RuyGoiaba

Preciso terminar de ler os russos

18.12.20

O título desta coluna era o que um querido amigo, jornalista veterano, respondia sempre que perguntavam a ele se já tinha lido algum autor contemporâneo que estivesse na moda entre gente descolada. Obviamente, não existe algo como “terminar de ler os russos”, que são muitos e escrevem torrencialmente —e nem estou pensando só em Tolstói e Dostoiévski; escritores como Soljenítsin nunca dizem com dez palavras o que podem dizer com dez mil.

Na verdade, a frase deve ser uma espécie de adaptação de “Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz”, poema em que Carlos Drummond de Andrade roga aos leitores que não lhe enviem mais originais “para ler, para corrigir, para louvar” porque está de saco cheio disso: “Nem sequer li os textos das pirâmides/ os textos dos sarcófagos,/ estou atrasadíssimo nos gregos,/ não conheço os Anais de Assurbanipal,/ como é que vou—/ mancebos,/ senhoritas/ —chegar à poesia de vanguarda/ e às glórias do 2.000, que telefonam?”

O fato, meus queridos dois ou três leitores, é que padeço de um mal que talvez possa ser chamado de alergia ao hype: basta uma obra qualquer (livro, disco, filme, série etc.) estar sendo o que a geração dos meus pais chamava de “muito badalada”, que eu me afasto dela e só vou me aproximar depois que a badalação —em português atual, buzz— cessar. E isso piorou exponencialmente no mundo das redes sociais, onde TODO DIA um povo que nasceu ontem, ou anteontem, elege seu novo melhor disco-filme-série de todos os tempos. Tenho consciência de que isso às vezes me afasta de obras interessantes: nos jurássicos anos 80, por exemplo, demorei a ler bons livros que fizeram sucesso, como “O Nome da Rosa” e “A Insustentável Leveza do Ser”. Mas a alergia é mais forte que eu.

Já que final de ano é época de “dicas culturais” e eu sou um goiaba chato, cricri e do contra, vou fazer aqui o oposto disso: uma lista de coisas que não pretendo ler, ver ou ouvir, até o zumbido incessante em torno delas ceder um pouco. Estarei, é claro, cometendo injustiças e basicamente pedindo para ser xingado pelos fãs —mas tenho certeza de que vou ouvir, ver e ler boa parte delas, talvez até gostar, muito antes de terminar os russos ou de tirar o atraso nos gregos.

– A “tetralogia napolitana” de Elena Ferrante

Amigas cujo gosto literário respeito enormemente já recomendaram muito os romances de Ferrante —sim, “amigas”, no feminino: é um caso em que o interesse pela obra parece muito maior entre mulheres do que entre homens, para usar aquela divisão binária totalmente ultrapassada hoje. Para alguns fãs, o mistério em torno da identidade da romancista parece inseparável da apreciação dos livros: conheço gente que ficou furiosa quando um jornalista italiano alegou ter descoberto a “verdadeira Ferrante”. Esse aparente “pacto de segredo” entre autora e leitoras me soa como um expediente do qual a obra não deveria depender para ser boa. E o efeito é mais publicitário do que literário: é como se os livros de J.D. Salinger, de algum modo, melhorassem depois que ele se meteu naquele buraco em New Hampshire e ficou 45 anos recluso. (Não melhoraram.)

– O documentário do Emicida

Emicida é um dos principais nomes do rap brasileiro, e seu recém-lançado “AmarElo” tem sido bastante elogiado por gente mais velha que seu público-alvo habitual —e não particularmente fã de rap. Devo ver antes de terminar os russos, mas acho que vou esperar até os fãs nas redes pararem de dizer o quanto choraram convulsivamente com o filme e mudarem um pouco de assunto.

– Os novos discos da Taylor Swift

Taylor Swift é uma cantora-compositora de 31 anos, capaz de escrever letras sensíveis e que —para traduzir em termos que velhos entendem— talvez aspire a ser uma espécie de Joni Mitchell 2.0, para a geração do Instagram (embora Mitchell já tenha mostrado publicamente que não gosta dela: vetou um filme em que Taylor a interpretaria e a chamou de “garota com bochechas salientes”). Mas é também uma “diva pop”, e não existe quem se equipare a fãs de divas pop no quesito CHATICE INSUPORTÁVEL. Os dois álbuns que Taylor lançou neste ano podem ser boas pedidas para 2025 ou 2030, se eu ainda estiver por aqui.

– “La Casa de Papel”, a série

Mega-assaltos a bancos com um bando usando máscaras de Salvador Dalí. O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao. Quatro partes com 31 episódios (e haverá uma quinta, com mais dez) para uma trama que poderia ter sido resolvida em um filme. Hm. Sei não, acho que vou terminar até o Soljenítsin primeiro.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Deve ser a goiabice do mês, do ano, talvez da década. Transcrevo texto do UOL publicado na segunda (14): “Um eletrotécnico de Guaraí, interior do Tocantins, procurou a Polícia Civil para registrar um boletim de ocorrência contra Albert Einstein, morto em 1955. Ele acusa o físico alemão de ‘delito de perturbação mundial’ por ‘incontáveis erros e transtornos na evolução e desenvolvimento científico do planeta’ na Teoria da Relatividade, criada há mais de 100 anos”.

Bem que eu desconfiava que um dia, do fundo do Brasil profundo, se ergueria um homem capaz de chamar Einstein na chincha, como dizem os gaúchos. A reportagem ainda esclarece que a denúncia está sendo tratada como “absurda” pela Polícia Civil. Ah, bom! Eu já estava esperando os puliça convocarem um médium para fazer o tal alemão da língua de fora contar tudo o que sabe.

Essa é a cara que o Einstein fez quando previu que seria refutado no Tocantins

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