Arquivo pessoal"Se não convencermos o maior número de pessoas possível a se vacinar, a imunidade de rebanho ficará distante"

‘Mutações no vírus não afetarão vacinas’

A epidemiologista Denise Garrett diz que a nova variante do coronavírus pode ser contida, critica a negligência no país e afirma que, numa previsão otimista, a imunidade global só será atingida em meados de 2023
24.12.20

A médica infectologista e epidemiologista mineira Denise Garrett reuniu, ao longo de sua trajetória, conhecimentos em duas áreas essenciais para compreender o mundo atual: a de pandemias e a de vacinas. Por 23 anos, ela trabalhou no conceituado Centro de Controle de Doenças (CDC), nos Estados Unidos. Como pesquisadora, investigou a propagação de vírus pelo mundo, como o H1N1 e o ebola. Em 2015, Denise assumiu o cargo que ocupa até hoje de vice-presidente no departamento de epidemiologia aplicada do Instituto de Vacinas Sabin, em Washington. Entre suas funções, está a de conscientizar governos sobre a importância de campanhas de imunização, orientar as medidas a serem tomadas e acompanhar os resultados. No cargo, Denise coordenou projetos em diversas latitudes. Desde o início da pandemia de coronavírus, porém, ela tem dedicado boa parte de seu tempo a acompanhar a situação no país. “Tenho feito isso agora muito por uma questão pessoal, por sentir o peso da situação. O Brasil tem passado por muita complicação desde o início, com muita confusão e falta de informação. Para mim, isso acabou se tornando quase um trabalho extra”, diz ela.

Para Denise, o início de 2021 poderá marcar o momento mais grave da pandemia. “Há uma negligência por parte da população, que está cansada, e não há praticamente nenhuma medida de controle”, diz ela. A médica diz que não vê a devida pressa no governo federal em fechar acordos para obter as doses de vacinas necessárias para alcançar a imunidade de rebanho, quando a transmissão é interrompida porque a maior parte da população já está protegida. A depender da eficácia das vacinas que estarão disponíveis, será preciso obter uma cobertura “astronômica”, segundo ela. Com o presidente Jair Bolsonaro causando incertezas sobre a vacina, essa missão ficará mais árdua. Por telefone, Denise conversou com Crusoé.

O Reino Unido já identificou duas cepas mutantes do coronavírus, obrigando diversos países a cancelar voos. Essas variantes poderão reduzir a eficiência das vacinas?
As mutações que ocorreram no coronavírus, provavelmente, não afetarão o desempenho das vacinas. Para que isso acontecesse, seriam necessárias muitas mutações no vírus, o que é mais difícil de ocorrer. O importante será monitorar a situação. Além disso, caso uma vacina deixe de funcionar, o problema poderá ser contornado. As novas tecnologias que foram usadas por alguns laboratórios permitem que sejam feitos ajustes rapidamente. Se mudar a proteína da espícula do vírus, aquela parte que o ajuda a entrar nas células, os cientistas podem alterar o RNA mensageiro da vacina, para que ele possa comandar o organismo a combater a proteína mutante. No caso das vacinas que usam tecnologias antigas, como a Coronavac, que está sendo fabricada pelo Instituto Butantan, a chance de que mutações tornem a imunização inútil é menor. Essa vacina usa um vírus inativado. Quando ele é introduzido no corpo, o organismo é treinado para atacar o vírus como um todo, e não apenas para destruir uma proteína específica. É uma ação mais completa. Sendo assim, teria de ocorrer um número muito maior de mutações no vírus inteiro para que o sistema imunológico de uma pessoa vacinada não o reconhecesse como ameaça. A meu ver, não devemos ficar muito preocupados quando lemos manchetes assustadoras sobre um coronavírus mutante.

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, disse que a variante do coronavírus pode ser até 70% mais transmissível. Isso causará mais mortes?
Não há nenhuma indicação que essa nova variante seja mais virulenta ou mais letal. Mas se ela se alastrar para um número maior de pessoas, então isso poderia elevar o número de óbitos. É a lógica: se mais pessoas ficarem doentes, mais pessoas irão morrer. Mas isso não necessariamente irá ocorrer. Se as medidas de isolamento social e prevenção forem cumpridas ou intensificadas, a transmissão poderá ser refreada. Além disso, devemos desconfiar dessa declaração de Boris Johnson. As autoridades britânicas estão dizendo que o aumento recente do número de casos ocorreu por causa do vírus. Mas isso aconteceu, principalmente, porque eles baixaram totalmente a guarda durante o verão do hemisfério norte. Não é possível dizer ainda até que ponto a quantidade de casos subiu em função da nova variante ou do relaxamento das medidas. Muitos cientistas estão contradizendo essa afirmação do primeiro-ministro.

A segunda onda de coronavírus será menos letal no Brasil?
Vários países chegaram a registrar uma redução nas taxas de mortalidade de Covid por algum tempo. Em primeiro lugar, isso aconteceu porque os médicos aprenderam a tratar a doença. Depois, porque a doença começou a atingir mais a população jovem, que tem um prognóstico melhor. Mas essa fase já passou. Como a doença continua se expandindo, ela voltou a crescer entre a população mais velha. Assim, voltamos à situação que estávamos no início da pandemia. O fato é que não existe hoje nenhuma razão para acreditar que a quantidade de óbitos será menor. O Brasil está caminhando para uma situação de falta de leitos em hospitais, com o colapso do sistema de saúde. Os hospitais de campanha, construídos no início do ano, já foram desmontados. Minha previsão é que ainda não vimos o pior da pandemia. Isso vai acontecer no início de 2021. Há uma negligência por parte da população, que está cansada, e não há praticamente nenhuma medida de controle. Os lugares públicos estão lotados e as pessoas estão usando a máscara no queixo. Com as festas de fim de ano, tudo deve piorar, e a vacina não chegará tão cedo.

Arquivo pessoalArquivo pessoal“Não parece haver urgência. Não se vê o governo se movimentando”
Quando os brasileiros poderão tomar a vacina?
O governador do estado de São Paulo, João Doria, disse que a imunização começará no dia 25 de janeiro. Torço para que ele esteja certo. Praticamente, a vacina que a gente vai ter é a Coronavac. Parece que será a única opção. Há uma inércia muito grande no governo federal, que não tem feito novos acordos. O Ministério da Saúde praticamente só fez um até agora, com a AstraZeneca e a Universidade de Oxford. Mas foi um azar tremendo. Das vacinas mais adiantadas no desenvolvimento, essa foi a única que atrasou. Eles poderão até produzir a vacina na Fiocruz, mas o registro com certeza vai atrasar, porque eles terão de fornecer mais dados para a Anvisa. O caso mostra um desconhecimento muito grande do governo federal sobre como as vacinas funcionam. É muito comum que, até o final da fase 3 do estudo clínico, ocorram problemas. Para evitar isso, é preciso se garantir fazendo acordos com vários fornecedores. Quando o governo federal fez o acordo com a AstraZeneca, outros países firmaram contratos com várias companhias. Mas nós só fizemos com uma. Agora, tampouco estou vendo pressa em fazer novos acordos. Não parece haver urgência. Não se vê o governo se movimentando. O que está sendo combinado com a Pfizer é uma quantidade irrisória. Serão 2 milhões de doses no primeiro trimestre e 6,5 milhões no segundo trimestre. É muito pouco. Na primeira leva de negociações, nós ficamos de fora. A segunda, que irá entregar vacinas na metade do ano que vem, nós também estamos deixando passar. Será que, no plano federal, só vamos conseguir assinar contratos para receber vacinas no final do ano que vem?

O que mais deveria ter sido feito no início no Brasil e não foi?
Faltou uma estratégia coerente e unificada no plano federal. Além disso, a reabertura do país ocorreu de maneira precoce. Medidas importantes de prevenção, como o uso de máscaras, foram alvo de polarização e se tornaram bandeiras partidárias. Para agravar a situação, a liderança do país não poupou esforços para minimizar a pandemia, insistindo que o vírus iria desaparecer ou que era apenas uma gripezinha. Medicamentos sem eficiência comprovada foram promovidos, como a hidroxicloroquina.

O que aprendemos com as medidas de restrição?
Todas as medidas restritivas foram necessárias para retardar a propagação do vírus e salvaram dezenas de milhares de vidas. Mas aprendemos algumas coisas nos últimos meses. Uma delas é que o vírus circula principalmente pelo ar. A transmissão ocorre quando compartilhamos o mesmo ar com outras pessoas. Portanto, evitar lugares fechados e usar máscaras são medidas mais importantes do que o cuidado com as superfícies. No começo, dava-se muita ênfase para a limpeza dos móveis, das compras e dos objetos, mas isso não se mostrou tão fundamental. O perigo está principalmente no ar. Também descobrimos que a transmissão entre crianças de até 9 anos é muito baixa. Nos Estados Unidos, as aulas para crianças pequenas foram liberadas, e vários protocolos de segurança foram adotados. Mas isso é algo que depende muito das taxas de transmissão na comunidade. Se elas forem muito altas, as escolas podem se tornar focos de infecção e não será mais seguro autorizar as aulas.

Quando teremos uma vida normal de novo?
Somente quando a maioria da população for vacinada. Para fazer esse cálculo, é preciso saber quantas doses estarão disponíveis e qual será a eficácia das vacinas. Nos Estados Unidos, espera-se que toda a população esteja vacinada até o meio do ano que vem. No Brasil, falar uma data é algo muito difícil, porque não sabemos ao certo quantas vacinas estarão disponíveis nem qual será a eficiência delas.

Arquivo pessoalArquivo pessoal“O perigo está principalmente no ar”
Qual é a porcentagem da população que precisa ser vacinada para que se consiga a imunidade de rebanho?
Em geral, acredita-se que essa fase é alcançada quando cerca de 60% a 70% da população está imune. Imaginando que, no Brasil, 10% já tenha contraído o vírus naturalmente, então seria preciso que no mínimo 50% alcançasse imunidade por meio da vacina para se chegar à imunidade de rebanho. Se estivermos falando de uma vacina com uma eficácia de 95%, o que é algo excepcional, então seria necessário vacinar cerca de metade ou 60% da população. Assim, somaríamos os 10% que já se infectaram com cerca de 50% a 60% que ganhariam a imunidade com a vacina. Mas a situação fica mais complicada se a vacina tiver uma eficácia menor, como 50%. Nesse caso, para que 50% a 60% da população alcançasse imunidade por vacinação, seria necessário vacinar quase toda a população. Seria preciso uma taxa de cobertura vacinal astronômica.

Isso é viável?
É aí que entra a importância de uma boa comunicação. No Brasil, porém, o presidente tem feito campanha contra a vacina, o que pode atrapalhar a adesão. Cerca de 22% da população não pretende se vacinar. Se não conseguirmos convencer o maior número de pessoas possível a tomar a vacina, a imunidade de rebanho ficará mais distante.

Qual será a eficácia real das vacinas quando elas forem aplicadas na população?
Ainda não sabemos. Só será possível conhecer a efetividade por estudos especiais na população em geral, fora dos ensaios clínicos. Outra questão muito importante é se as vacinas, além de proteger contra a doença, também serão capazes de impedir que as pessoas se contaminem. É isso o que se espera que aconteça, mas ainda não sabemos ao certo. Se as vacinas não evitarem a infecção, então os indivíduos continuarão se contagiando e transmitindo o vírus para outros. Nesse caso, atingir a imunidade de rebanho ficará muito mais complicado, porque a transmissão seguirá ocorrendo.

Dá para calcular até quando o mundo terá de preocupar-se com a Covid-19, se tudo correr bem no plano da imunização?
De acordo com os doze principais fabricantes de vacinas, a capacidade de produção foi estimada em aproximadamente 10 bilhões de doses até o final de 2021. Em uma previsão otimista, considerando a capacidade de produção e o esquema de duas doses de vacinas, a imunidade de rebanho em escala global só seria possível de ser alcançada em meados de 2023.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO