Ministério das Relações Exteriores da Espanha"Em qualquer democracia você tem que respeitar a oposição", diz o embaixador sobre a Venezuela

‘A confiança no Brasil foi perdida’

Embaixador da União Europeia no Brasil elogia o diálogo aberto com o vice-presidente Hamilton Mourão, mas diz que o país precisa mostrar resultados no combate ao desmatamento da Amazônia para restabelecer a confiança dos europeus
18.12.20

Economista de formação e diplomata lapidado nos corredores do Palácio de Santa Cruz, sede da diplomacia da Espanha, Ignacio Ybáñez – embaixador da União Europeia no Brasil desde julho do ano passado – está prestes a completar 32 anos na carreira diplomática. Nos últimos meses, ele tem usado sua experiência em favor da celebração do acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul que, para ele, esteve ameaçado em razão da política ambiental do governo Bolsonaro. Os obstáculos, segundo ele, começaram a ser removidos pelo vice-presidente Hamilton Mourão no comando do Conselho da Amazônia. “Reconhecemos os esforços recentes do governo e esperamos que comecem a produzir resultados para restabelecer a confiança que a Europa perdeu no Brasil”, reconhece.

O embaixador ressalta que, a despeito do discurso de Jair Bolsonaro, a soberania brasileira sobre a Amazônia é indiscutível. Mas faz um alerta. “Nós não temos nenhuma dúvida de que a Amazônia, em sua parte de brasileira, é brasileira. O que nós dissemos é que essa soberania se exerce através do cumprimento das leis e dos regulamentos que são estabelecidos”.

Ao traçar um panorama sobre a América Latina, Ybáñez diz acreditar que há um racha na política da região, polarizada entre países alinhados ao bolivarianismo de Nicolás Maduro e o eixo integrado pelo Brasil e “grande parte do mundo” que não reconhece o chavista como legítimo presidente da Venezuela. Após as eleições legislativas de fachada vencidas pela ditadura, no entanto, sua  perspectiva ainda é mais pessimista. “Depois das eleições a situação não ficará mais fácil, pelo contrário, se complica porque as posições vão se radicalizar dos dois lados”, aponta.

Diante do fogo cruzado, os europeus confiam no “peso internacional do Brasil” para participar do diálogo sobre temas estratégicos para a aliança entre UE e Estados Unidos que vem sendo incentivada pelo Velho Mundo em contatos com o presidente eleito dos EUA, Joe Biden. Na pauta, podem entrar assuntos como o 5G e o Acordo de Paris, ainda que Brasília e Bruxelas tenham posições contrárias neste assunto. A expectativa é que, assim como a aproximação com Mourão na questão da Amazônia, negociadores da Europa consigam abrir um diálogo com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na seara climática.

Dezenas de países e grupos internacionais condenaram as eleições legislativas da Venezuela. O que será feito a seguir?
Quando o regime anunciou que ia convocar eleições, a primeira reação da União Europeia foi ‘bom, vocês podem fazer isso, mas tem que fazer com garantias mínimas’. Em qualquer democracia você tem que respeitar a oposição. Não pode, logicamente, fazer repressão contra a oposição – o que tem sido feito na Venezuela nos últimos tempos –, tem que estabelecer um sistema onde as regras do jogo sejam respeitadas. Tem que ter o tribunal eleitoral que seja realmente reconhecido pela população e pelos diferentes partidos políticos. Fizemos até um esforço extra. O alto representante da União Europeia (Josep Borrell) pediu ao diretor político e ao número dois na área da América Latina que fizessem uma viagem à Venezuela para falar com todos os atores envolvidos. E foi o que fizeram. Mantiveram conversas com o regime, com a oposição, com a equipe do próprio Guaidó, e tentaram ver se era possível um entendimento. Mas o regime não aceitou e manteve as eleições. Então, anunciamos que não íamos reconhecer eleições em que requisitos básicos não são cumpridos.

Como fica daqui para frente?
A dificuldade é como continuar a nos relacionar com o regime e, ao mesmo tempo, trabalhar com a oposição em favor de uma transição no caminho da democracia. É preciso ver como cada um dos atores na Venezuela vai se posicionar. Um dia depois das eleições, os ministros das Relações Exteriores da União Europeia tiveram uma reunião. Depois do encontro, a União Europeia se posicionou. Agora vamos continuar tentando uma solução. A intenção é falar logicamente com todos os parceiros, com o Grupo de Lima, com os Estados Unidos – tanto com a atual administração como com a que vai chegar – para tentar encontrar um caminho.

Diversos colegas do senhor apontam que existe um vazio de liderança na geopolítica da América do Sul. O senhor compartilha dessa visão?
Acho que há uma divisão, mais do que um vazio.  Existem países – acho que a grande maioria – que condenam o regime de Maduro e que estão apostando numa transição democrática, e países que estão a favor do regime. Depois das eleições a situação não ficará mais fácil, pelo contrário, se complica porque as posições vão se radicalizar dos dois lados.

UN Photo/Jean-Marc FerréUN Photo/Jean-Marc Ferré“O governo brasileiro admite que os números do desmatamento continuam a crescer. Vejo uma preocupação genuína”
O senhor esteve na Amazônia com o vice-presidente Hamilton Mourão para conhecer as iniciativas de combate ao desmatamento ilegal. O que falta para o Brasil fazer a sua parte na Amazônia?
A visita foi muito bem-sucedida. O esforço do vice-presidente é louvável. Iniciamos um diálogo que eu qualificaria como muito útil e regular com o Conselho da Amazônia. O reconhecimento de que o Brasil tem um problema é sem dúvida muito importante. O governo brasileiro admite que os números do desmatamento continuam a crescer e vejo uma preocupação genuína, que era o que estávamos pedindo desde o ano passado. Também estamos preparados para ajudar o Brasil. Pode ser, por exemplo, na observação da Amazônia, já que temos uma cooperação entre a agência espacial europeia e a brasileira. Podemos contribuir também em outras áreas, como na de projetos no âmbito da regularização fundiária.

Algumas vozes no governo recorrentemente entoam um discurso de que sua política ambiental é vítima de desinformação e fake news. Essa versão convence a União Europeia?
Não convence, mas essa não é a versão do vice-presidente Hamilton Mourão. Para nós o importante é reconhecer os fatos. Ou seja, segundo os números, foram verificados o aumento do desmatamento e o crescimento de atividades ilegais. Valorizamos muito o aumento da presença do estado brasileiro na região amazônica. Para nós a soberania do Brasil sobre a Amazônia não é um tema passível de debate. Não temos dúvida de que a Amazônia, em sua parte de brasileira, é brasileira. O que nós dissemos é que essa soberania se exerce através do cumprimento das leis e dos regulamentos que são estabelecidos. Então, se existem algumas áreas – e a Amazônia parece ser uma delas – em que o estado brasileiro não consegue fazer cumprir as leis, é necessário que haja esforços nesse sentido. Reconhecemos os esforços recentes do governo e esperamos que comecem a produzir resultados para restabelecer a confiança que a Europa perdeu no Brasil.

Como o senhor encara o discurso do presidente Bolsonaro sobre supostos interesses estrangeiros na exploração da Amazônia?
[Na fala do presidente Bolsonaro] há mensagens que eu acho que não são dirigidas a nós, mas ao público brasileiro. Posso assegurar que não temos nenhum afã imperialista. Não temos nenhuma dúvida sobre a soberania brasileira sobre a parte amazônica que é sua, como não temos nenhuma dúvida sobre a soberania da Colômbia, do Peru, ou de qualquer outro país que tenha uma região amazônica em seu território.

“Vamos trabalhar para que a vacina seja acessível a todo o mundo”
Como o senhor vê o cenário internacional para as mudanças climáticas com a troca de governo nos Estados Unidos?
A União Europeia deseja voltar a ter os Estados Unidos nessa negociação, a partir do regresso deles ao Acordo de Paris. Ao que parece, teremos. Pelas notícias que chegam em Bruxelas, nossas conversas com a equipe de transição do presidente eleito Joe Biden são positivas. Ter os Estados Unidos trabalhando na mesma direção, para que possamos chegar a um consenso, sem dúvida, vai ser profícuo para a União Europeia, para o Brasil e para todos. Alguns países já começaram a fazer anúncios mais ambiciosos, como é o caso do Japão e da China.

Os países da União Europeia já adquiriram doses suficientes para vacinar o dobro de sua população. A União Europeia pretende cooperar com os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento para a aquisição de vacinas? 
Sem dúvida. Desde quando eclodiu a pandemia na China, a União Europeia tem oferecido suporte. Para nós o trabalho multilateral faz parte do nosso DNA. O importante era, primeiro, envidar todos os esforços para que conseguíssemos ter, por um lado, uma vacina. De outro, trabalhar no âmbito da pesquisa para tratar as pessoas que são infectadas. Temos feito um grande esforço alocando parte dos nossos recursos para a pesquisa. Sempre falamos desde o início que temos que fazer esse trabalho em parceria com todos os que queiram participar. No programa europeu de pesquisa, você tem a integração de diversos países, entre eles o Brasil. Vamos trabalhar para que a vacina seja acessível a todo o mundo, com um olhar muito particular para os países menos desenvolvidos. Olharemos para a África, que é o nosso continente vizinho, mas também para a América Latina e a Ásia.

Recentemente, a Embaixada da China no Brasil e o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, tiveram um desentendimento em razão de críticas feitas por ele contra o 5G chinês. Como o senhor enxerga essa questão?
No 5G temos uma posição bastante, digamos, europeia. Nossa tradição não é de impor uma proibição a uma empresa “x”. Temos a preocupação com a segurança dos nossos sistemas, com os direitos dos cidadãos, particularmente, e o direito à privacidade. O que estabelecemos na Europa é uma ‘caixa de ferramentas’. Ou seja, as condições que os países precisam cumprir para garantir a segurança dentro do sistema. Em alguns países da União Europeia a aplicação dessa caixa de ferramentas chegou até mesmo a limitar as atividades de algumas empresas chinesas desse setor. O que fizemos com o Brasil foi explicar a nossa experiência e dizer ‘se vocês precisarem conhecer melhor o nosso sistema, estamos à disposição’. Fizemos apresentações em ministérios em Brasília. Também tivemos conversas no Congresso. Agora, o Brasil precisa tomar sua decisão. Já sobre as, digamos, diferenças entre Brasil e China, prefiro não tecer comentários.

O senhor acha que a política dos Estados Unidos para o 5G vai mudar com Joe Biden na presidência?
Do ponto de vista da segurança, os Estados Unidos vão manter uma linha parecida com a nossa, mas pode ser que alterem a maneira de como adotar essa política. Evidente que algumas das preocupações da atual administração com a China vão permanecer. E compreendo, porque algumas delas são preocupações compartilhadas pela própria União Europeia. Também tivemos uma reflexão interna sobre como deveria ser a relação entre a UE e a China. Consideramos a China um parceiro bem importante, mas também um concorrente, com valores diferentes dos nossos. Eles não acreditam na democracia e nos direitos humanos da mesma forma que nós.

Há espaço para que Brasil, UE e Estados Unidos coordenem posições sobre o 5G?
Vamos ver. Logicamente, se será feito um esforço para estreitar a relação transatlântica, imagino que vamos tratar com os EUA também sobre esse tema. Gostaríamos muito que o Brasil com a sua presença, com seu peso internacional, também faça parte desse diálogo em torno de assuntos tão importantes como as mudanças climáticas, a biodiversidade e também como o 5G. O Brasil é um mercado para os operadores no mundo inteiro. As grandes empresas estarão olhando para o mercado brasileiro sempre com grande interesse.

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