RuyGoiaba

Anotações para um bestiário do Brasil

11.12.20

Todo mundo já ouviu aqueles textos de apresentação do “Globo Repórter” que, com a narração antiga de Sérgio Chapelin ou a nova de Sandra Annenberg, são mais ou menos deste jeito: “Os habitantes desse exótico país chamado Brasil —quem são? Como vivem? Do que se alimentam? Como ainda não exterminaram totalmente uns aos outros? Nesta sexta, no ‘Globo Repórter’”.

Outro dia me dei conta de que essa frase —uma adaptação daquele “quem, quando, como, onde, o quê e por quê?” que está no poema de Rudyard Kipling e em todos os manuais de jornalismo— deve ter raízes nos bestiários da Idade Média. Trata-se daqueles catálogos de animais reais e imaginários, produzidos por monges, que descreviam o aspecto dos bichos, os lugares em que viviam, o que comiam (geralmente, gente) etc. E, no fundo, o jornalismo é um pouco isso: nós, monges copistas no meio da pandemia (de máscara), ganhamos a vida batucando em nosso teclado as descrições das bestas mais fantásticas.

Sempre tive pena dos arqueólogos do porvir —da galera do ano 2320 que, tempos depois de o Brasil ter acabado, passará vidas inteiras tentando decifrar vestígios de nossa estranha civilização como aquele adesivo NO VACA YES DROP. Assim, sinto-me obrigado a contribuir com pelo menos alguns esboços do que seria um bestiário do Brasil de 2020, com seus animais mais inacreditáveis. Não tenho a menor pretensão de que este texto atravesse os séculos, mas vai que o apocalipse nuclear destrói tudo, menos as baratas e as colunas do Ruy Goiaba, né? Não posso fugir à responsabilidade para com xs humanxs do futuro.

* Os petistas que acham a Venezuela democrática porque “tem eleição”

Dá para dedicar tranquilamente um capítulo do bestiário à “seita do Lula”, cuja ilustração perfeita é Gleisi Hoffmann. Só nas últimas semanas, a presidente do PT conseguiu louvar como grande desempenho a tunda que o partido levou nas eleições municipais (“ganhamos 4 de 15 cidades”, o que equivale mais ou menos a dizer que o Brasil goleou a Alemanha por 1 a 7) e, para a surpresa de ninguém, elogiar a “eleição legislativa” de Nicolás Maduro na Venezuela, aquela sem participação da oposição e com abstenção de 70%. “Ter eleição” até a ditadura militar brasileira tinha: deixar a oposição ganhar e governar, ah, aí já é demais.

* O liberal que quer impedir os outros de se vacinarem

Romeu Zema e Ronaldo Caiado ficaram muito chateados com o anúncio de João Doria de que iniciará a vacinação em São Paulo no dia do aniversário da capital paulista. É populismo, é arriscado, a Anvisa nem liberou nada etc. OK, mas pelo visto eles não querem que o governo federal igualmente populista que apoiam acelere o processo no país —querem que SP atrase o seu! Antes morrerem mais alguns milhares de paulistas no ano que vem que Caiado e Zema serem chamados de incompetentes. Eles são mesmo, mas ai de você se disser isso.

* O fedelho que dá lições de geopolítica

Filipe Martins, o pirralho que brinca de assessor internacional desse governo infantilizado, escreveu que Doria coloca SP “nas fileiras da tirania global contra a luta do governo federal por mais liberdade” —e, sim, ele falava da vacina. Será possível que esse oligofrênico acha mesmo que o discurso da “liberdade antivacina” da bolha de direita em que ele vive é popular no Brasil? Já pôs o narizinho fora das redes sociais? Não percebe que os brasileiros devem se ESTAPEAR pela vacina de um jeito ainda pior que na promoção de aniversário do supermercado Guanabara? Até o chefe dele demorou, mas enfim percebeu.

* O ministro da Saúde que tem dúvidas sobre a demanda por vacinação

A besta mais extraordinária desta brevíssima coleção —de modo algum completa— é o general que ocupa o Ministério da Saúde de um país com quase 180 mil mortos por Covid-19 e diz NÃO SABER se haverá demanda por vacinação enquanto todo o resto do mundo começa a se imunizar. É um grau de descolamento da realidade que fica até simpático no louquinho do bairro, mas vocês jamais confiariam no louquinho do bairro na hora de fazer um plano de vacinação para 210 milhões de habitantes. (Se bem que vocês confiaram no louco da Barra para gerir o país: espero que estejam satisfeitos. E esse negócio de bestiário do Brasil requer a paciência e os braços de um milhão de monges.)

***
PAOLO ROSSI (1956-2020)

Vou dispensar a goiabice da semana para contar uma historinha pessoal. Na Copa de 1978, a “semifinal” Brasil x Polônia —entre aspas porque não era exatamente essa a fórmula do torneio— foi no dia do meu aniversário de oito anos. A seleção de Cláudio Coutinho ganhou por 3 a 1. A Argentina, dona da casa e concorrente direta do Brasil, entrou em campo depois, já sabendo de quanto precisava ganhar do Peru para ir à final: ganhou de 6 a 0, num jogo que até hoje envolve acusações de suborno. Lá pelo quarto gol dos argentinos, saí da minha festinha furioso, talvez xingando o juiz, e fui chorando para o meu quarto.

Dei essa volta para dizer que, em 1982, eu já era um calejado torcedor de 12 anos quando Paolo Rossi —que morreu nesta quarta, 9, aos 64 anos— meteu aqueles três gols com que a Itália eliminou a seleção de Telê Santana, muito superior à de Coutinho. Fiquei triste e certamente xinguei o Bambino d’Oro, mas a “tragédia do Sarriá” não foi para mim —graças a 1978— o evento traumático que foi para quase todos os amigos da minha geração. E Rossi, que partiu ainda jovem (era apenas quatro anos mais velho que Maradona), tem méritos de sobra para um lugar de honra no panteão de nossos carrascos. Rest in peace.

Leo Mason/Action Plus/DiaEsportivo/FolhapressLeo Mason/Action Plus/DiaEsportivo/FolhapressRossi na final de 1982, em que fez um dos gols do 3 a 1 da Itália sobre a Alemanha

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