Zanone Fraissat/FolhapressO grupo J&F, que controla a JBS, destituiu a equipe responsável pela reveladora auditoria interna

Os relatórios confidenciais da J&F

Documentos do acordo de leniência da holding revelam que a JBS omitiu da Justiça informações importantes em sua delação, o que a coloca novamente em xeque. Há ainda novos detalhes de repasses feitos a ministros do atual governo e ao Instituto Lula
11.12.20

Crusoé teve acesso com exclusividade a relatórios sigilosos produzidos por uma auditoria interna da J&F, controladora da JBS. Até agora inédito, o calhamaço de 525 páginas é o resultado de investigações contratadas pela própria holding, em 2019, no cumprimento de uma condição imposta pelo Ministério Público Federal para a celebração do acordo de leniência da empresa, no âmbito da Operação Greenfield. Para se ter uma dimensão da importância do material, a J&F, aparentemente incomodada com o desenlace da auditoria que ela mesma contratou, destituiu em maio deste ano o grupo responsável por acompanhar a produção dos relatórios. Isso à revelia do MPF, que acionou a Justiça Federal em Brasília, alegando desobediência aos termos da leniência. No lugar dos demitidos, a J&F escalou nomes de sua estrita confiança — um deles já era advogado da holding.

À época, a decisão da J&F de dissolver o conselho responsável pela auditoria ainda estava revestida de mistério. Agora, tudo começa ficar mais claro. A documentação obtida por Crusoé, que integra o acordo de leniência da empresa com o MPF, revela que a companhia omitiu informações importantes à Justiça em sua delação à Procuradoria-Geral da República, como a relação nada republicana com a desembargadora Maria do Carmo Cardoso, do TRF-1, e a existência de uma rede bilionária de contas de propina no exterior, o que pode colocar em xeque o acordo de colaboração premiada. Há ainda novos detalhes de repasses feitos a ministros do atual governo e ao Instituto Lula. Dos papéis, estão ausentes explicações sobre os pagamentos do grupo ao ex-advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef – os repasses foram revelados por Crusoé, em agosto.

A desembargadora e o pedido de emprego para uma parente

Segundo a auditoria interna da J&F, às 14h do dia 28 de junho de 2016, a desembargadora Maria do Carmo Cardoso encaminhou de seu e-mail funcional do Tribunal Regional Federal da 1ª Região um pedido pessoal ao chefe do jurídico da J&F, Francisco de Assis e Silva. “Caro Dr. Francisco (…) Creio que Renata (Gerusa Prado de Araújo, filha da magistrada) já tenha lhe falado sobre Nayara, irmã de Najla, mãe da minha netinha. A jovem recém-formada em veterinária que está se candidatando a uma vaga no complexo industrial da JBS. Conto mais uma vez com seu apoio”, encerrou a desembargadora, afetando intimidade com o então diretor jurídico da J&F e dando a entender que ele já havia lhe feito favores em outras ocasiões. De acordo com os documentos internos, Francisco de Assis repassou a mensagem da magistrada ao então presidente da Divisão de Carnes da JBS, a quem caberia acionar a direção de Recursos Humanos. “Me ajude nisso que é importante”, escreveu. Ainda no corpo do mesmo e-mail, o diretor jurídico fez outro pedido, dessa vez em tom de alerta: “Manda apenas o CV (currículo). Cuidado com parte do e-mail”, afirmou, deixando claro que não gostaria que a mensagem enviada pela magistrada chegasse ao conhecimento do diretor da área de Recursos Humanos.

A troca de e-mails não consta da delação da empresa e é mais uma amostra das relações próximas demais da JBS com setores do Judiciário. Àquela altura, Renata Gerusa, — filha da desembargadora que disse contar “mais uma vez com o apoio” do diretor jurídico da empresa, agora para empregar sua parente recém-formada, — já pertencia aos quadros da J&F: fazia parte do seu time de advogados. Ao lançar luz sobre o conteúdo dos e-mails, como quem demonstra preocupação, a própria auditoria contratada pela J&F lembra que a advogada, filha da magistrada, já havia recebido 3,8 milhões de reais da JBS entre 2014 e 2017 de honorários advocatícios. Também menciona o fato de Renata ter sido investigada por suposta compra de decisões de ministros do Superior Tribunal de Justiça. O inquérito brotou de uma denúncia feita por seu ex-marido à PGR, a quem entregou um acervo de mensagens de WhatsApp, e-mails, e áudios nos quais Renata e Francisco de Assis falam sobre seus métodos para obter decisões favoráveis na corte. A investigação, no entanto, foi arquivada pelo ministro Edson Fachin, a pedido da ex-procuradora-geral Raquel Dodge, em fevereiro de 2019.

Os responsáveis pelos relatórios de auditoria da J&F chegam a questionar Assis sobre a sua relação com a desembargadora Maria do Carmo Cardoso e sua filha, a advogada Renata Gerusa Prado. Ele disse ter conhecido Renata por meio de seu pai, em 2012, e que todos os pagamentos a ela teriam sido lícitos, “muito menos por motivos de contatos com quaisquer magistrados”. Sobre o pedido da desembargadora em favor da neta, o executivo jurou que “a contratação não veio a ocorrer efetivamente”.

Levantamento no Tribunal Regional Federal da 1ª Região mostra que Maria do Carmo relatou pelo menos quatro processos que envolvem a holding. Atualmente, a magistrada é casada com Amauri Cezar Piccolo, homem de confiança do ex-presidente José Sarney que foi alvo de buscas e apreensões na Operação Lava Jato por estar supostamente envolvido num esquema de pagamento de propinas na Transpetro. Piccolo mantém laços importantes na política brasiliense. Foi por meio dele que Maria do Carmo se aproximou do senador Flávio Bolsonaro, filho 01 do presidente. A amizade com o clã Bolsonaro lhe rendeu a indicação de sua outra filha, Lenisa Prado, para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade. Maria do Carmo também foi uma das madrinhas da indicação de Kassio Marques ao STF.

Em e-mail ao diretor jurídico da J&F, a desembargadora Maria do Carmo Cardoso pede emprego na JBS para sua parente e diz contar “mais uma vez” com o apoio dele
O chefe do jurídico da J&F encaminha o pedido da desembargadora e diz que “é importante” que seja resolvido

Os ministros de Bolsonaro

Ao se debruçar sobre transações financeiras efetuadas pela J&F, os auditores também avançaram sobre casos envolvendo ministros do governo Jair Bolsonaro. Um deles é a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, mencionada em um dos relatórios de auditoria da J&F. Uma das formas utilizadas pela JBS para lavar dinheiro era a compra de “gado fictício”, o famoso boi de papel. A operação servia para dar ares de legalidade a gastos totalmente ilícitos. Ao fazer um pente fino sobre essas transações, que totalizaram 3,3 milhões de reais, a investigação interna encontrou um repasse ao espólio da mãe da ministra. O contrato teria sido firmado em 2012, no valor de 100 mil reais e, depois, rescindido. “Todavia, o Espólio somente devolveu à JBS R$ 50 mil do valor inicialmente recebido, de forma que os outros R$ 50 mil foram registrados contabilmente como perda da companhia, em benefício do espólio”, diz o relatório. No documento, os próprios investigadores ressaltam que, na condição de secretária de Desenvolvimento Agrário do Mato Grosso do Sul, a atual ministra havia concedido benefícios fiscais à JBS em 2008, quatro anos antes da operação que a beneficiou. Na delação da JBS, os executivos da empresa afirmam ter pago propina ao ex-governador do estado André Puccinelli como contrapartida aos incentivos fiscais assinados por Cristina, mas não detalharam a atuação da então secretária.

O advogado Dorvil Vilela Neto, que representa a ministra Tereza Cristina, afirmou à reportagem que “a produtora rural Maria Manoelita [mãe da ministra], e depois seu espólio, celebrou negócios com o nomeado grupo, os quais foram encerrados em âmbito judicial, quando todos os débitos que o espólio possuía com a outra parte foram devidamente quitados, inclusive com comprovação nos processos e homologação do Poder Judiciário”. “Eram negócios privados do espólio da mãe da ministra e que, portanto, não tinham qualquer relação com a atividade pública da filha”, disse.

Nas suas investigações, os auditores também cruzaram planilhas de propinas entregues pelos delatores à PGR com o caixa da holding e, com isso, conseguiram confirmar pagamentos a intermediários e a empresas ligadas a outros políticos graúdos. Foi o caso, por exemplo, dos repasses da JBS ao advogado Erick Wilson Pereira, a quem caberia fazer a ponte com o atual ministro das Comunicações, Fábio Faria. Essa é uma situação que se distingue da anterior, envolvendo a ministra Tereza Cristina, uma vez que esse trecho da auditoria apenas reforça o que já consta do acordo de colaboração premiada da JBS – ou seja, pode não complicar a empresa, mas pode complicar o ministro.

Erick Wilson Pereira aparece na delação de Ricardo Saud, ex-diretor de Relações Institucionais da J&F. Saud disse ter repassado 10 milhões de reais em propina para Fábio Faria e seu pai Robinson Faria, ex-governador do Rio Grande do Norte. Parte desse valor por meio de Erick Wilson Pereira e o restante por intermédio de empresas ligadas à família Faria. Em setembro de 2018, a investigação sobre o atual ministro foi arquivada pela ex-procuradora-geral, Raquel Dodge. “Em duas ocasiões, a ministra Rosa Weber e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, em concordância com a PGR, reiteraram decisão de arquivamento do processo”, argumentou Fábio Faria por meio de sua assessoria. Ocorre que as transferências a empresas associadas ao clã Faria foram confirmadas pela auditoria. Bem como o repasse de ao menos 1,5 milhão de reais para Fábio Faria via o advogado Erick Wilson Pereira.

Auditoria da J&F menciona contrato para aquisição de gado com a mãe da ministra Tereza Cristina
Planilha revela repasses ao ministro das Comunicações, Fábio Faria, como também a outros políticos como Eduardo Cunha e Henrique Alves

Repasse não justificado ao Instituto Lula

Entre os anos de 2007 e 2017, a J&F teria registrado, em seu caixa, mais de 14 bilhões de reais como “outras contas a pagar”. Questionada pelos auditores, a holding diz que o termo fazia referência “a fornecedores/prestadores de serviços (pessoa física ou jurídica) que não possuem cadastro no sistema, ficando a descrição de forma livre ao usuário que registra o pagamento”. Em meio a esses repasses, foi encontrado um pagamento de 2 milhões de reais ao Instituto Lula, que não está contemplado na delação da empresa. Joesley disse que a doação foi realizada a pedido de Paulo Okamotto, presidente do Instituto, depois de ele se encontrar pessoalmente com Lula pela primeira vez. A doação, segundo ele, teria sido regular e sem contrapartida. Mas, segundo os auditores, a “J&F não apresentou documentação suporte para o referido pagamento”. Procurado por Crusoé, Okamotto afirmou que, em 2013, um ano antes do repasse, buscou empresários para fazerem doações ao Instituto Lula. “Em 2013, a gente sabia que haveria eleição em 2014, e nós somos uma entidade que vive de doações de pessoas físicas e jurídicas. Então, para fazer um planejamento de trabalho é muito importante você ter um fundo, né?”.

Documento mostra doação da JBS ao Instituto Lula de 2 milhões de reais

As contas secretas da propina

As auditorias internas identificaram um emaranhado de contas e empresas de fachada com sede em paraísos fiscais, como o Panamá e Suíça, jamais reveladas pela JBS em sua delação à Procuradoria-Geral da República. Essas contas abasteciam doleiros usados para fazer pagamentos ilícitos no Brasil. A estrutura societária composta por doze empresas que movimentavam valores vultosas recebe o nome de “The Nebbia Trust”. Associadas a ela, estão, por exemplo, três empresas com o nome de “Unifleisch”. Recentemente, uma reportagem do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos mostrou que essa offshore despertou a atenção do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos por ter realizado transações suspeitas no exterior. De acordo com os relatórios obtidos por Crusoé, uma “Unifleisch” foi usada como intermediária em importantes aquisições da JBS, como a da National Beef, que alcançaria a cifra de 560 milhões de dólares. A compra, no entanto, foi vetada pelo Departamento de Justiça americano, em 2008, em razão do seu efeito anticompetitivo. Outra aquisição intermediada pela empresa de fachada foi a do frigorífico Smithfield, no valor de 565 milhões de dólares – o negócio contou com o financiamento de mais de 900 milhões de reais do BNDES. Segundo delatores, os aportes contaram com o aval e a influência do ex-ministro da Fazenda de Dilma Rousseff, Guido Mantega.

Segundo as auditorias, 95% dos valores pagos pela JBS à Unifleisch eram repassados a outras duas contas – a Valdarco e a Lunsville – usadas como caixa para fazer repasses irregulares em esquemas da JBS no Brasil. Interrogado pela equipe de auditores, um dos executivos da J&F, Demilton de Castro, reconhece: “As vendas existiam, eram pagas comissões para a Unifleisch, que repassava parte desse dinheiro para a conta da Valdarco, parte para a Lunsville. Quando eu precisava de dinheiro em espécie eu recorria ao doleiro. Às vezes ele me mandava o valor em espécie aqui no Brasil e eu transferia para eles em contas no exterior”.

Toda esta estrutura de contas bancárias na Suíça e de empresas no Panamá foi objeto de questionamento à cúpula da J&F. No entanto, segundo o relatório, “nem mesmo os Srs. Joesley Batista e Wesley Batista souberam esclarecer do que se tratava”. Joesley, em dado momento, alegou que uma das contas era de uso pessoal. “Conta minha, totalmente minha. Não me lembro exatamente o detalhe técnico, mas se não me engano era assim: era uma empresa aberta em meu nome, empresa sediada não sei onde… uma empresa de papel, uma ‘paper company’ vamos dizer assim, em meu nome. Abri a conta dessa empresa. Eu que assinava e era só tipo um reservatório de dinheiro”, disse.

Em relatório, um dos executivos da J&F, Demilton de Castro, admite operação das contas Valdarco e Lunsville por meio de doleiros

A ausência de Wassef

Conforme antecipou Crusoé em agosto, o ex-advogado da família Bolsonaro Frederick Wassef recebeu pagamentos de 9,8 milhões de reais da JBS nos últimos cinco anos, segundo relatório do Coaf. Crusoé também revelou que o presidente Jair Bolsonaro intercedeu junto ao procurador-geral da República, Augusto Aras, para que Wassef fosse recebido na sede da PGR no fim do ano passado para tratar do acordo de delação premiada da JBS. Quem o recebeu foi o subprocurador-geral José Adonis Callou, mas a conversa foi rapidamente encerrada depois de Wassef ser indagado se ele tinha procuração para tratar dos interesses da JBS. Ele respondeu que não. No início da audiência, o advogado teria dito que seria uma injustiça a anulação da delação da empresa.

Crusoé apurou que a revelação dos pagamentos a Wassef surpreendeu os auditores que participaram da investigação sobre a holding. É que se pressupunha que a J&F e as suas empresas abrissem totalmente as suas contas para o escrutínio da equipe contratada. No entanto, eles nunca tomaram conhecimento de qualquer relação da JBS com o advogado do clã presidencial. Dessa forma, nas mais de 500 páginas de relatório, não há sequer uma menção aos repasses. O grupo empresarial também tem se esquivado de explicar as transações com Wassef para o Ministério Público Federal. Atualmente, a holding obteve uma decisão judicial que proíbe o MPF de ter acesso a documentos que eventualmente comprovem que Wassef realmente atuou em favor da JBS.

Apesar de não serem necessariamente conclusivos, uma vez que não era esse o propósito, os relatórios obtidos por Crusoé revelam informações sensíveis que podem fazer renascer inquéritos sobre importantes autoridades e pôr novamente na berlinda os delatores da JBS – ou até mesmo anular a já polêmica delação. Embora os documentos atestem que há omissões e importantes lacunas na delação e o próprio acordo de leniência com a Operação Greenfield estar ameaçado na Justiça, pelo fato de aparentemente a J&F não ter gostado do resultado da auditoria e dissolvido a equipe que ela mesma contratou para fazer uma devassa na empresa, os irmãos Batista tiveram seus acordos de delação premiada repactuados pela Procuradoria-Geral da República nesta semana. A mesma PGR de Augusto Aras que recebeu Wassef com tapete vermelho no fim de 2019, a pedido do presidente da República e com recomendações expressas do próprio procurador-geral, justamente para tratar da manutenção da delação da JBS.

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