Carlos Fernandodos santos lima

‘O melhor Congresso que o dinheiro pode comprar’

24.12.20

“Nós temos o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar”. Assim o grande escritor Mark Twain ironizou a política americana do final do século 19. E não era muito longe da verdade, pois a política dos Estados Unidos naquele período, inclusive a federal, era essencialmente movida por interesses inconfessáveis e propina, ou seja, não muito diferente da política brasileira do século 21. Podemos dizer, olhando o Congresso Nacional presidido por Maia e Alcolumbre, que estamos 150 anos atrasados nesse processo civilizatório a que chamamos de democracia.

Não se pense, entretanto, que esse caminhar histórico das democracias ocidentais para um sistema político mais limpo seja sempre para o progresso, isento de atrasos e obstáculos. Nem mesmo a democracia americana demonstrou-se tão sólida a ponto de não permitir que golpistas ao redor de Trump fizessem sugestões de uso de Lei Marcial para reverter o resultado das eleições. Uma democracia somente é sólida quando o povo acredita nela e cerra fileiras na sua defesa. Infelizmente, as democracias estão sob ataque, mas a culpa é delas mesmas, pois se deixaram contaminar pelo poder econômico e interesses privados, distanciando-se do povo.

A verdade é que, em grau maior ou menor, toda associação política produz insiders e outsiders, ou seja, aqueles que se beneficiam delas e os que são simplesmente excluídos. Assim é desde reuniões de condôminos até as Nações Unidas. Essa é a natureza humana, e isso vale para qualquer posição no espectro ideológico. Há insiders em regimes comunistas, como a chamada nomenklatura durante o regime soviético; há insiders em regimes autoritários de partido único como o chinês (basta ver o quanto grandes corporações privadas chinesas são pertencentes a famílias de membros do Partido Comunista). E há insiders em regimes de direita, sejam de natureza fascista, como a Itália de Mussolini ou a Alemanha de Hitler, capazes de excluir populações inteiras da própria dignidade humana, sejam nas autoritárias ditaduras latino-americanas dos anos 60, 70, 80, como demonstra o crescimento das grandes empreiteiras e conglomerados econômicos nessa época. E, sem nos idiotizar como fãs de algum político ou partido, temos que reconhecer que há poucos vencedores e muitos perdedores em todos os governos da Nova República, sejam do PT, MDB, PSDB ou de Jair “o partido sou eu” Bolsonaro.

Mesmo em democracias consolidadas como as ocidentais há insiders e outsiders. A colunista australiana Caroline Baum, bem mais modernamente que Mark Twain, ironizou a política sugerindo que “os membros do Congresso deveriam ser obrigados a vestir uniformes como os pilotos de corrida, pois assim saberíamos quem são seus patrocinadores”. Se assim fosse no Brasil, não saberíamos nem a cor do uniforme dos políticos, tantos são os interesses privados – nem sempre legítimos – patrocinados por nossos parlamentares. Nossa democracia é cheia de insiders, em grau maior ou menor, no comando das decisões políticas, mas a maior parte de nossa população é completamente despossuída de qualquer forma de fazer valer sua vontade e seus interesses coletivos. Nem mesmo no período eleitoral, a cada quatro anos, isso acontece.

Esse problema é historicamente bem conhecido. Diversas civilizações tentaram controlar o poder excessivo e a tentação de desvirtuá-lo em favor pessoal, de amigos e família. Na Grécia Antiga, tínhamos o ostracismo, em que os cidadãos – poucos e homens – podiam exilar sem qualquer motivo qualquer outro cidadão. No Império Otomano, crianças de outros povos eram escravizadas, impedidas de terem filhos e educadas para formar a cúpula burocrática e militar do sultanato, pois elas não possuíam qualquer laço familiar com os clãs turcos que formavam a elite e, portanto, seriam completamente leais ao governante. Até mesmo os eunucos, responsáveis pela guarda do harém, além de serem escravos sem família, eram castrados para que nem sequer sentissem desejo sexual pelas mulheres do sultão. A própria Igreja Católica, com a sua doutrina do coração dividido, ou seja, o coração do sacerdote não poderia estar dividido entre a família e a igreja, impôs o celibato como forma de controle. Por mais tentador que algumas soluções possam parecer, o estado moderno adotou o constitucionalismo e o estado de direito como a solução do problema.

Leis, contudo, são feitas por homens, bem como são homens que as aplicam e dão a palavra final sobre o que elas significam. E, assim, haverá sempre mais beneficiários indevidos dessas leis e decisões, fazendo com que a vontade dos insiders se retroalimente e prevaleça cada vez mais sobre o interesse geral. Dessa forma, interesses privados ajudam outros interesses privados, resultando não mais em um sistema de freios e contrapesos, tal como idealizado por Montesquieu e aplicado pelos “founding fathers” americanos, precursores do nosso constitucionalismo, mas em um sistema que pode ser resumido simplesmente na velha máxima de que uma mão lava a outra e duas lavam a cara. Assim, a democracia brasileira degenerou-se, não em uma demagogia apenas, como vemos com o populismo de Lula e Bolsonaro, mas em uma plutocracia partidária que decide os destinos do país, contra o povo e a favor de si mesma.

Além disso, o sistema de nomeações para tribunais superiores traz para a política a influência necessária para fechar o círculo vicioso de apropriação dos bens públicos pelos interesses privados. Cada vez mais vemos verdadeiras nulidades desonrando os altos cargos que ocupam no judiciário, pigmeus morais que só agigantam seus padrinhos políticos em troca de uma dignidade fingida – seus títulos de “vossa excelência” ou de “notáveis”, que faz o brasileiro “a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”, como tenho certeza repetiria hoje Ruy Barbosa.

O que temos no Brasil é um sistema jurídico cooptado pelo sistema político. A Constituição ainda é defendida por poucos que têm coragem de se opor a essa corrupção da moral pública, mas fica cada vez mais difícil mostrar à população o que ocorre efetivamente nesse sepulcro caiado a que chamamos de política, pois o grande vetor de informação, a imprensa, é cada vez mais irrelevante diante das redes sociais, transformando-se apenas em um catálogo de versões sobre os acontecimentos e não em investigadores críticos sobre os fatos.

A única forma de quebrarmos esse círculo vicioso é uma revolução democrática. Para salvar a democracia é preciso mais democracia. E não estou falando em democracia direta, especialmente em um mundo cada vez mais incompreensível para a maioria da população, mas em um retorno aos princípios clássicos da democracia representativa, com partidos políticos que representem as grandes ideias políticas, e não interesses de grupos econômicos ou, pior, de caciques políticos; que sejam os filtros finais de um grande sistema de seleção de lideranças que se espraie por toda a sociedade, trazendo para a política pessoas capazes de pensar de forma plural o bem comum; em um sistema de controle do abuso do poder econômico no processo eleitoral, com uma justiça capaz e independente que imponha o ostracismo político dos infratores graves.

Infelizmente, a lista daquilo que precisamos para o progresso de nosso país é tão longa que chega a desanimar qualquer pessoa honesta, especialmente quando se vê o empenho de parte significativa do Congresso Nacional e dos Tribunais em garantir o atraso e o retrocesso. Mas, como disse um dia Abraham Lincoln: “Nós, os cidadãos, somos os senhores legítimos do Congresso e dos tribunais, não para derrubar a Constituição, mas para derrubar os homens que pervertem a Constituição”. Esse é um dos nossos direitos mais básicos e não podemos abrir mão dele.

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