RuyGoiaba

Nunca fomos tão brasileiros

22.01.21

Tem uma crônica antiga do Luis Fernando Verissimo em que o produtor de um programa humorístico sente a falta de uma das risadas da claque: Gervásio, um funcionário que pedira demissão por “problemas familiares”. Os problemas incluíam o incêndio da casa dele (com a mãe de 80 anos dentro), a mulher fugindo com o vizinho, a filha agredida pelo marido estivador e o filho jurado de morte por traficantes — e só pioram ao longo do texto. O assistente do programa insiste, Gervásio é a alma da claque, tem de voltar. Spoiler: precisando desesperadamente de dinheiro, Gervásio retorna e ri a bandeiras despregadas, ri como nunca. “Um verdadeiro profissional”, elogia uma colega da claque.

Fiz esse preâmbulo para dizer que, na volta das minhas férias e reassumindo esta coluna que deveria ser de humor, cercado de Brasil por todos os lados, nunca me senti tão Gervásio. A metáfora que usei em outro texto, o violinista do Titanic que segue tocando enquanto o navio afunda, é pouco para descrever. O ridículo atroz dos acontecimentos das últimas semanas — juro que tentei me isolar completamente do noticiário, mas fracassei — seria matéria para ótimos roteiros dos Trapalhões se não estivesse acontecendo de verdade, com um governo que é uma espécie de Michael Phelps da burrice e da incompetência (o tempo todo batendo o próprio recorde) e mais de 212 mil mortos por Covid-19. Comédia, como sempre digo, requer certa distância sanitária para ser engraçada, e nós estamos num esgoto, numa cloaca, no lugar mais insalubre possível.

Você lê, por exemplo, que Eduardo Pazuello, esse general “especialista em logística” que faria o Brasil perder uma guerra para a Guiana caso fosse invadido, formalizou a contratação como assessor especial de um sujeito cujo apelido é Markinhos Show. Além de infelizmente não ser Markinhos Moura, o imortal intérprete de “Meu Mel”, Markinhos Show — informa o Estadão — apresenta-se em seu site como “palestrante motivacional, master coach, analista em neuromarketing (…), hipnólogo [e] mentalista”, entre outros talentos. O jornal acrescenta que ele “participou de algumas das decisões recentes” do Ministério da Saúde, como adesivar aquele avião que iria para a Índia buscar vacinas SEM ter combinado com os indianos. É esse, senhores, o nível da esculhambação.

E ainda há o glorioso aplicativo TrateCov, que o ministério pôs no ar e depois tirou, para “orientar médicos” sobre o tratamento da Covid-19 e cuja resposta a QUALQUER problema de saúde é “soca cloroquina no paciente”. Você bebeu demais e ficou de ressaca, com fadiga e dor de cabeça? Cloroquina. Teve náusea e diarreia? Cloroquina e antibiótico. É um bebê de menos de um ano? Não importa — a idade não interfere na pontuação do aplicativo. E nunca é cedo demais para iniciar o “tratamento precoce”, aquele que não tem eficácia nenhuma contra Covid e o general agora jura que não defendeu nunquinha.

Volta e meia chamam Pazuello de Sargento Pincel, o que é absolutamente ofensivo — com o personagem humorístico, claro. Nem a tropa do Pincel seria tão incrivelmente incompetente ao lidar com uma pandemia quanto esses militares reais, cuja escolha para o governo se deve ao quesito fundamental que é puxar o saco do imbecil lombrosiano que o Brasil colocou na Presidência. E quero crer que Pincel, Lafond, Didi Mocó e outros soldados também não seriam tão estupidamente negacionistas. Já defendi a gambiarra, o “quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha”, como salvação do Brasil: antídoto contra a instalação de regimes autoritários com organização e disciplina. Hoje, só o que eu queria era dormir brasileiro e acordar em algum lugar como o Círculo Polar Ártico: mil vezes morrer de frio a morrer dessa doença que é a BRASILIDADE.

(Lamento decepcionar vocês que esperavam risadas. Quem sabe um dia eu consiga chegar ao nível de profissionalismo do Gervásio da claque.)

***

A GOIABICE DA SEMANA

E eis que o glorioso Magno Malta — que ficou de fora até de um governo cujo QI equivale mais ou menos à temperatura ambiente — reapareceu no noticiário da maneira mais edificante possível: reclamou de o Facebook ter tirado do ar um vídeo de Anthony Wong, médico defensor da cloroquina que morreu recentemente, e ao postar a reclamação compartilhou com o mundo duas fotos em miniatura de um pênis idem, aparentemente de sua galeria no celular.

No dia seguinte, o ex-senador alegou ter tido seu celular “clonado e talvez ‘raqueado’”, o que mostra que o hacker é tão gente boa e sensível que até postou no FB elogios ao amigo de Malta. Nem para inventar uma desculpa menos esfarrapada e dizer que era consulta ao urologista por WhatsApp.

Marcos Oliveira/Agência SenadoMarcos Oliveira/Agência SenadoMagno Malta e seus nudes são prova de que, no Brasil, desgraça pouca é bobagem

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