SergioMoro

Protegendo a democracia – Parte II

18.12.20

Em artigo anterior, “Protegendo a democracia I”, sobre projetos relevantes para o país, defendi o fim da reeleição para cargos no Poder Executivo a partir de 2023. Assumi então o compromisso de que inauguraria uma série de artigos sobre “propostas que visam afastar esses mesmos riscos [autoritários] e assim fortalecer a democracia”. Uma medida de necessidade óbvia consiste na construção de uma burocracia estatal moderna e com a autonomia necessária para frear avanços autoritários de lideranças populistas.

O estado moderno depende da existência de um corpo burocrático de servidores profissionais orientados pelo respeito à lei e ordenados pelos princípios da eficiência, da impessoalidade e da meritocracia. A burocracia estatal não deve ser totalmente independente da política. As lideranças políticas, através da lei ou de ordens executivas, devem ter o poder de orientar a ação dela em certo nível. Ainda assim, a burocracia estatal não se confunde com as próprias pessoas dos governantes. Ela serve ao estado e não lhe cabe exercer um papel de mera subserviência a uma liderança política. No Brasil, o serviço público está relativamente estruturado em bases profissionais, com a maioria dos cargos públicos sendo ocupados através de concursos públicos e com a organização do aparato burocrático em níveis hierárquicos. Há exceções como os cargos em comissão, ou seja, que são ocupados mediante indicações baseadas em confiança, mas, mesmo que sejam muitos, ainda não são a maioria.

Há críticas crescentes ao modelo adotado de estabilidade do servidor público. Na prática, salvo os cargos de confiança, é praticamente impossível demitir algum servidor público com a exceção dos casos de abandono de emprego e de prática de um crime. A proteção excessiva gera acomodação e ineficiência. Uma reforma administrativa deveria, sem vilificar o servidor, implementar uma verdadeira meritocracia no serviço público, estimulando com promoções e gratificações os bons e permitindo a punição ou demissão dos maus. Não é algo tão simples, uma vez que pode haver ampla divergência quanto aos meios para se alcançar tais objetivos. Saliente-se que, desde 1998, foi introduzida na nossa Constituição Federal a possibilidade de demissão por insuficiência de desempenho (Emenda Constitucional nº 19), mas até o momento o dispositivo não foi regulamentado pelo legislador.

É, porém, necessário garantir alguma estabilidade ao servidor público para evitar a sua dispensa arbitrária por motivos político-partidários e o sucessivo loteamento sem critérios técnicos dos cargos públicos pela liderança política. O fim de qualquer estabilidade ainda deixaria a burocracia estatal vulnerável a avanços autoritários de lideranças populistas ou desonestas. É importante aqui encontrar um meio termo.

Refletindo sobre nossa experiência recente, seria oportuno reformar o modelo de nomeação para alguns cargos públicos estratégicos. Mencionando o óbvio, o cargo de diretor da Polícia Federal. Dada a relevância da função exercida nos últimos anos pela Polícia Federal, com a investigação de crimes praticados por pessoas em cargos elevados, seria oportuno fixar um mandato para o exercício do cargo, de três ou quatro anos, não renovável e não totalmente coincidente com o mandato presidencial. Seria uma forma de prevenir influências indevidas no órgão.

De igual forma, a lista tríplice formada no âmbito do Ministério Público Federal para a escolha do procurador-geral da República deveria ser institucionalizada, ou seja, deveria ser tornada obrigatória a escolha pelo presidente de um nome dessa lista. No passado, o respeito, ainda que informal, a essa lista produziu resultados positivos que superaram em muito alguns inconvenientes. Também seria relevante vedar a recondução para novo mandato de dois anos, pois essa possibilidade gera uma vulnerabilidade ao exercício independente do cargo.
Não é só. Em várias áreas de nomeação de cargos estratégicos, o modelo vem ser mostrando ineficiente, gerando distorções, indicações desarrazoadas, compadrio e patrimonialismo. Modelos ruins geram riscos de corrupção e igualmente tornam a estrutura mais vulnerável a lideranças populistas e ao avanço autoritário. Deveríamos discutir profundamente melhorias nos modelos de nomeações, por exemplo, para tribunais de contas e para tribunais eleitorais, entre outros órgãos. Há que se admitir que houve melhorias recentes nos modelos de nomeações para empresas estatais e para agências reguladoras, conforme Lei nº 13.303/2016 e Lei nº 13.848/2019. Alguns critérios e vedações previstas nestas leis para as nomeações poderiam, com adaptações, ser estendidas para outros cargos na administração pública.

A construção de uma burocracia estatal moderna e profissional é essencial para a eficiência do estado. Podemos discutir politicamente o papel do estado, se restrito a serviços essenciais ou mais amplo, se de produção de bens ou serviços ou se de regulação. São normais divergências nessa discussão. Mas feita a escolha, o estado tem que ser eficiente e para isso precisa de bons profissionais. Uma burocracia fortalecida servirá ainda de anteparo contra arroubos autoritários de lideranças populistas. Para tanto, essa burocracia tem também que compreender o seu verdadeiro papel, que não é de subserviência aos caprichos e projetos pessoais de poder da liderança política, qualquer que seja ela. Essa percepção, infelizmente, parece estar faltando atualmente em alguns setores da administração pública brasileira. Em um estado moderno, a fidelidade da burocracia é ao interesse público e à lei.

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