Ricardo Giusti/PMPA

O estranho normal

01.01.21
Eduardo Wolf

Escrever sobre o mundo pós-Covid-19 é um exercício de imaginação, mais que de análise. Na verdade, assim seria mesmo sem o catastrófico evento da pandemia global de 2020, como o demonstram as frequentes matérias jornalísticas de fim de ano “prevendo” o futuro. Nossa correta percepção de uma tragédia humanitária de escala planetária em função do estrago causado pelo novo coronavírus faz com que as atenções todas se voltem para como este ou aquele setor de nossas vidas poderá se recuperar no ano que se anuncia novo, e do qual esperamos uma espécie de justiça reparadora – compensações ao horror vivido em 2020.

Há gente muito competente para imaginar e analisar cenários específicos para o mundo pós-Covid. De médicos a economistas, de analistas políticos a cientistas computacionais, muitos são os que podem oferecer sua contribuição especializada para a compreensão de como esses setores sairão da pandemia. Se nos interrogássemos, contudo, a respeito de certos traços mais gerais de nossa experiência humana, como por exemplo o modo como vivemos juntos em sociedade, os valores éticos e políticos que constituem essa vida partilhada e a cultura que informa a identidade do que somos – quer como indivíduos, quer como grupo –, então talvez devêssemos recorrer à Filosofia, e não às disciplinas especializadas.

Refiro-me, é claro, não à filosofia como prática burocrática profissional, ou como atividade de picadeiro digital, como virou moda recentemente, mas sim à Filosofia como a disciplina humanista que ela sempre foi por vocação. É ela que melhor servirá, nesse sentido, à tarefa de vislumbrar os rumos de nossa cultura e de nossos valores comuns no mundo pós-pandemia.

Desde fevereiro de 2020, quando casos do novo coronavírus começaram a ser registrados fora da China, nossa atenção foi capturada pela rapidez do contágio do vírus e pelas intensas transformações que a realidade da pandemia (reconhecida apenas em 11 de março pela Organização Mundial de Saúde) impôs ao mundo inteiro. A gravidade das notícias se aprofundava e alcançava nossas vidas nos mínimos detalhes: das imagens de cidades chinesas isoladas pela ditadura comunista ao fechamento de comércio e serviços aqui mesmo, no Brasil, do mais radical processo de paralisação de atividades econômicas e sociais vivido pela Europa e pelos Estados Unidos ao confinamento individual em nossas casas durante uma longa, incerta e desigual quarentena brasileira, os fatos eram eloquentes: uma nova realidade acabara de se impor. A expressão banalizada “novo normal” é mais do que um chavão comunicativo para profissionais de imprensa: a mudança era tremenda e, tudo indicava, não passaria tão rápido.

Ainda nos primeiros momentos dessa transformação, em meio a tantas incertezas, alguns desafios pareciam evidentes: o esforço científico de desenvolvimento da vacina, a ampla tarefa de esclarecimento público sobre o contágio, o esforço coordenado para conter a disseminação do vírus, a necessidade incontornável de ação célere e substancial de ajuda aos mais pobres e, em geral, aos setores mais afetados pelo fechamento da economia e da vida social. Pareciam evidentes, mas não eram. O que testemunhamos nos últimos dez meses, pelo contrário, indica que não apenas não havia consenso quanto a essa realidade factual e quanto às necessidades que dela derivavam lógica e empiricamente, como, mais do que isso, havíamos atingido um ponto de cisão, de fragmentação de nossas vidas sociais, que a própria ideia de algo evidente se apresentava a nós como um absurdo. O consenso, para nós, se revelou um contrassenso.

Foi assim que acompanhamos a explosão de argumentos negacionistas da epidemia, de teorias conspiratórias quanto à sua origem e de uma espécie de insurreição da obtusidade convicta contra a realidade. Quer fosse uma parcela da reacionária elite brasileira fazendo buzinaços e danças com caixões em frente a hospitais nos quais morriam seres humanos aos montes, quer fossem grupos terroristas como os supremacistas brancos que, nos Estados Unidos, planejaram o sequestro da governadora do Michigan em protesto contra as ações para conter o novo coronavírus, 2020 escancarou a nossa atual condição para todos os que estivessem dispostos a ver: simplesmente não há valores éticos e políticos comuns que sejam capazes de nos fazer habitar um mesmo mundo novamente. A erosão de nossa experiência social compartilhada ao longo das últimas décadas ficou explícita. Nosso insulamento começou bem antes das medidas de isolamento social durante a pandemia.

Entre as muitas explicações verdadeiras e compatíveis entre si para esse fenômeno estão aquelas que são passadas com alguma frequência na imprensa e no debate público: o triunfo da internet e das redes sociais, com a consequente derrocada das instituições de “filtragem” ou mediação que foram centrais ao longo do século 20; a difusão da lógica das guerras culturais – produto tipicamente americano – com a polarização política passando a ser quase que exclusivamente orientada por questões morais e identitárias; um hiperindividualismo difuso, que atua tanto na economia como na sociabilidade. Elas são a parcela visível, quase palpável de nossa radical fragmentação. Não se trata mais de discordar de quais interpretações e explicações melhor dão conta dos fatos: não há acordo sobre fato algum. Bolsonaro afirmando “É só uma gripezinha”, referindo-se à Covid-19, ou Donald Trump tuitando “Eu ganhei a eleição de lavada”, referindo-se à eleição que de fato perdeu significativamente para Joe Biden, são os casos-limite de um estado de coisas que hoje atinge parcelas imensas da população mundial. Como não habitamos mais um mesmo mundo, também não somos mais um mesmo nós: o que a linguagem corrente e jornalística chama de “bolhas” é a consumação do processo de implosão da realidade compartilhada, da possibilidade de experiência comum e do sentido mais elementar de pertencimento coletivo que estruturou nossas vidas até meados do século 20.

O mundo que se apresenta em 2021, com a desejada (mas ainda hipotética) superação da pandemia global de Covid-19, será o mundo da normalização desse insulamento. Será o mundo da radicalização de conflitos provocados não mais por choque de visões políticas, mas por choque de descrições de realidades alternativas; o mundo em que as instituições mais elementares que estruturavam a experiência coletiva – a democracia constitucional representativa, as liberdades individuais, o apreço à informação, à ciência e à cultura – já foram irreversivelmente abaladas e alteradas; o mundo em que os valores éticos e políticos que formaram o nosso horizonte de debates filosóficos, sociais e culturais foram deslegitimados gravemente.

Não é uma avaliação catastrofista, penso eu. Digo isso porque esse diagnóstico nos convida a estarmos abertos à questão “Nós quem?”. Afinal, que primeira pessoa do plural é essa à qual atribuí valores, cultura e instituições comuns ao longo desta argumentação? Penso que essa pergunta deva ser feita e respondida pela Filosofia, entendida como uma disciplina humanista, disposta a investigar de que modo nossos valores (por exemplo, igualdade, liberdade, respeito, tolerância) e nossas instituições (digamos, o Estado de Direito e suas figuras) se tornaram nossos. Trata-se de uma condição absolutamente necessária para podermos compreender como, diante de todo o horror que vivemos juntos em 2020, não conseguimos viver como se fosse o nosso horror comum, afetando o nosso mundo compartilhado. Não é catastrofista, em suma, porque aposta sinceramente que somos capazes de superar nosso insulamento tanto quanto somos capazes de superar o vírus. Aliás, possivelmente, somente superaremos um superando o outro.

Eduardo Wolf é doutor em Filosofia e pesquisador da USP.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO