FelipeMoura Brasil

A mancha do bolsonarismo

29.01.21

Você nega que a ciência possa explicar tudo?

Sim, eu nego.”

A resposta do filósofo conservador americano e teólogo cristão William Lane Craig ao químico britânico e professor ateu Peter Atkins, em debate intelectual de 1998, prosseguiu assim:

Eu penso que há muitas coisas que não podem ser provadas cientificamente, mas que somos todos racionais em aceitá-las.”

Craig listou cinco exemplos: 1) verdades lógicas e matemáticas; 2) verdades metafísicas; 3) crenças éticas; 4) julgamentos estéticos; e 5) a própria ciência.

Ele explicou por que considera cada um desses itens impossível de ser provado pelo método científico. “Você não pode mostrar, pela ciência, se os nazistas nos campos de concentração fizeram algo mau”, disse Craig, sobre crenças éticas. “O belo, como o bom, não pode ser provado cientificamente”, acrescentou, sobre julgamentos estéticos.

A recusa da onipotência da ciência e a contestação do cientificismo (a concepção que afirma a superioridade dela sobre todas as outras formas de compreensão humana da realidade, como a própria filosofia) encontram nos argumentos de Craig uma base legítima, mas em narrativas negacionistas da pandemia de Covid-19 sua mais perversa caricatura.

O bolsonarismo trocou a racionalidade em aceitar a existência de coisas que a ciência alegadamente não pode provar pela irracionalidade em negar a existência de coisas que a ciência prova.

O presidente e seus capachos negaram, por exemplo, a eficácia de máscaras, vacinas e distanciamento social na redução do contágio pelo novo coronavírus, além da ineficácia de medicamentos como a cloroquina, abandonados no resto do mundo.

A argumentação criteriosa sobre os limites da ciência deu lugar à “anticiência” pura e simples, do mesmo modo que críticas fundamentadas e eventualmente necessárias à composição, às normas e aos limites decisórios de uma organização internacional (como OMS ou União Europeia) deram lugar ao “antiglobalismo” mais rasteiro.

Não é porque qualquer povo, como o do Reino Unido no caso do Brexit, tem direito de votar pela permanência ou não de seu país em uma organização internacional que a cooperação entre diferentes países por meio de entidades comuns, acordos e demais vias diplomáticas deve ser abandonada em nome de suas soberanias — que dirá agora, quando o mundo inteiro precisa cooperar para salvar vidas.

Por ignorância, histeria e/ou má fé, parte da esquerda buscou nas últimas décadas eliminar as nuances das pautas e propostas de seus adversários intelectuais e políticos, além das próprias subdivisões dentro do direitismo, misturando, por exemplo, restrições à imigração ilegal com ódio a imigrantes, ou xenofobia; críticas ao sistema eleitoral com golpismo; e flexibilização da posse de armas sob determinados pré-requisitos e condições com armamento deliberado da população.

Populistas autoproclamados de direita, porém, reduzem de tal forma a complexidade do mundo real a bravatas, investindo no binarismo mental da parcela menos instruída e mais agressiva do eleitorado, que acabam enquadrando seu próprio comportamento na caricatura e manchando a imagem da corrente ideológica que dizem representar.

O caso de Donald Trump é um exemplo emblemático de como o caráter falho de um homem pode levar à sua própria ruína”, escreveu William Lane Craig, um dia após a invasão do Capitólio por trumpistas. “Dados os seus feitos consideráveis — como a nomeação de três juízes da Suprema Corte, a mediação de um acordo de paz no Oriente Médio, o trabalho de resgate da economia dos EUA, a revitalização das Forças Armadas americanas, a confrontação da ameaça econômica e militar da China, as travas na maré de imigração ilegal e muito mais —, ele poderia ter sido um ótimo presidente. Mas tem sido o seu pior inimigo. Como uma figura de tragédia grega, seu oponente é seu próprio caráter profundamente defeituoso, o que contribuiu para sua queda. Isto deve ser uma lição para todos os cristãos, especialmente aqueles em posições de liderança, para estarem atentos ao desenvolvimento do nosso caráter, para tentar reconhecer, o melhor possível, as nossas próprias inclinações pecaminosas, e permitir que o Espírito Santo faça a Sua obra nos conformando com a imagem de Cristo, para que não causemos descrédito sobre o Seu nome.”

No Brasil, as falhas de caráter de Jair Bolsonaro contribuíram para levar o povo e o país à ruína (com mais de 220 mil mortos por Covid-19 e o atraso federal na vacinação), mas reforçaram o apoio oportunista no Congresso e nas Forças Armadas, os grandes partidos da boquinha.

Mais do que nunca, cabe aos brasileiros (incluindo cristãos, conservadores e a ala decente da direita) recusar a onipotência perversa do populismo bolsonarista.

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