Fellipe Sampaio /SCO/STF

‘Nosso Kassio’

Em pouco mais de um mês no STF, o ministro Kassio Marques se alinha à ala anti-Lava Jato e vota de acordo com os interesses de Bolsonaro. A sua ofensiva contra a lei da Ficha Limpa contou com o aval do Planalto
24.12.20

Nunca um epíteto fez tanto sentido. Atuando em sintonia fina com o Palácio do Planalto e alinhado à ala garantista do STF, o primeiro indicado do presidente Jair Bolsonaro ao Supremo, tratado nos corredores do poder em Brasília como “Nosso Kassio”, mal completou um mês na cadeira de ministro e já impôs retrocessos na luta pela moralização política. Com uma liminar concedida num fim de semana, mais precisamente no sábado, 19, o ministro Kassio Nunes Marques antecipou o retorno à política de condenados por crimes como desvio de recursos públicos, estupro, homicídio, lavagem de dinheiro, tráfico de entorpecentes, crimes contra o meio ambiente e a saúde pública, ou cometidos por integrantes de organizações criminosas, quadrilhas ou bandos.

Sem saber que era impossível, ao menos aparentemente, o ministro escolhido por Bolsonaro foi lá e fez. Numa canetada, Kassio conseguiu desfigurar a Lei da Ficha Limpa, um dos instrumentos mais arrojados do direito brasileiro. Em vigor há uma década, a legislação simbolizava o início de um processo de depuração no Legislativo e no Executivo brasileiro, até ser interrompido pelo ex-desembargador piauiense, na esteira de uma ação direta de inconstitucionalidade movida pelo PDT, de Ciro Gomes e Carlos Lupi. O posicionamento monocrático do ministro do STF espanta pela ousadia. Ele contrariou uma decisão colegiada proferida há oito anos – em 2012, por maioria de votos, o pleno da corte considerou a lei constitucional, inclusive o dispositivo agora derrubado. Mesmo assim, a decisão de Kassio contou com apoio público do presidente da República. A liminar chegou em um momento propício para o Planalto. Candidato de Bolsonaro ao comando da Câmara, Arthur Lira tenta angariar apoio entre parlamentares contrários à Lei da Ficha Limpa. O Congresso, entretanto, teria dificuldades políticas para deturpar a lei e os deputados estavam receosos do provável desgaste diante da opinião pública.

Dessa forma, para os parlamentares que trabalharam para emplacar “Nosso Kassio” no Supremo, foi o melhor dos mundos: a cautelar do ministro trouxe todos os bônus, sem nenhum ônus para o Legislativo. A fatura foi para o Judiciário e, mais uma vez, quem sofre as consequências é a sociedade. A decisão, além de representar mais um forte desgaste para a corte, gera insegurança jurídica no país. Nesta quarta-feira, 23, o presidente do STF, Luiz Fux, disse durante entrevista de encerramento do ano que somente Kassio teria a competência de julgar um recurso movido contra a decisão pela Procuradoria-Geral da República. “Ele deu a liminar. Só que agora, ele proferiu uma liminar passível de um recurso que só ele pode julgar. As pessoas às vezes imaginam: o presidente do STF pode tudo. Não, não pode tudo. Ele pode muito, mas não pode tudo. Então, nesse particular, eu não poderia cassar a decisão dele, porque tem um recurso dirigido ao relator”, afirmou.

Nelson Jr./SCO/STFNelson Jr./SCO/STFPara não se indispor com colegas, Luiz Fux não cassará a liminar de Kassio
A partir do entendimento do novato do STF, fica suspenso um trecho da Lei da Ficha Limpa que determinava o início da contagem do prazo de oito anos de inelegibilidade após o fim do cumprimento da pena. Até então, um condenado a oito anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, por exemplo, poderia ficar até 16 anos proibido de disputar eleições, já que o prazo de inelegibilidade contaria após o fim da pena. Com a patacoada de Kassio, o prazo máximo das punições impostas pela Lei da Ficha Limpa será de oito anos. No caso hipotético citado, o corrupto que lavou dinheiro conseguiria reduzir à metade seu tempo de inelegibilidade.

Na prática, a liminar de Kassio Marques libera alguns dos primeiros condenados na Lava Jato para disputar as próximas eleições municipais. O desastre patrocinado pelo ministro atinge fortemente a Justiça Eleitoral. Como mudanças na legislação retroagem em benefício dos réus, quem disputou o pleito municipal este ano com registro sub judice, elegeu-se, mas acabou barrado por ser ficha suja poderá conseguir aval para assumir cargos de vereador ou prefeito. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, 1.769 políticos tiveram os registros questionados este ano por desrespeito à Lei da Ficha Limpa. Parte considerável desse contingente de condenados pelos mais variados crimes ficará livre para voltar à vida pública, graças à liminar de Kassio Marques.

“Essa decisão é uma barbaridade, uma aberração”, resume o procurador de justiça de São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu. “Não estamos falando de uma lei nova, jamais interpretada ou sobre a qual nada se sabe. A Lei da Ficha Limpa está em vigor há uma década e o pleno do Supremo se debruçou sobre ela há oito anos. Essa temática sobre o momento da aplicação da inelegibilidade já foi decidida”, acrescenta. O procurador lembra que a liminar de Kassio Marques acirra uma grande queixa da sociedade com relação ao Supremo: a instabilidade causada pelo vaivém de posicionamentos. “Não é possível que, eternamente, assuntos já resolvidos sejam trazidos de novo ao debate, sob pena de a sociedade se sentir órfã quanto à segurança jurídica”, acrescenta Livianu. A liminar que desfigurou a Lei da Ficha Limpa suscita outra questão: o excesso de decisões monocráticas em processos considerados cruciais. O caso recente de maior repercussão aconteceu em outubro, quando o ministro Marco Aurélio Mello concedeu liminar para soltar o traficante André do Rap. À época, a aplicação da nova regra que determina a reavaliação de prisões preventivas a cada 90 dias, imposta pelo pacote anticrime, ainda não havia sido avaliada pelo plenário do STF. Marco Aurélio soltou o chefe do PCC sem ouvir os colegas e, na sequência, o presidente Luiz Fux cassou a liminar. Mas já era tarde: o traficante havia fugido e, até hoje, não foi recapturado.

Mateus Bonomi/CrusoéMateus Bonomi/CrusoéO caso da Ficha Limpa foi comparado à decisão monocrática do ministro Marco Aurélio Mello que soltou o traficante internacional André do Rap
A sabatina de Kassio no Senado ocorreu em outubro, poucos dias após o episódio André do Rap. Muito questionado sobre o excesso e os perigos das decisões monocráticas, o indicado de Bolsonaro declarou “ter nascido para a judicatura em colegiado” e afirmou: “sempre prestigiei a decisão colegiada, esse é o meu perfil”. Como as promessas de sabatinas valem tanto quanto as de campanhas eleitorais, menos de dois meses depois das declarações no Congresso, Kassio promoveu sozinho o desmonte da Lei da Ficha Limpa. Não só desprestigiou o colegiado, como decidiu em sentido contrário ao posicionamento consagrado pelo plenário.

O confronto com uma decisão do próprio Supremo é um dos “cinco relevantes obstáculos jurídicos” apontados pela Procuradoria-Geral da República no recurso apresentado ao STF para questionar a decisão. No documento, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, aponta ainda que o posicionamento monocrático do ministro novato contraria uma súmula do Tribunal Superior Eleitoral. A corte eleitoral definiu que “o prazo concernente à hipótese de inelegibilidade projeta–se por oito anos após o cumprimento da pena, seja ela privativa de liberdade, restritiva de direito ou multa”. Jacques cita ainda como grave consequência da liminar a quebra da isonomia do processo eleitoral. Isso porque candidatos fichas sujas com registro pendente de análise podem ser liberados, enquanto políticos que já tiveram os registros indeferidos não poderão ser beneficiados. “A decisão criou, no último dia do calendário forense, dois regimes jurídicos distintos numa mesma eleição. Cria-se, com isso, um indesejado e injustificado discrímen, em prejuízo ao livre exercício do voto popular”, argumenta Jacques.

Diante da gravidade do caso, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral pediu ao Supremo para ingressar como parte na ação. A entidade atuou na mobilização da sociedade na época da criação da Lei da Ficha Limpa e agora quer impedir o retrocesso promovido por Kassio Marques. Segundo Luciano Caparroz, diretor do movimento, o dispositivo que impõe inelegibilidade pela condenação por certas categorias de crimes graves constitui o “coração” da Lei da Ficha Limpa. “Trata-se de sua principal razão de ser, do principal motivo que impulsionou a gigantesca mobilização popular em favor da sua aprovação. Eventual declaração de inconstitucionalidade que enfraqueça ou minimize o alcance dessa alínea possibilitará a candidatura de indivíduos que claramente não ostentam vida pregressa compatível com o que se espera de governantes e legisladores”, argumentou Caparroz. O advogado e ex-juiz Marlon Reis, idealizador da Lei da Ficha Limpa, sustenta que a decisão do ministro indicado por Bolsonaro atinge a parte “mais sensível” do texto. À época, o legislador previu punições de acordo com a gravidade da conduta, mas Kassio colocou condenados por homicídio ou por estupro no mesmo saco de gatos de políticos com contas rejeitadas. “A lei foi escrita de forma proporcional e razoável, levando em conta a gravidade da conduta, e, agora, o ministro igualou tudo da mesma forma”, critica Marlon Reis.

Adriano Machado/CrusoeAdriano Machado/CrusoeA Justiça Eleitoral barrou 1.769 fichas sujas este ano e parte desses candidatos poderá ser beneficiada pela liminar de Kassio
Diante das cobranças nas redes sociais, Jair Bolsonaro saiu em defesa de seu ministro e minimizou os impactos da cautelar. “O que ele definiu foi o prazo de inelegibilidade, que estava completamente em aberto. Quem erra tem que pagar, mas não pode pagar ad eternum. Então, ele definiu que o prazo conta a partir do início do processo. Nada demais isso”, resumiu, sem explicar à militância que a liminar antecipa o retorno à política de condenados por crimes gravíssimos. Assim como fizera na semana anterior, ao defender a flexibilização da Lei de Improbidade Administrativa, o presidente da República seguiu a cantilena de vitimizar a classe política. “O pessoal fica na maldade: ‘ah, ele destruiu a Lei da Ficha Limpa’. Primeira coisa: quem está reclamando muito tem que ter coragem. Se ele é ficha limpa, um cara bacana, se candidata para ver como é a vida de um político”, argumentou.

A similaridade de posicionamentos entre Kassio Marques e o presidente da República quanto à necessidade de desfigurar a Lei da Ficha Lima não é o único sinal de alinhamento entre os dois. Em menos de dois meses na cadeira de ministro da mais alta corte do país, o indicado por Jair Bolsonaro já ficou completamente isolado no plenário para sustentar decisões benéficas ao Planalto, como durante o julgamento que proibiu a reeleição para as mesas diretoras do Congresso. Enquanto todos os colegas se posicionaram contra ou a favor da tese de que os presidentes da Câmara e do Senado poderiam disputar novos mandatos na mesma legislatura, Kassio barrou as pretensões de Rodrigo Maia, adversário de Bolsonaro, e liberou a reeleição de Davi Alcolumbre, aliado do governo. Na semana passada, quando o Supremo garantiu autonomia a governadores e prefeitos para impor a obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19, o ministro neófito proferiu o único voto de teor divergente, ao sustentar que a imunização compulsória é constitucional, mas só pode ser imposta após “prévia oitiva” do Ministério da Saúde e deve ser adotada como “última medida” – se prevalecessem, os poréns incluídos no voto dificultariam sobremaneira a vacinação da população. Assim como na decisão contrária à Ficha Limpa, Bolsonaro também veio a público defender o voto de Kassio no julgamento que considerou obrigatória a imunização. Irritado com as críticas ao seu indicado, atribuiu os ataques a uma “direita burra e idiota”. Em live nesta quinta-feira, 24, o presidente reforçou o apoio ao ministro. “Se tiver que votar para absolver o Lula, que vote!”, disse. O presidente aproveitou para criticar o instituto da delação premiada: “Delata para criar um clima e depois não se comprova nada”.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéJair Bolsonaro tem feito defesas públicas dos votos do ministro novato do STF
Com décadas de pesquisas sobre o Judiciário, a cientista política Maria Tereza Sadek é uma das maiores referências acadêmicas quando o assunto é o Supremo Tribunal Federal. Observadora atenta das movimentações na corte, ela afirma que a vinculação das posições de Kassio Marques às teses de Jair Bolsonaro é sem precedentes. “Eu estudo isso há anos, mas não me recordo de nenhum outro ministro que tenha tomado tantas decisões em sequência, de forma tão abertamente favorável àquele que o indicou”, afirma a professora da Universidade de São Paulo e diretora de pesquisa do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais. “O que o ministro tem feito da biografia dele é algo que chama muita atenção. Mas, felizmente, temos mecanismos de natureza institucional para lidar com isso. Um exemplo é o recurso apresentado pela PGR contra a decisão que atingiu a Lei da Ficha Limpa”, acrescenta Sadek.

Quando não se aliou a Bolsonaro, Kassio marchou ao lado da ala garantista do Supremo – sem falar dos momentos em que os interesses de um e de outro se cruzaram. Um dos votos polêmicos do ministro foi comemorado pelo presidente nacional do Progressistas, Ciro Nogueira, um dos padrinhos da indicação do ex-desembargador para o Supremo. Na 2ª Turma do Supremo, o magistrado alinhou-se aos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski para arquivar um inquérito instaurado contra o ex-senador Eunício Oliveira. Ele era acusado de receber propina da Odebrecht para facilitar a aprovação de medidas provisórias benéficas à empreiteira – a mesma acusação consta da denúncia apresentada em fevereiro pelo Ministério Público Federal contra Ciro Nogueira. Segundo os procuradores, as provas reunidas nessa apuração apontam que o senador piauiense recebeu do grupo empresarial 7,3 milhões de reais em vantagens indevidas.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéEx-senador Eunício de Oliveira: beneficiado por decisão de Kassio Marques
Em outra decisão que constrangeu até os mais fiéis bolsonaristas, Kassio Marques, mais uma vez alinhado a Gilmar e Lewandowski, beneficiou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em uma decisão tomada na 2ª Turma do STF. O ministro votou pela rejeição de um recurso da Procuradoria-Geral da República e para manter a exclusão da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci da ação contra o ex-presidente. No processo, o petista é acusado de receber 12,5 milhões de reais da Odebrecht. Com isso, Kassio uniu-se ao entendimento de que o ex-juiz Sergio Moro incluiu a delação de Palocci, após o encerramento da fase de instrução, “no intuito de gerar um fato político”. Durante a campanha de 2018, Jair Bolsonaro comemorou a divulgação e classificou a colaboração de Palocci como “uma bomba atômica”. Agora, à frente do Planalto, juntou-se aos garantistas e ao Centrão, outrora tão criticados, com os préstimos de “Nosso Kassio”.

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