MarioSabino

Tuiteiro não é jornalista

15.01.21

O bolsonarismo criou a figura do comentarista que se considera jornalista sem nunca o ter sido. Fico surpreso com a quantidade deles. O sujeito passa o dia inteiro no Twitter e um belo dia (pode ser também feioso) lá está ele no rádio e na televisão, armado de um microfone coloridão, dando palpites sobre qualquer assunto que lhe despenque pela frente, e sempre com ares de sapiência, o que está longe de ser atributo de um jornalista. É curioso que sob o bolsonarismo tenham surgido tantos comentaristas que se acham profissionais da imprensa. Ao mesmo tempo, é explicável pelo desprezo que o bolsonarismo nutre por jornalistas. Trata-se de substituí-los por “gente nossa”. E quando a “gente nossa” se arrepende das fidelidades prestadas, ela recebe dos bolsonaristas o atestado de integrante da “extrema imprensa”. Ou seja, o comentarista criado por eles se torna ainda mais jornalista aos olhos de si próprio e do seu novo público.

Não é preciso ser jornalista para ser comentarista, mas — surpresa, surpresa — é preciso ser jornalista para ser jornalista. Nada a ver com carteirinha de imprensa, que qualquer energúmeno pode tirar. Jornalista é quem apura e escreve reportagens, além de fazer entrevistas para ganhar a vida (não, não basta ligar uma câmera e bater papo com um amiguinho ou brigar com o inimiguinho). É quem se considera ignorante em todos os assuntos e, por isso mesmo, não tem vergonha de perguntar o tempo inteiro e se dedica a acumular dados e histórias que podem embasar as próximas reportagens e conversas. Jornalista erra e não tem vergonha de corrigir-se. Jornalista é aquele que, na condição de repórter, submete-se à tirania de editores mais experientes na tarefa diária e quase sempre aborrecida de reportar os fatos — e dá uma banana ao emprego quando acredita que os editores nada podem ensiná-lo. Ele também pode tornar-se tirano da geração sucessiva, se esse for o seu perfil. Se você não fez nada disso, não é jornalista.

Há jornalistas bons e ruins, o que inclui ser honesto ou desonesto, mas não há como evitar o seu histórico profissional para que mereçam ser elogiados ou xingados como gente do ramo — ou seja, que tenham gastado sola de sapato e se esfalfado numa redação, em fechamentos quase sempre extenuantes. O PT lançou mão de jornalistas desonestos para lançar blogs sujos financiados por Lula; o bolsonarismo fez o mesmo, mas é dele a invenção dos comentaristas que se consideram jornalistas. O êxito da estratégia é um dos subprodutos da ampliação das redes sociais. E, assim, cá estamos nós cheios de comentaristas bancando os profissionais da imprensa e fazendo crer que opinião é fato, um belo insumo para a indústria das fake news. Tanto é que os leitores nunca confundiram tanto artigo com reportagem. Muitas vezes sou criticado ou elogiado aqui pela minha “reportagem”. Reportagem é o que os repórteres da Crusoé publicam. Aqui, sou um mero escrevinhador de artigos.

O jornalismo sempre contou com colunistas que podem falar com propriedade sobre assuntos nos quais são especialistas ou cuja abordagem serve para revelar lados eclipsados pela obviedade. Nesse caso, é uma vantagem que não sejam jornalistas, por ter capacidade de análise mais profunda e, em alguns casos, inteligência privilegiada, como é o caso de Machado de Assis e suas crônicas políticas. Num antes relativamente recente, coisa aí de dez anos, para um jornalista ganhar coluna, era preciso que ele tivesse ralado nas editorias por que passou e adquirido o que vou chamar de notório saber sobre esse ou aquele tema. Fora da Folha de S.Paulo, não era coisa para muita gente. Como a opinião vem se sobrepondo ao fato, por uma questão mercadológica os jornais passaram a dar voz própria não apenas a tuiteiros como a repórteres imaturos que, com pouco tempo de profissão ou sem nenhum talento outro que o de jogar para a galera, tornam-se articulistas de uma semana para outra. O resultado é o empobrecimento geral do tal do debate e, por tabela, um estímulo à divulgação pantagruélica de mentiras, em meio à balbúrdia opinativa amplificada também pela própria imprensa. O colunismo é uma doença infantil do jornalismo, só que agora em caráter epidêmico.

Ler sobre a minha profissão é uma chatice, assim como escrever sobre ela. Mas colunista que se preza tem de encarar alguns desertos que julga importante atravessar e não fica preocupado com a quantidade de comentários que recebe, sejam eles favoráveis ou não, embora seja um prazer receber os do primeiro tipo. Devo estar me repetindo em algum pedaço, peço desculpas. Campeonato de popularidade não é comigo.

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