A firma
No apagar das luzes do ano legislativo, e com o Brasil sofrendo as agruras da nova onda do coronavírus, responsável por ceifar 189 mil vidas no país até o momento, as nobres excelências entenderam ser urgente a aprovação de um projeto de lei cujo objetivo principal é blindar de investigações criminais os já constitucionalmente blindados escritórios de advocacia. Se dentro do Congresso os apoiadores da medida são aqueles mesmos que, encalacrados com a Justiça, se valem do ofício de legislar para impor travas ao combate à corrupção, do lado de fora do Legislativo os interessados na aprovação do projeto vão desde renomados escritórios de advocacia – muitos deles enredados em escândalos de desvios de dinheiro público praticados em conluio com seus próprios clientes – a magistrados, entre os quais ministros de cortes superiores cujos filhos causídicos foram flagrados em supostas transações nada republicanas.
Compõe o lobby a favor da proposta em tramitação no Congresso um time auricularmente respeitável da advocacia nacional. Entre eles, Felipe Santa Cruz, presidente da OAB; Flávio Zveiter, integrante de um dos clãs mais poderosos do Judiciário, Ana Tereza Basílio, esposa do desembargador André Fontes, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Eduardo Martins, primogênito do atual presidente do Superior Tribunal de Justiça, além dos filhos de Cesar Asfor Rocha, ex-presidente do STJ, e do ministro do TCU Aroldo Cedraz – Caio Rocha e Tiago Cedraz, respectivamente. Nos bastidores, o projeto conta com o apoio dos defensores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os advogados Cristiano Zanin e Roberto Teixeira, e do ex-advogado da família Bolsonaro, o notório Frederick Wassef.
O peso e a capilaridade do grupo impressionam e ajudam a explicar por que o regime de urgência para a votação do projeto foi aprovado no afogadilho no Congresso, com pouquíssima ou quase nenhuma contestação. Os interesses se entrelaçam aos de outros advogados criminalistas cujos clientes também estão enrascados na Lava Jato como Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, conhecido por não medir palavras nos ataques ao ex-juiz Sergio Moro, e Alberto Toron, um dos criminalistas mais requisitados por investigados da Lava Jato e também um duro crítico da operação.
Tanto Kakay como Toron fazem parte do Prerrogativas, surgido há cinco anos, pouco depois das primeiras fases da Operação Lava Jato, inicialmente como um grupo de WhatsApp. O objetivo prioritário era defender as prerrogativas dos profissionais, sobretudo os que atuavam no caso, mas logo a associação de advogados virou uma trincheira contra a força-tarefa em si. Amigo do peito do ex-ministro José Dirceu, que lhe deu a maior força no início dos anos 2000, Kakay já chegou a ter 18 clientes envolvidos na Lava Jato, entre os quais Edison Lobão, Roseana Sarney, Romero Jucá e Ciro Nogueira, um dos líderes do Centrão, tal como o deputado Arthur Lira, candidato à presidência da Câmara e entusiasta do projeto.
O projeto hoje em regime de urgência na Câmara, de autoria do prestativo deputado Paulo Abi-Ackel, do PSDB, e que toda essa turma de advogados e filhos de magistrados quer ver rapidamente aprovado, prevê, entre outras coisas, a inviolabilidade dos escritórios de advocacia. Ao restringir a realização de buscas e apreensões nesses locais, o texto favorece advogados investigados em casos de corrupção e envolvidos com o narcotráfico. “É vedada a quebra da inviolabilidade do escritório do advogado com fundamento meramente em indício, depoimento ou colaboração premiada, sem a presença de provas periciadas e validadas pelo Poder Judiciário, sob pena de nulidade”, diz o projeto de lei. Intramuros, no Congresso, a justificativa para a urgência na aprovação da proposta é a de sempre – nunca é demais aproveitar uma oportunidade para fustigar a Lava Jato e limitar a atuação dos investigadores que um dia podem bater à porta do gabinete ou da casa de um amigo. Publicamente, os parlamentares adotam a velha cantilena de que não se pode violar o local de trabalho do advogado, como se o que estivesse em questão fosse a atuação dos causídicos que agem em conformidade com a lei.
Para compreender melhor os interesses dos que exercem forte pressão pela aprovação do projeto do impoluto Abi-Ackel na Câmara é preciso rememorar ao menos dois episódios. O primeiro em 9 de setembro deste ano, quando a Polícia Federal saiu às ruas para cumprir 51 mandados de busca e apreensão expedidos pelo juiz Marcelo Bretas contra escritórios de advocacia suspeitos de integrar um esquema que desviou 151 milhões de reais do Sistema S, por meio da Fecomércio do Rio de Janeiro, comandada por Orlando Diniz até 2018. A delação de Diniz e o material reunido em dois anos de investigação resultou na ação considerada por investigadores como a maior investida da história do país contra a advocacia e o Judiciário.
As revelações de Orlando Diniz que deram origem à E$quema S reforçaram os relatos do ex-governador Sérgio Cabral que sete meses antes, em 6 de fevereiro, tivera o acordo de colaboração premiada homologado pelo ministro Edson Fachin, do STF. Como revelou Crusoé, na parte sobre sua relação com Diniz, o ex-governador é ainda mais incisivo ao afirmar que os pagamentos para Eduardo Martins tinham, na verdade, o pai Humberto Ministro como destinatário. Ainda segundo Cabral, outro colega de STJ, o ministro Napoleão Nunes Maia, também receberia parte dos valores em troca do apoio às causas da Fecomércio na corte. O TCU apareceu nos anexos de Cabral com ao menos seis ministros citados. Três deles, disse o ex-governador, recebiam um “mensalinho” por meio do escritório de Marcelo Nobre, conhecido advogado de Brasília.
As revelações de Cabral foram arquivadas pelo ministro Dias Toffoli durante o recesso do Judiciário, mesmo após as ordens de abertura de inquéritos expedidas pelo seu colega Edson Fachin. As investigações com base no acordo de Orlando Diniz não tiveram destino diferente até o momento. A E$quema S e todos os inquéritos foram paralisados por decisão do ministro Gilmar Mendes, do STF. Um mês antes da decisão, a Lava Jato do Rio havia solicitado a suspeição do ministro pelo fato do cunhado de Gilmar, o empresário Francisco Feitosa, aparecer em transações suspeitas com Caio Rocha, filho do ex-presidente do STJ, Cesar Asfor Rocha, denunciado por ter recebido cerca de 2,6 milhões de reais da Fecomércio. No caso de Diniz, a decisão de Gilmar Mendes ainda pode ser derrubada. A expectativa entre investigadores, entretanto, não é das melhores.
Com a indefinição sobre o futuro dos inquéritos, a necessidade de definir novos critérios para investigações que miram advogados tornou-se ainda mais premente no Congresso. A sessão que aprovou o requerimento de urgência assinado por líderes da oposição e do Centrão tinha 364 deputados conectados pelo aplicativo de sessões remotas da Câmara. Ao menos, era o que indicava o painel eletrônico da Casa, quando, na verdade, poucos líderes estavam de fato presentes em plenário. Optou-se, então, pela votação simbólica do requerimento de urgência, apenas com a orientação dos partidos, quase que unânimes no sentido de apressar o debate do projeto – os partidos Novo e PSOL foram os únicos contrários à urgência. O governo Jair Bolsonaro, cujo advogado é um dos investigados, orientou de forma favorável, assim como os demais partidos do Centrão que compõem a base governista. PSD e DEM chegaram a esboçar alguma discordância com o texto, mas deram sinal verde para que a matéria fosse votada a toque de caixa, com aval de Rodrigo Maia. Em quatro minutos a urgência foi aprovada. Expoente do PCdoB, Alice Portugal – correligionária da autora do requerimento, Perpétua Almeida, líder do partido – nem sequer gastou saliva para defender o projeto. “Encaminhamos sim, Sr. Presidente. Falei de maneira sintética hoje”, riu.
Nos dias que antecederam a votação, o reto e vertical Paulo Abi-Ackel, de uma cepa imutável de advogados mineiros, amigão de Aécio Neves, outro investigado e cliente de Alberto Toron, conversou com parlamentares para convencê-los da importância da matéria. Não precisou obviamente de nenhum esforço para ganhar a simpatia de Arthur Lira, o líder do Centrão apoiado por Bolsonaro que vem prometendo pautas anti-Lava Jato em sua campanha para ser o sucessor de Rodrigo Maia. Do Centrão veio também o apoio de Lafayette de Andrada, ex-tucano e hoje no Republicanos – partido que anunciou poucos dias depois que iria marchar nas fileiras de Lira na eleição da Câmara. Andrada proferiu parecer favorável ao projeto do conterrâneo, negando qualquer tipo de “blindagem odiosa” aos advogados.
Ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça e ex-corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon, conhecida crítica do que chama de “bandidos de toga”, afirmou a Crusoé que, com a aprovação do projeto, os escritórios podem virar um “verdadeiro bunker”. “A existência de material suspeito é apenas prova indiciária, e, sem ela, os escritórios ficam praticamente invioláveis”, lamenta. O procurador da República Hélio Telho, que atuou em desdobramentos da Lava Jato na Valec, a estatal de trens do governo federal, avalia que o projeto “protege o bandido advogado”. “Vai favorecer organizações criminosas como o PCC, que se utilizam de advogados para cometer crimes, e facilitar o uso de advogados para lavar dinheiro”, disse.
O projeto de lei patrocinado pelo lobby de advogados e políticos encrencados com a Justiça não é uma novidade. Assim como agora, em 2008, quando grandes operações da Polícia Federal chegaram muito perto dos poderosos brasileiros, a OAB se movimentou para aprovar uma lei com a previsão de inviolabilidade dos escritórios de advocacia. Os motivos, embora os atores fossem diferentes, era o mesmo: o temor pelo avanço de investigações contra seus afiliados. Naquele ano, a iniciativa naufragou, mas deixou a lição sobre qual o melhor caminho para livrar advogados enrolados das garras da Justiça. Como era de se esperar, tão logo a urgência na votação do projeto foi declarada, o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, divulgou uma nota de apoio onde afirma que “a inviolabilidade do escritório do advogado é uma garantia da sociedade”. O que Santa Cruz não disse é que um de seus sócios foi acusado por Orlando Diniz de ter recebido 120 mil reais – o dinheiro, segundo o delator, seria destinado a irrigar a campanha dele próprio ao comando da OAB.
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