ele, e eu simplesmente não me sinto obrigado a ter sempre juízos a respeito do que quer que seja. Até porque não tenho tanta estima assim pelas minhas opiniões, mesmo quando as tenho peremptórias, ao contrário de quem emoldura as próprias e pendura na parede. Se eventualmente vier a lançar outro livro com os meus artiguetes, será apenas para tentar pagar o resto do adiantamento que a editora Record me deu por obra que não escrevi (talvez saia mais barato para a editora deixar por isso mesmo). Quando entro em discussões sobre assuntos políticos, o sentimento de arrependimento é inevitável, ganhando ou não a parada. O Millôr escreveu numa dedicatória, acompanhada por um desenho seu, que eu era “homem de paz no meio do tiroteio”. Dado o meu histórico, parece só gozação, eu sei, mas a minha persona de jornalista provocativo me cansa, acredite. Ela fez com que se atribuísse a mim frases que nunca saíram da minha boca ou dos meus dedos (jornalistas, ao contrário do que se supõe, escrevem mais com os dedos do que com o cérebro). Tendões do ofício dos quais não reclamo tanto, ajudaram-me a me trazer até aqui.

Mesmo sendo homem acostumado a estar no meio do tiroteio, ando atordoado. Fala-se o tempo inteiro por inúmeros canais, e não há muito o que fazer sobre o fato, a não ser tentar desconectar-se. Conselho de velho, clichê espancado. Mas, se não sou um Matusalém, já estou naquela idade em que alguns de nós sonham com os silêncios e frases lacônicas que tornavam o tempo mais lento nos filmes de arte. O silêncio das igrejas sem missa está mais à mão e serve como quietude possível nas horas de pisar no freio. É um silêncio com eco. Pode ser que o meu sonho de quietude também se deva à vontade de estender o tempo quando se é mais velhusco.

Não há nada de triste ou depressivo no que escrevi. Sinto-me mais à vontade e alegre compartilhando impressões e sentimentos do que entrando na cacofonia da política. Ter essa chance é privilégio. Pode não ser exatamente útil, mas quem sabe alguns temas abordados por mim lhe toquem a alma. Se o resto é silêncio, como escreveu Shakespeare, contento-me em ser o resto.

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