Adriano Machado/Crusoé

Há um Brasil que dá certo

01.01.21
Luís Roberto Barroso

Parte do país ficou viciada em notícia ruim. É bastante compreensível. São anos de escândalos de corrupção, recessão e desemprego elevado. Tendo se acostumado com o insucesso, muita gente já não consegue reconhecer as coisas que dão certo. É como se boas realizações atrapalhassem a narrativa do fracasso geral. No rol de carências do país, um bom psicanalista também pode vir a calhar.

Este ano, em meio a uma pandemia que já produziu um número de mortos que se aproxima de 200 mil, o Brasil realizou eleições para prefeitos e vereadores em 5.568 municípios. Foram mais de 550 mil candidatos. Embora o sistema político brasileiro tenha problemas variados – é caro, tem baixa representatividade e dificulta a governabilidade –, o sistema de apuração dos resultados é um dos melhores do planeta.

Peço licença, então, para contar uma história do Brasil que dá certo. E não há nada de personalista ou cabotino no que vou descrever. O sistema de urnas eletrônicas vem desde 1996 e, portanto, seu aperfeiçoamento é consequência de sucessivas gestões do Tribunal Superior Eleitoral. Narro, porém, alguns dos diferentes obstáculos que precisaram ser superados em 2020.

O primeiro foi evitar o cancelamento das eleições. Diversos parlamentares defenderam essa medida para que as eleições municipais fossem transferidas para 2022, coincidindo com as eleições gerais. A prorrogação de mandatos – que só teve precedente no regime militar – conflitava com os princípios que exigem a periodicidade dos mandatos, a regularidade das eleições e a alternância no poder.

Evitado o pior, era preciso considerar a possibilidade do adiamento, ainda que dentro de 2020, para impedir a prorrogação de mandatos. O TSE, então, constituiu uma comissão de médicos, composta por infectologistas, sanitaristas, epidemiologistas, um biólogo e um físico especializado em modelagem de epidemias para monitorar a evolução da pandemia. Por unanimidade, a comissão concluiu que adiar a votação por algumas semanas minimizaria o risco de contágio. Com essa informação, o TSE contatou os presidentes do Senado Federal, Davi Alcolumbre, e o da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que, em tempo recorde, aprovaram emenda adiando as eleições por 42 dias. O adiamento se revelou acertado e as eleições se realizaram quando o número de casos havia caído significativamente.

Em seguida, iniciamos as providências para dar o máximo de segurança a eleitores, candidatos e colaboradores da Justiça Eleitoral. Instituímos, assim, uma comissão de estatísticos, formada por profissionais do próprio TSE, IMPA, Insper, USP e Fiocruz. Eles recomendaram que aumentássemos em uma hora o período de votação e que reservássemos as três primeiras horas para os maiores de 60 anos. As recomendações foram acolhidas e, de fato, na maior parte das seções, não ocorreram filas longas ou aglomerações.

Simultaneamente, criamos uma consultoria sanitária para elaborar um plano de segurança para eleitores, candidatos e colaboradores da Justiça Eleitoral. A consultoria foi integrada por três instituições de ponta: Fundação Oswaldo Cruz, Hospital Sírio-Libanês e Hospital Albert Einstein. Além de um plano minucioso, que foi explicado didaticamente em cartazes espalhados por todos os locais de votação, também foi recomendada a aquisição de uma grande quantidade de materiais e equipamentos de segurança: máscaras, protetores faciais (face shields), álcool gel e outros itens para limpeza e organização da seção.

Estávamos em agosto. Não haveria tempo hábil par adquirir tudo pelo procedimento licitatório exigível da Administração Pública. Além disso, seria preciso obter do Tesouro Nacional mais alguns milhões de reais. Optamos por fazer uma chamada pública à iniciativa privada para que se tornasse parceira da democracia. Sinal extraordinário dos novos tempos, cerca de 40 empresas e entidades se apresentaram e graciosamente doaram tudo o que precisávamos, mais a gigantesca logística de distribuição por 26 estados. O transporte foi feito por avião, mais de 150 carretas, barco, balsa, tração animal e a pé. Uma pioneira parceria público-privada que deve orgulhar o Brasil.

Outro fantasma que assombrava as eleições era o das campanhas de desinformação e de circulação de notícias fraudulentas (fake news). Montamos uma operação de guerra para enfrentá-las. Fizemos parcerias com todas as mídias sociais. O combate foi feito, não pelo controle de conteúdo, mas impedindo os comportamentos coordenados inautênticos, como perfis falsos, uso abusivo de robôs e impulsionamentos ilegais. Foram derrubadas centenas de contas de milicianos digitais. Também fizemos uma coalizão com nove agências de checagem de notícias, que, em tempo recorde, desmentiam conteúdo falso sobre o processo eleitoral. A avaliação geral foi que as notícias fraudulentas tiveram mínimo papel nas eleições.

Mais de 113 milhões de eleitores compareceram no primeiro turno. Continuamos a ser a quarta maior democracia do mundo. E as consequências para quem não comparece são tão pequenas que quase é possível dizer que o voto no Brasil é facultativo. Aliás, e para deixar claro, por ora acho que o voto deve continuar a ser obrigatório, para evitar a deslegitimação da democracia e a exacerbação da polarização. Em algum lugar do futuro, porém, deverá ser verdadeiramente facultativo. A abstenção foi de cerca de 23%, percentual muito bom para um pleito em plena pandemia.

Os resultados do primeiro turno foram divulgados no próprio dia. Um engasgo no novo equipamento, que pela primeira vez realizava a totalização centralizadamente no TSE, provocou um atraso de duas horas e 50 minutos na divulgação. Por alguns dias, o vício em notícia ruim fez com que alguns procurassem fazer desse pequeno contratempo um grande problema. Mas logo a tolice se dissipou. Revelar os eleitos em quase 6 mil municípios com absoluta fidedignidade, na noite do dia da votação, é um feito extraordinário. E, no 2º Turno, tudo saiu perfeito. A votação se encerrou às 17 horas e, às 19h30, os resultados já eram públicos.

Uma última palavra sobre a confiabilidade do processo eleitoral. Com o respeito devido às pessoas de boa-fé que pensam o contrário, as urnas eletrônicas se revelaram até aqui totalmente imunes a fraudes. Fraude havia no tempo do voto em cédula. E voto impresso, como decidiu o Supremo Tribunal Federal, é incapaz de assegurar a preservação do sigilo. Não adianta olhar para a experiência de outros países. No Brasil, até o painel de votação secreta do Senado Federal foi violado. A seguir, uma breve explicação para quem queira entender.

As urnas não operam em rede, isto é, não têm conexão via internet ou bluetooth. São imunes aos ataques hackers, sejam dos anarquistas (que querem provar que conseguem vencer as barreiras de segurança), dos chantagistas (que bloqueiam o funcionamento do sistema para cobrar resgate) ou dos fascistas (que querem desacreditar o sistema democrático). Daí a frustração que o sistema brasileiro produz nas milícias digitais.

Além disso, os programas para votação, apuração e totalização são submetidos à conferência dos partidos, do Ministério Público, da Polícia Federal, da OAB e de outras instituições. Em seguida, recebem o que se denomina lacração, procedimento que impede a sua adulteração. No dia das eleições, antes do início da votação, a urna imprime um boletim, chamado de zerésima, que comprova que não há qualquer voto nela. E, ao final da votação, ela emite o boletim de urna, com o nome e a votação dos candidatos. Ou seja: o resultado já sai impresso e é possível conferi-lo com os números divulgados pelo TSE. E mais: no dia da eleição, em todos os estados, dezenas de urnas são sorteadas para um procedimento de auditoria feito perante todos os partidos, num verdadeiro teste de integridade.

O voto impresso traria enorme confusão para um processo eleitoral de grande sucesso há mais de um quarto de século. Seria como mexer em um time que está ganhando. Basta imaginar a quantidade de candidatos derrotados pedindo recontagem, conferência e engendrando nulidades. Em vez de saírem das urnas, os vencedores passariam a depender de decisões judiciais. Não consigo pensar nada mais aterrorizante.

A propósito: o presidente dos Estados Unidos, fragorosamente derrotado nas eleições daquele país, já propôs mais de 50 ações judiciais, pedindo nova contagem de votos e anulações. Nenhuma foi considerada com fundamento, inclusive pela Suprema Corte, onde a maioria dos juízes foi nomeada por republicanos. Há quem ache que devemos imitar algumas coisas boas dos americanos. Mas as ruins, certamente não precisamos.

Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

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