Largada com atraso
Para resgatar a economia, retomar a vida em sociedade e evitar mortes, alguns governos têm se apressado para vacinar seus cidadãos. Israel já imunizou 22% da população. Os Emirados Árabes, 12%. Em termos absolutos, os campeões de vacinação são China e Estados Unidos, com quase 10 milhões de beneficiados cada. Esses países produziram e compraram com antecedência doses além do numericamente necessário. Em seguida, colocaram em prática estratégias para vencer a resistência de alguns grupos à imunização.
O Brasil é o único país do mundo em que, além de a vacinação nem sequer ter começado, o governo nacional ajuda a retroalimentar teorias da conspiração, gerando mais rejeição entre a população. Um em cada quatro brasileiros diz que não pretende aderir a nenhuma das que devem ser disponibilizadas no país. Na previsão do presidente Jair Bolsonaro, que tem repetido declarações contrárias à imunização, a maioria da população se negará a tomar a vacina. “Pelo que eu sei, menos da metade vai tomar vacina. E essa pesquisa que eu faço, faço na praia, faço na rua, faço em tudo quanto é lugar“, disse ele, em frente ao Palácio do Alvorada.
Em parte, a rejeição à vacina é um fenômeno global que tem crescido com as teorias da conspiração. A suspeita de que vacinas podem causar autismo ou esclerose múltipla ganhou força no Reino Unido e na França nos anos 1990 e, mesmo sem evidências, deixou marcas na mentalidade coletiva. Muitos dos que duvidam que elas sejam seguras geralmente também acreditam em outras teorias, como o terraplanismo ou a ideia de que o homem nunca pisou na Lua. “As pessoas que acreditam em conspirações normalmente têm dificuldade com o raciocínio analítico. Elas não conseguem desmembrar um assunto em várias partes e fazer relações entre elas”, diz o psicólogo Thales Vianna Coutinho, que realizou uma pesquisa sobre a resistência a vacinas no Brasil.
Entre os que aprovam o governo de Bolsonaro, 63% dizem que não se imunizariam com uma vacina aprovada ou desenvolvida pela China, segundo o Datafolha. Outra parte da população sente apreensão porque as vacinas foram desenvolvidas em tempo recorde, com protocolos científicos adaptados, e nem todas as empresas e governos estariam sendo transparentes e honestos na divulgação dos dados. Nesse sentido, a divulgação da eficácia global de 50% da eficácia da Coronavac uma semana após o governo de São Paulo e o Instituto Butantan anunciarem que a eficácia era de 78% só contribuiu para criar mais incertezas.
Para evitar inconvenientes, quanto mais transparência, melhor. Nos países que estão utilizando a vacina russa Spunitk V, a falta de dados confiáveis é muito mais grave. “Na Argentina, só descobrimos que os idosos não seriam vacinados quando o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou que não tomaria a dose porque tem 68 anos”, diz o médico Jorge Iapichino, secretário da Confederação Médica da República Argentina. Enquanto no Brasil o Instituto Butantan foi obrigado a explicar seus dados incompletos após intensa pressão de cientistas, médicos e jornalistas, na Argentina a sociedade civil não tem qualquer poder de influência. “O governo não tem conversado com os médicos. Nós mandamos uma carta pedindo mais dados sobre a vacina, mas não tivemos nenhuma resposta”, diz Iapichino.
No combate à Covid, a França também criou vários canais de comunicação direta com a população. O imunologista Alain Fischer foi escolhido para ser o porta-voz da vacina. Apelidado de “Monsier Vaccin”, é ele quem se encarrega de transmitir as informações da forma mais clara possível. Como não se trata de uma figura política, sua credibilidade é maior. Fischer também está comandando diversos comitês, com participação de profissionais de saúde e da sociedade civil, para calibrar a mensagem governamental e apresentar respostas para os principais medos das pessoas. Até agora, a França vacinou 250 mil pessoas. “Toda campanha de vacinação é uma negociação entre os cientistas e a população. Para ter sucesso, é preciso ouvir quais são as dúvidas das pessoas e traduzir o conhecimento científico, respondendo o que elas querem saber. Só assim elas poderão tomar a melhor decisão”, diz Josemari Quevedo, especialista em políticas públicas e pesquisadora da Universidade Federal do Paraná.
Como o governo brasileiro deixou passar a oportunidade de comprar antecipadamente doses de outras empresas, como a Pfizer, o país deve iniciar a campanha apenas na próxima semana. Se tudo der certo, o Brasil poderá seguir o resto do mundo, onde 30 milhões de pessoas já se vacinaram. Mas nada apagará a incompetência que nos deixou tão atrás de dezenas de naçōes – e que custou milhares de vidas.
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