Carlos Fernandodos santos lima

A democracia atacada

08.01.21

A democracia encontra-se sob ataque! Não só aqui no Brasil com os arroubos autoritários de Jair Bolsonaro, mas também no próprio berço da democracia ocidental, os Estados Unidos da América. As cenas da invasão no Congresso americano, incentivadas por outro demagogo mentiroso, com a finalidade de interromper uma solenidade meramente formal de chancela da eleição de Joe Biden à presidência, mostram que temos muito o que nos preocupar. Se lá os fatos evocam uma república das bananas, aqui, que nem temos 35 anos de democracia, a sensação de deslegitimação do sistema democrático pode acender novamente aventureiros na Presidência da República, e ao redor dela, para quarteladas típicas de regimes bananeiros.

Lição antiga é que todas as formas de governo consideradas boas ou puras têm forte propensão a se corromper. Assim também ocorre com a democracia, transformada aqui no Brasil pelo abuso do poder econômico em apenas um jogo de pão e circo a cada quatro anos. Sem instituições, sem regras rígidas que impeçam que poderosos exerçam influência indevida nas escolhas dos representantes populares, sem partidos consolidados, fortes, internamente democráticos e programáticos e sem um sistema de justiça funcional e independente, certamente em pouco tempo a democracia transforma-se em demagogia e populismo. É a isso que temos assistido pelo Brasil e pelo mundo. Não se trata de combater Bolsonaro ou Trump, e eles devem ser combatidos, mas sim perceber que há algo muito podre corroendo as vísceras dos estados democráticos.

Se lá fora está ruim, a situação brasileira chega a desesperar qualquer pessoa com o mínimo de espírito democrático e republicano. Que país pode aceitar uma elite política como a brasileira? Candidatos a cargos importantes nos governos e nos parlamentos são milionários devedores do fisco, frequentadores de manchetes de jornal por crimes do colarinho branco, se não forem também investigados, acusados ou até réus em processos criminais — e nós, brasileiros, cansados de tanto acreditar nos recentes anos de que era possível mudar, voltamos a merecer o epíteto de bestializados com o qual historiadores nos brindaram. Quem destrói a democracia brasileira é um presidente da República que é oposição ao seu próprio governo, contrapondo-se por mero capricho, ignorância ou má-fé, ou tudo isso combinado e potencializado, a qualquer medida minimamente sensata em favor da saúde pública, do combate à corrupção e da sanidade das contas públicas. Estamos pondo a perder o pouco conquistado pela Nova República, no campo social e no econômico, vendo fantasmas do passado, como a inflação, novamente rondarem nosso cotidiano.

Mas não é só Jair Bolsonaro. O Partido dos Trabalhadores liderado por Lula tem uma parcela importante de responsabilidade nesse processo. Quem se vendeu para empreiteiras milionárias, potencializando todo o processo de corrupção da política, antes atomizado em pequenos esquemas de corrupção nos governos, transformando tudo num grande caixa de corrupção controlado por tesoureiros partidários, foi Luiz Inácio Lula da Silva. Essa corrupção sistêmica desencantou o país e permitiu que alguns apelassem para um sentimento falso de um passado mentirosamente muito menos corrupto e mais ordeiro. Quem desmoralizou a esquerda brasileira foi o Partido dos Trabalhadores, trazendo a pecha da corrupção, no passado tão ligada à direita do “rouba, mas faz”, para aqueles que hoje defendem o “rouba, mas tem políticas sociais”. Quem diria que malufismo e lulismo se reencontrariam no ocaso de seus próceres?

Não são somente esses dois extremistas, Bolsonaro e Lula, faces da mesma moeda do populismo, que apodrecem o tecido político brasileiro. Quem pode aceitar a paralisia do Congresso Nacional em plena crise de governabilidade, de saúde pública, de responsabilidade fiscal e de sobrevivência de pessoas e negócios, apenas porque o Rodriguinho Maia disputa o controle do playground com o Lirinha. Na verdade, o Brasil é realmente um grande pátio de colégio dominado por grupos de “piás pançudos”, como dizemos no Paraná, que fazem bullying com as outras crianças e até mesmo com professores e funcionários da escola. Talvez nem mais apenas um grupo de crianças mal-educadas, mas já adolescentes formando suas gangues para manter o controle pela violência e pelo crime.

A democracia morre também pela condescendência com esse bullying político. A permissividade com que são aceitas as manifestações de Jair Bolsonaro no Brasil, ou de Trump nos Estados Unidos, quando atacam os cada vez mais fragilizados pilares da democracia de seus países, são um dos males mais graves a destruir a legitimidade democrática. A democracia envergonha-se de usar a lei e a Constituição contra aqueles que a subvertem, e essa omissão acaba se revelando mais nefasta para a sua saúde e sobrevivência que a pura aplicação da lei. Se Trump ou Bolsonaro tivessem sofrido o impeachment, ambos os países estariam melhores agora. Mas lá o Partido Republicano preferiu passar pano nas sujeiras de Trump, enquanto aqui Rodrigo Maia preferiu fingir que não existem dezenas de pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro, só se indignando e ameaçando o presidente quando este se intrometeu no desejo de Botafogo de se tornar perpétuo presidente da Câmara dos Deputados.

Assim, também já deveríamos ter colocado Lula na penitenciária, bem como boa parte dos principais envolvidos nos esquemas do mensalão e da Lava Jato e que hoje novamente dá as cartas no ministério do atual governo ou nos dois grupos que lutam pelo comando da Câmara dos Deputados. Que espetáculo mais trágico ver que a disputa pelo poder no Congresso Nacional será entre o ruim e o pior, entre o diabo e o coisa-ruim, como diria Leonel Brizola, resultando, como na eleição de 2018, na derrota do país qualquer que seja o candidato eleito.

É preciso reconstruir o império da lei no Brasil. A falácia repetida por muitos, inclusive na imprensa, de que os políticos devem se submeter apenas ao julgamento popular deve cair por terra. É justamente ela que cria um círculo vicioso em que a política desvirtua o processo eleitoral pelo abuso do poder econômico, fazendo com que a vontade popular se torne apenas um simulacro de democracia, reforçando ainda mais os mesmos esquemas econômicos e suas mascotes populistas e demagogas. Crime é crime e deve ser punido como tal segundo as regras de direito e pelo devido processo legal por um Judiciário independente. Responsabilidade política, esta sim, deve ser julgada pela população em processos eleitorais legítimos e transparentes. Confundir ambas as instâncias, trazendo impunidade para políticos corruptos só deslegitima a democracia.

Agora, nos Estados Unidos, lideranças empresariais e até mesmo políticos republicanos falam em declarar Trump incapaz, incapacidade moral essa que já é clara há muito tempo. Enquanto lá isso vem ridiculamente tarde, aqui também temos um presidente incapaz, com mais dois anos no poder, mas cuja manutenção interessa às gangues do parquinho político. Estamos nós, cidadãos brasileiros, infelizmente, reféns desse sistema, e somente com um trabalho persistente de formação de lideranças democráticas, de fortalecimento das instituições republicanas como a polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário, bem como pela edição de leis severas – muito mais severas do que aquelas destruídas pelo grupo gilmaresco do STF ou pelas vergonhosas incursões noturnas chefiadas por Rodrigo Maia –, poderemos sair em três ou quatro gerações para um país mais democrático em que os políticos sejam honestos e, pelo amor de Deus, pareçam se importar com o povo.

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