Combate à corrupção: há o que comemorar?

11.12.20
Márcio Adriano Anselmo

No último dia 9 de dezembro, comemoramos o Dia Internacional de Combate à Corrupção, data instituída internacionalmente pela ONU desde a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, conhecida como Convenção de Mérida. Entretanto, a grande pergunta que cabe uma reflexão nesse momento é: há o que comemorar? Em breve retrospecto, o Brasil saía às ruas em junho de 2013, no que ficou conhecido como “Jornadas de Junho”, cujo foco inicial era o aumento dos preços dos transportes públicos e em poucos dias se transformou num grande movimento nacional em busca do fim da corrupção que assolava o país. O movimento se seguiu ao longo de vários anos até que chegamos em 2020.

Passo a destacar dez elementos que devem nos guiar nessa reflexão:

1. Prisão em segunda instância. O tema, um dos maiores avanços jurisprudenciais de nossa história, foi revisto pelo Supremo Tribunal Federal no final de 2019, pelo placar de 6×5, em votação que ironicamente se encerrou dois dias antes da celebração dessa data no ano passado.

2. Pacote Anticrime. O projeto apresentado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro, buscando modernizar o sistema de Justiça penal, foi aprovado em 11 de dezembro do ano passado, dois dias após o Dia Internacional de Combate à Corrupção. Ironicamente, o texto legal que deveria ser um aperfeiçoamento da nossa legislação merece a alcunha de pacote pró-crime, pois sua versão final está longe de fortalecer o combate à corrupção por meio de medidas legislativas, fruto de tanto anseio da população. Pelo contrário, apenas foram recrudescidas medidas que tendem a reforçar o incremento da nossa já altíssima massa de encarcerados.

3. Suspensão de investigações utilizando relatórios do Coaf. Ainda no ano passado, assistimos a uma suspensão, por quase seis meses, de todas as investigações e processos frutos de intercâmbio de informações com o Coaf, uma das instituições mais eficientes da administração pública brasileira. Felizmente, a decisão foi revista.

4. Lei de Abuso de Autoridade. Aprovada em agosto de 2019, com vários vetos derrubados pelo Congresso, entrou em vigor em janeiro deste ano. Aplaudida de pé pelos arautos da moralidade, vários dos dispositivos da lei são um prato cheio para atacar autoridades públicas que atuam na persecução criminal.

5. Reforma política. O tema que pautou muito das promessas nas últimas eleições foi completamente esquecido e em nada avançamos no sentido de corrigir erros do passado que nos levaram à corrupção institucionalizada.

6. Prerrogativa de foro. Considerado como um dos grandes escudos para evadir-se da responsabilização criminal, em que pesem os avanços jurisprudenciais nos últimos anos, o tema também permanece sem progredir. Muitos dos agentes políticos beneficiados por casos de corrupção na última década continuam sem ser responsabilizados criminalmente.

7. Lei de Proteção de Dados para segurança pública e persecução penal. Mais um anteprojeto de lei que, em conjunto com a Lei de Abuso de Autoridade, tem tudo para ser a pá de cal nas investigações criminais dos poderosos, podendo trazer até a sua aprovação barreiras intransponíveis para a investigação criminal.

8. Alterações na Lei de Lavagem de Dinheiro. Foi criada neste ano comissão de juristas visando discutir talvez um dos melhores instrumentos legais que temos no Brasil. Entre os temas a serem tratados, destacam-se: a relação da lavagem de dinheiro com a prática de caixa 2, a questão da prescrição do crime, e a necessidade de ampla defesa dos acusados. Ao que parece, mais uma tragédia anunciada!

9. Corrupção e Covid-19. Se não bastassem os escândalos de corrupção ao longo da nossa história, neste ano assistimos a dezenas de casos de desvios de verbas destinadas ao combate à pandemia de Covid-19. Na maior crise sanitária dos últimos tempos, com mortes aos milhares, não faltou quem se aproveitasse.

10. Descalabro. Se não bastassem todos esses pontos, eis que na data em que se celebra o Dia Internacional de Combate à Corrupção, em um ano marcado pela pandemia do Covid-19, assistimos à deflagração da Operação Descalabro, que aponta desvios de verbas em emendas parlamentares por meio do direcionamento de licitações em fraudes que podem chegar a 15 milhões de reais.

Por fim, para não falar apenas de coisas ruins, deve-se destacar o Plano Anticorrupção 2020/2025 divulgado recentemente, uma iniciativa que merece louvor e que talvez seja o pouco que temos a comemorar no último ano em matéria de luta contra a corrupção. O documento técnico pode ser um norte, caso exista um sério compromisso nacional em segui-lo.
Entretanto, os grandes temas ainda permanecem sem solução. Precisamos, mais que nunca, de um grande pacto nacional para que as instituições busquem corrigir os erros do passado e que a corrupção seja, de fato, uma página virada na nossa história.

Há uma expressão que foi utilizada pelo juiz da Suprema Corte Americana, Potter Stewart, no caso Jacobellis v. Ohio: “I know it when I see it”, ou “eu sei quando eu vejo”. Embora utilizada em outro cenário, pode ser  transposta para o ambiente de corrupção. Depois desses dez pontos, coloquemos nossa cabeça no travesseiro e busquemos refletir: tivemos algo a comemorar nesse dia 9 de dezembro ou continuaremos apenas a saber quando vemos?

Delegado de Polícia Federal* e Doutor em Direito (*este artigo é opinião pessoal do autor e não reflete qualquer posição institucional)

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