A blindagem continua
Não é de hoje que escritórios de advocacia são flagrados em tramas desvendadas por investigações de combate a organizações criminosas. A Lava Jato lançou mais luz sobre casos dessa natureza e expôs situações nada republicanas envolvendo bancas conhecidas e outras nem tanto, como o uso de cerca de 200 escritórios para escoar propina a agentes públicos, conforme revelou o empresário Joesley Batista, da JBS. Em 2020, a Operação E$quema S, baseada na delação premiada de Orlando Diniz, ex-presidente da Fecomércio do Rio de Janeiro, foi ainda mais fundo ao desbaratar um esquema responsável por desviar 150 milhões de reais da entidade, abastecida em parte com dinheiro público. Entre os envolvidos, havia um time auricularmente respeitável da advocacia nacional, como o filho do presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins. O jovem defensor Eduardo Martins e outros parentes de magistrados acabaram alvos de busca e apreensão, tiveram seus sigilos quebrados e foram denunciados pelo Ministério Público. Um dos citados na delação de Orlando Diniz, mas não denunciado, foi o próprio presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB, Felipe Santa Cruz.
Sob pressão após as investigações colocarem uma grande lupa sobre supostas atividades ilícitas praticadas por escritórios de advogados, o Conselho Federal da OAB agora tenta dourar a pílula: promete debater internamente e apresentar uma norma a ser seguida pelos seus associados, para que eles se enquadrem na lei de lavagem de dinheiro, que, na verdade, deveria estar sendo cumprida desde 2012. Entre os investigadores, porém, o temor é o de que os advogados adotem a máxima lampedusiana de mudar para manter tudo como está — ou seja, o receio que continuem atuando no sentido de preservar a blindagem que hoje protege as bancas.
A lei que definiu o crime de lavagem e estabeleceu ações preventivas é de 1998. Desde 2012, seu texto foi atualizado e tornou obrigatório que advogados e escritórios com atuação em determinados setores comunicassem às autoridades financeiras, como o Coaf, operações suspeitas. Estariam obrigados a seguir a nova regra advogados com atuação em compra e venda de imóveis e afins, na gestão de fundos e ativos, na abertura de contas bancárias e investimentos, na criação, exploração e gestão de sociedades, na alienação e aquisição de contratos nas áreas artística e desportiva.
Ultimamente, lançar dúvidas sobre as verdadeiras intenções da Ordem dos Advogados é mais do que uma questão de prudência. É importante lembrar que, em paralelo às medidas às quais pretende dar ares de novidade, embora já devessem estar sendo respeitadas, a OAB encampa no Congresso um projeto cujo regime de urgência foi aprovado na Câmara no apagar das luzes de 2020, que prevê, entre outras coisas, a inviolabilidade dos escritórios de advocacia. Ao restringir a realização de buscas e apreensões nesses locais, o texto favorece advogados investigados em casos de corrupção e envolvidos com o narcotráfico. Como revelou Crusoé na reportagem de capa da edição 139, entre os articuladores da iniciativa está o próprio Felipe Santa Cruz, o presidente nacional da Ordem, além de filhos de ministros de cortes superiores.
A proposta a partir da qual a OAB pretenderia finalmente atender à demanda para se adequar à lei antilavagem foi elaborada pelo criminalista Juliano Breda, uma das novas estrelas da advocacia surgidas na onda da Lava Jato. O texto sugerido é dividido em três capítulos. Sobre as comunicações ao Coaf, a proposta prevê o que já estabelece a lei: que o Conselho da Ordem vai regulamentar em 90 dias “as medidas de prevenção e controle de lavagem de dinheiro, deveres e obrigações de identificação e cadastro de clientes, registro de operações, guarda e conservação de registros e documentos e comunicação de atividades suspeitas” que envolvam os advogados. Não estão sujeitos à norma, porém, advogados e escritórios que atuam em processos judiciais comuns, como os criminais, cíveis e tributários. Também ficam de fora os pareceristas e consultores.
Na prática, o que se pretende, aparentemente, é indicar o caminho das pedras para que os advogados que cometerem ilegalidades não sejam apanhados pela Justiça. Segundo a lógica de Breda, não eram os advogados que estavam agindo ao arrepio da lei, mas sim a Receita que não estava “aceitando a explicação” sobre consultorias prestadas por escritórios de advocacia. Teria havido, portanto, segundo o mesmo raciocínio, um equívoco ou falta de compreensão das investigações que flagraram advogados em malfeitos. Um claro sofisma. Questionado por Crusoé, Felipe Santa Cruz demonstrou estar afinado com Breda. Ele diz que “o Ministério Público passou a fazer questionamentos improcedentes” e que “as formas de investigação no Brasil estão criando constrangimentos à advocacia por valores recebidos do cliente”. Afirma ainda que o caso da Fecomércio “foi um episódio de criminalização da advocacia” e que o fato de ele ser citado “é uma prova da esculhambação que virou a delação no Brasil”.
Para Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional no Brasil, causa estranheza a inclusão de temas relacionados à comprovação de serviços para a Receita dentro da regulamentação. “Parece desviar do espírito preventivo do delito de lavagem e se orientar mais para uma defesa dos próprios advogados em relação aos seus riscos legais“, diz Brandão. A principal crítica feita por investigadores à proposta da OAB está relacionada às chamadas consultorias jurídicas. Um artigo do texto exclui, por exemplo, a necessidade de advogados e escritórios comunicarem às autoridades financeiras operações relacionadas a consultorias e emissão de pareceres. Esse é um ponto crucial porque é justamente por meio de contratos de consultoria – muitas vezes fictícios – que são mascaradas muitas das transações ilegais descobertas recentemente envolvendo as bancas. “Nos tais contratos de consultoria há dificuldade em se provar se o serviço foi prestado ou não. Por isso, é um modelo que tem sido muito utilizado em esquemas criminosos”, diz um delegado, sob reserva.
Outro ponto alvo de críticas é a possibilidade de recebimento, pelo advogado, de honorários de terceiros que não estão necessariamente envolvidos no serviço prestado. No entendimento dos investigadores, da forma como está a proposta, não há muita clareza sobre como o advogado irá justificar o pagamento de um terceiro. Um artigo da proposta diz apenas que “está liberado o pagamento dos honorários advocatícios por terceiros não beneficiários dos serviços profissionais desde que justificado”. A proposta também não cria alternativas para os famosos pagamentos em dinheiro vivo. O texto só diz que o advogado que receber “pagamentos, total ou parcialmente, em espécie” deverá observar as regras da Receita Federal. Atualmente, é preciso informar ao Fisco os valores e as partes envolvidas sobre qualquer transação em dinheiro acima de 30 mil reais. Para quem está do outro lado, cobrando mais transparência, porém, com as facilidades trazidas pelas novas tecnologias, como o Pix, os recebimentos em espécie deveriam ser eliminados. “É uma questão jurídica. O Congresso precisa dizer que não existe mais dinheiro no Brasil. Não posso criminalizar o advogado porque recebe. Estamos colocando regras para que ele se proteja”, defende Felipe Santa Cruz. A constatação óbvia é que a ideia geral é, antes de tudo, formalizar – e legalizar – as velhas práticas que têm facilitado a vida daqueles que querem andar na contramão da lei.
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