RuyGoiaba

Os novos beatos

27.11.20

“A Vida de Brian”, de 1979, reconhecido hoje como o melhor filme do Monty Python, quase não saiu: um executivo da EMI, que financiaria o longa-metragem, achou o material blasfemo, e a produção foi abortada antes do início das filmagens. Sem dinheiro, a trupe de humoristas precisou recorrer a um amigo rico: o ex-beatle George Harrison, que tirou 4 milhões de dólares do bolso e hipotecou a própria casa para que o projeto — um “especial de Natal do Porta dos Fundos”, só que 40 anos antes e com gente talentosa — fosse em frente.

Os problemas do grupo continuaram depois que o filme entrou em cartaz. A história de Brian Cohen, que nasceu no mesmo dia (e no “estábulo vizinho”) de Jesus Cristo e, para seu desespero, era confundido com o Messias o tempo todo, provocou protestos veementes de grupos religiosos e teve sua exibição vetada em países como a Irlanda e a Noruega (coisa que os humoristas aproveitaram nos cartazes suecos do filme: “É tão engraçado que foi proibido na Noruega!”). Na época, John Cleese e os outros pythons se viram obrigados a dar uma série de entrevistas para dizer que não, o filme não era uma sátira à vida de Cristo etc.

Fiz toda essa volta no tempo para chegar a John Cleese hoje: aos 81 anos, o comediante britânico acaba de experimentar o gostinho de ser “cancelado” nas redes sociais por gente que o acusou de fazer comentários transfóbicos.

O imbróglio começou depois de ele ter assinado uma carta em solidariedade a J.K. Rowling, a autora dos livros da série Harry Potter, igualmente acusada de transfobia. Questionado sobre a carta por um dos seus milhões de seguidores no Twitter, o humorista respondeu mais ou menos o seguinte: “Infelizmente, não estou muito interessado em pessoas trans. Só espero que elas sejam felizes e que as pessoas as tratem com gentileza. No momento, estou mais focado nas ameaças à democracia na América, na corrupção galopante no Reino Unido, na terrível imprensa britânica, nas revelações sobre a brutalidade policial…”

Pronto: comoção, acusações de desrespeito (ou indiferença) ao sofrimento dos transgêneros e de “não deixar” que eles, elas ou elxs sejam o que querem ser, situação que Cleese só piorou quando ligou o modo piada (“no fundo, eu queria ser uma policial cambojana. Isso é permitido ou estou sendo pouco realista?”). Eu diria que pouco realista, talvez ainda menos realista, é esperar de um sujeito nascido no fim da década de 30 a mesma sensibilidade de um millennial. Mas, até onde sei, não houve queima de filmes do Monty Python nem do próprio Cleese — só virtual, o que, considerando a história da espécie humana, não deixa de ser uma evolução. Giordano Bruno, por exemplo, não teve a mesma sorte.

O disclaimer é necessário: não tenho nenhuma intenção de me envolver aqui em discussões sobre sexo e gênero, que deixo para os especialistas. Muito menos de minimizar perseguição e preconceito reais contra minorias, que não raro resultam em tragédias. Quero só falar de humor e dizer que o caso de Cleese, para mim, deixa claríssimo: os ditos “progressistas” são os novos beatos, os novos grupos protestando contra “A Vida de Brian”, e se apegam a suas causas com o fervor daqueles cristãos mortalmente ofendidos. Como alguém, pensam os beatos, pode OUSAR fazer piada sobre assuntos tão sérios? Esse era o sentimento básico dos que se ofendiam com as piadas do Charlie Hebdo sobre muçulmanos — e sabemos o que aconteceu quando o caldeirão do islamismo radical transformou esse sentimento em disposição para produzir um massacre.

Todo o discurso sobre o humor ter de “mirar no opressor, e não no oprimido” é também uma tentativa de cerceá-lo, de proteger certos grupos dessa coisa terrível e assassina que é uma piada (urge inventar um opressômetro para a gente saber, nos casos duvidosos, quem pode ser zoado e quem não). Eu entendo que ninguém, ou quase ninguém, goste de piada sobre as coisas que lhe são mais caras — incluindo os bolsominions que adoram apontar o dedo para o mimimi dos outros e são os seres mais mimizentos do Universo quando alguém sacaneia o grande ídolo deles. Mas é por isso mesmo que elas têm de ser feitas. Se possível com graça, com inteligência, com habilidade para olhar além dos preconceitos da época e nos oferecer a possibilidade de rir de nós mesmos.

Emmanuel Macron estava absolutamente certo quando, em discurso alusivo às vítimas do massacre do Charlie Hebdo, lembrou Voltaire e disse que “o direito de rir, zombar, ridicularizar e caricaturar (…) é a fonte de todos os outros direitos”. Portanto, queridos beatos de hoje e de ontem, deixem o velho rabugento Cleese em paz — quando mais não seja, pelos excelentes serviços prestados ao humor no mundo nos últimos 50 anos. No mais, vale o dito por outro grande humorista inglês, Ricky Gervais: “Você não está certo só porque se sentiu ofendido”.

***

DIEGO MARADONA (1960-2020)

Hoje não tem goiabice da semana. Ou melhor, tem: é esse pessoal da esquerda que, diante da morte de Maradona, tratou o grande craque como se o essencial nele fossem aquelas opiniões políticas de estudante barbudinho do DCE, com o futebol como detalhe quase irrelevante. E, no entanto, o argentino foi o que foi graças à unanimidade em torno de seu assombroso talento. Não há nenhum exagero em chamar Maradona de artista nem de gênio — o maior que vi jogar. A partida contra a Inglaterra em 1986, Copa que ele ganhou basicamente sozinho para a Argentina, resume a vida do homem: dois gols dele, uma trapaça (la mano de Dios) e uma obra-prima irretocável. Quem gosta de futebol não pode deixar de agradecer a Maradona pela alegria de tê-lo visto em campo. Rest in peace.

Carlo Fumagalli/Associated Press/Estadão ConteúdoCarlo Fumagalli/Associated Press/Estadão ConteúdoMaradona e a Copa carregados em triunfo depois da final de 1986, no México

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500
  1. Falando em Monty Python, eu me lembrei do filme: A História do mundo, em que Moisés recebe de Deus 3 tábuas da Lei, com 15 mandamentos e, quando vai anunciá-los ao povo, deixa cair 5, que se espatifam no chão, já que as tábuas eram de pedra, e foi assim que a humanidade só conheceu 10 deles, kkkkk! É inesquecível essa cena!

  2. Esses dias vi uma psicanalista falando de sexualidade e ela disse que a pessoa podia sentir prazer com um bife. Em seguida apareceu um comentário dizendo: que horror! Nem pensa na dor do animal. Estou até hoje sem saber se era piada, mas eu ri muito.

  3. hahahha. A fogueira só virtual realmente é um avanço da humanidade. A Vida de Brian é um filme hilário. Minha meta ao mirar na Inglaterra p estudar inglês era justamente assistir Monty Python sem legenda e entender as piadas

  4. Rui meu filho!!! nunca se desperdiça a chance de uma goiabice!!! Semana que vem tem q ter duas!!! Estou chateado que só li hoje!!! Grande abraço!!!

  5. Ah não. Nem vem. Goiabice não ocorrida.. pq devem ter tomado cuidado. Ninguém fez o clássico discurso de encomendação "do pó, ao pó".. Não sou mto fã de futebol.. então não fico com nada entalado na garganta ao dar uma debochadinha básica. Tirando fora a questão de q vício é mto triste. Pronto. Agora, fala sério.. o cara foi no enterro a mesma encrenca q foi em vida.. kkkk sinto.. mas é verdade. Qto a monte python.. toda razão em tudo, tudo q escrveu. Perfeito.

    1. Hahahaha. David Bowie já tinha adiantado. Ashes to ashes

  6. Cleese tem todo esse direito de discordar... aliás, toda unanimidade é burra, como dizia há décadas o nosso insuperável Nelson Rodrigues!

  7. A Vida de Brian realmente, para mim, é o melhor filme do Monty Python. A cena do centurião ensinando Brian a conjugar verbo em latim e, como castigo, a escrever 100 vezes nos muros hebraicos, corretamente, "romanos go home" é impagável.

  8. Excelente Goiaba ! Parabéns 👏👏👏👏. O que seria desse mundo e de nós sem o humor, a alegria, o riso, a gargalhada. Vida longa aos humoristas.

  9. Sei não...a criatividade...a liberdade de expressão está correndo risco...pensar que eu com 13 anos lia todos os livros que meu pai comprava...mesmo que escondida...e só me fizeram bem...

  10. Segunda-feira, amanheci identificando-me como anã. Do meu 1.74m tentei convencer meu marido a trocar os móveis. Ele não me deu a menor bola. Vou ali tomar cloroquina para ver se sinto-me melhor.😁

  11. Seo GOYABA- o sr sabe q o Maradona é paraguaio? É! Paraguaio; o papa também! Tudo paraguaio; a Argentina é um grande Paraguai- sendo assim, nos do bananão somos contra até na morte! Maradona era um anão que fazia gol de mão ( observe, por favor a rima) vagabundo, maconheiro e comunista- já Bolsonaro é primário simplório tosco e grosso

    1. ahaha queria achar uma rima com deus.. dono da mão.. mas só achei uma mto fraca.. Adorei os qualificativos.. kkk mas achei q passou um paninho pra 🤡.. afinal, tá quase no elogio.. (no caso dele.. naturalmente)..

    1. Nossa, sr Rogério, não gostou? Escrever q a opinião dos outros é baseada em falta de leitura, fá-lo sentir-se mais ledor?? kkkk Ok,mas pelo menos poderia postar um comentário com um pouco de estofo.. Gostaria de comentaristas personalíssimos, tais como os.. ditadores latinos? Nada mais personalizado no momento.. kkkk aliás.. os personalíssimos populistas quase ditadores latinos.. personalizando o uso do dinheiro do povo.. princípios.. bem, acho q tem mais fins, mas com PERSONALIDADE (de centrão)

    2. Caro Rogério, pode, por favor, indicar aqui algumas sugestões de obras com mais estofo? Obrigado

    3. irretocável, excelente....em que? Sou bastante eclético, porém, vejo que muita gente fica maravilhada com qualquer bobagem. Talvez seja falta de leitura de obras com mais estofo, ou até mesmo falta de personalidade e/ou princípios.

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