FelipeMoura Brasil

O futuro conservador

04.12.20

“Em vez de se alinhar com os princípios, que faltam a Donald Trump, os conservadores de longa data se esforçaram desconfortavelmente em apoiar suas posições. Isso não é natural e não é sábio, e devemos parar com isso. A política baseada na personalidade e não na filosofia não é o credo do conservadorismo. Quando os políticos se desvirtuam, julgamos suas falhas em relação a nossos princípios. Não reajustamos nossos princípios de acordo com seus interesses pessoais, como demonstra o caso paradigmático de Richard Nixon.”

O parágrafo acima, em tradução livre, consta em inglês no artigo “O futuro conservador requer otimismo e confiança”, publicado no portal americano The Dispatch pelo republicano John Bolton, embaixador da ONU no governo de George W. Bush e ex-conselheiro de Segurança Nacional do presidente Trump, que o demitiu em setembro de 2019.

Assim como o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta relatou no livro “Um paciente chamado Brasil” o que Jair Bolsonaro dizia e fazia nos bastidores, despertando o ódio dos bolsonaristas, Bolton relatou no livro The room where it happened (“A sala onde tudo aconteceu”) o que Trump dizia e fazia nos bastidores, despertando o ódio dos trumpistas.

Nenhuma ressalva que possa ser feita a Bolton, aos relatos ou à sua visão do presidente, porém, invalida a essência – sempre presente nesta coluna – daquele parágrafo de seu artigo de 30 de novembro, no qual critica a conduta pós-eleitoral de Trump “totalmente centrada” em Trump, como “toda a sua presidência”. “A política baseada na personalidade e não na filosofia não é o credo do conservadorismo.” Reajustar princípios de acordo com interesses de qualquer líder ou grupo político e ideológico é amostra de flexibilidade ou corrupção morais, alheias ao temperamento conservador. Edmund Burke e Joaquim Nabuco, por exemplo, preferiram perder oportunidades de reeleição parlamentar a reajustar os seus.

“James Buckley, senador do Partido Conservador por Nova York, foi o primeiro republicano a pedir a renúncia de Nixon”, exemplifica Bolton. “Na delegação do Congresso ao Salão Oval que disse a Nixon que ele deveria se demitir, [o também republicano] Barry Goldwater teve o maior impacto.” Bolton ainda cita Mike Shirkey e Lee Chatfield, os principais republicanos no Senado e na Câmara de Michigan, que se recusaram a derrubar o processo de contagem dos votos e certificação do resultado de seu estado; além do igualmente republicano Aaron Van Langevelde, que “discordou em termos claramente conservadores” das pressões trumpistas: “Temos um claro dever legal de certificar os resultados das eleições, conforme demonstrado pelos relatórios que nos foram dados… Não podemos e não devemos ir além disso. John Adams [um dos pais fundadores dos EUA, além de primeiro vice e segundo presidente do país] disse uma vez: ‘Somos um governo de leis, não de homens.’”

Bolton então conclama o Partido Republicano a seguir os exemplos de Shirkey, Chatfield e Langevelde. “Se esses três nativos de Michigan podem fazer isso, o resto de nós também pode.” Ele defende a “produção de documentação análoga ao Livro Negro do Comunismo, para servir como refutação definitiva das afirmações extravagantes e infundadas de Trump sobre ‘eleições roubadas’. Tal trabalho não convencerá todos os teóricos da conspiração, mas precisamos de um recital oficial da verdade, até mesmo enciclopédico, para uso futuro”.

“A longo prazo”, continua, “deve haver uma ampla ‘conversa’ sobre os rumos do movimento conservador e do Partido Republicano. Muito do caos que Trump causou é exclusivamente devido a seu ego, seu estilo público e sua distorção da filosofia conservadora básica. Não devemos ter ilusões de que retirar as lesões de Trump do corpo político será fácil. Muitos conservadores investiram em seu sucesso e ainda não recuaram. Mesmo assim, não adianta exigir que confessem o erro como um auto de fé. Precisamos, em vez disso, de uma abordagem ‘malícia para com ninguém, caridade para com todos’, que é totalmente justificada pela ameaça maior da esquerda democrata, seja de Biden ou de seus sucessores.”

Curiosamente, essa abordagem alude às palavras do ex-presidente Abraham Lincoln em 1865, ao final da Guerra Civil americana, recentemente também citadas pelo ex-ministro Sergio Moro como necessárias “durante essa pandemia e com essa polarização extremada”.

Vale registrar que a reação de Trump à crise do coronavírus é reprovada por 57,2% dos americanos e aprovada por 39,7%, segundo o site FiveThirtyEight. Entre eleitores independentes, que não são republicanos nem democratas, e que geralmente decidem a eleição, Trump teve um máximo de 46,2% de aprovação em 25 de março nesse quesito e ela foi caindo até atingir cerca de 35% no dia da eleição (3 de novembro), mantendo-se assim até o começo de dezembro. A campanha de Joe Biden, na prática, explorou com eficácia a percepção de que Trump agiu com mais malícia que caridade durante a pandemia.

Na oposição a Biden, a questão agora, segundo Bolton, “é se procedemos no modo Trump, minando ainda mais a integridade e a legitimidade de nossas instituições, ou se lutamos como verdadeiros conservadores, atacando as políticas de esquerda sem despojar as bases do florescimento da América”. “Nosso objetivo deve ser restaurar para o conservadorismo um otimismo e uma confiança inequivocamente reaganistas” (em referência ao ex-presidente Ronald Reagan, republicano que governou o país de 1981 a 1989)… Podemos, assim, reconquistar os eleitores que Trump alienou, mas também manter os que ele atraiu… Assim como os democratas quase estragaram suas perspectivas para 2020 repetindo incessantemente o ‘conluio russo’, poderíamos fazer o mesmo relitigando ‘o roubo’ apenas para gratificar a fantasia de Trump… É muito mais fácil evitar essa calamidade falando agora, em vez de esperar até que mentes e memórias sejam endurecidas pela sua logorreia não refutada”.

Se nem mesmo o legado judicial conservador de Trump – ver meu penúltimo artigo – absolve os demais conservadores americanos de tamanha adesão a suas posições personalistas, sobretudo em 2020, o que dizer dos falsos conservadores brasileiros que passam pano para a sujeira do bolsonarismo, incluindo os crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa denunciados pelo MP do Rio de Janeiro?

O papel da claque bolsonarista vinha sendo endurecer nas mentes e memórias do povo a logorreia de Jair Bolsonaro (não raro, emulada de Trump), alegando que “senão o PT volta”. Nas principais cidades do país, porém, o povo não votou nos candidatos do presidente, nem nos do PT, mostrando que existe margem para uma alternativa em 2022 a estelionatários eleitorais beligerantes de ambos os lados.

A derrota nas eleições municipais não tornou Dom Bolsonaro del Centrão mais moderado e equilibrado, o que foge à sua natureza bruta, mimada e aloprada; apenas turbinou entre bolsonaristas os ataques boçais (“traidor!”, “vendido!”) a pessoas mais coerentes e sensatas, como Moro e jornalistas independentes, que conservam seus princípios morais e não dependem de favores políticos.

O futuro conservador – e brasileiro como um todo – requer refutação e resiliência contra populistas usurpadores e seus devotos de personalidade, verba publicitária, mesada empresarial, boquinha e rachadinha.

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