ReproduçãoRicardo Rodrigues diz que, além dos recados intimidatórios, passou a ser alvo de perseguição de órgãos como a Receita

Delator na berlinda

A ofensiva à Lava Jato fez o jogo virar também contra os colaboradores da operação. Um deles, que ajudou a desvendar esquemas de corrupção no Rio, afirma que sofre ameaças e tentativas de intimidação, inclusive por parte da Receita Federal
29.01.21

Dois anos depois de assinar um acordo de colaboração premiada, o empresário Ricardo Siqueira Rodrigues se viu obrigado a fazer as malas e deixar o Brasil. Há algumas semanas, ele embarcou para um destino mantido em sigilo com o temor de quem fez inimigos poderosos – e violentos. Desde que virou delator na Lava Jato, em 2018, após ser preso e denunciado por crimes como lavagem de dinheiro e evasão de divisas (foi acusado de receber cerca de 13 milhões de reais em pagamentos ilícitos, juntamente com outros operadores, para influir em aplicações temerárias de recursos de fundos de pensão), Rodrigues tem sofrido ameaças de quem ele acredita figurar entre os alvos de suas revelações. A fachada de um restaurante do qual ele foi sócio na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, foi alvejada por 26 tiros durante uma madrugada de novembro, em um episódio que, aos olhos dele, foi mais um recado. Como o estabelecimento havia sido usado para dissimular um pagamento ilícito de 340 mil reais ao ex-prefeito carioca Marcelo Crivella, em outubro de 2016, e o acordo de delação ainda não estava sacramentado até aquele dia, até mesmo os investigadores suspeitam que o atentado tenha sido uma espécie de mensagem para o empresário desistir de contar tudo o que sabia sobre os operadores do chamado “QG da Propina” na prefeitura do Rio.

A ação que fez o delator ir embora do Brasil está sendo investigada pela polícia e foi usada pelo Ministério Público para embasar o pedido de prisão de Crivella e de outras oito pessoas, em dezembro. Entre elas, está o empresário Rafael Alves, apontado como operador do esquema de corrupção do ex-prefeito e temido pelos delatores por ser considerado uma “pessoa extremamente perigosa e violenta” e ligada ao jogo do bicho, segundo o MP. Rodrigues não é o único delator em apuros. O doleiro Sergio Mizrahy, delator chave do “QG da Propina”, também conseguiu autorização judicial para deixar o país após sofrer ameaças. O subprocurador-geral Ricardo Ribeiro Martins, que assina a denúncia contra Crivella, afirmou que o estado tem o dever de cuidar da integridade dos colaboradores tanto para “incentivar” novos acordos de delação e “fomentar o desmantelamento de perigosas organizações criminosas“, como para dar suporte e proteção a quem de fato se arrependeu de ter cometido malfeitos e busca reparar os danos causados à sociedade.

A fachada do antigo restaurante de Ricardo e as marcas de bala
O alerta do subprocurador faz sentido. Mas o estado brasileiro não apenas tem falhado na missão de garantir a integridade de quem aceita revelar esquemas criminosos complexos, como — em consonância com o alinhamento de astros que tem levado a Lava Jato à berlinda — agentes públicos encarregados de investigar e punir aqueles que subvertem a lei têm retaliado os delatores e, por vezes, até poupado os poderosos delatados. Um movimento que tem se intensificado nos últimos meses para desacreditar um instrumento jurídico chave para o combate à corrupção juntamente com o desmonte da operação.

O delator Rodrigues, também conhecido como ‘Ricardo Grande’, afirma que as represálias têm ocorrido dentro de órgãos como a Receita Federal e a Comissão de Valores Mobiliários, a CVM. Operador do mercado financeiro por mais de 20 anos, ele foi pego por se envolver em operações fraudulentas com fundos de pensão de estatais, como a Petros, dos funcionários da Petrobras, e o Postalis, dos servidores dos Correios. O nome de Rodrigues ganhou o noticiário em outubro de 2019, depois que ele ajudou a desmantelar uma quadrilha de auditores do Fisco que achacavam réus da Lava Jato. As provas foram obtidas por meio de uma ação controlada, instrumento por meio do qual um colaborador monitorado leva adiante uma negociação de propina para as autoridades obterem provas contra os criminosos. Após a iniciativa que expôs os fiscais, Rodrigues foi autuado em 2 milhões de reais por suposta sonegação fiscal por auditores do mesmo escritório onde atuava a quadrilha. Segundo ele, algo semelhante ocorreu na CVM, que não aderiu ao acordo de delação e o multou por fraude depois de ele ter delatado o irmão do presidente da autarquia. Ele falou a Crusoé:

Que tipo de ameaça o sr. tem sofrido e de quem elas partem?
As primeiras ameaças ocorreram ainda durante a ação controlada contra os fiscais da Receita (em novembro de 2018), autorizada pela Justiça. Eles já desconfiavam que estavam sendo monitorados e mandavam recados, ameaçavam durante as conversas. Depois recebi várias ameaças por vídeo, por e-mail. Chegaram a enviar foto da porta da casa das minhas filhas. A polícia e o Ministério Público estão investigando para identificar os autores. Não fosse o monitoramento dos agentes do CIAF da Polícia Civil não sei como seria. No fim do ano passado, eles me comunicaram sobre o atentado na porta do restaurante, que não é mais meu. Sem dúvida, essa foi a ameaça mais séria e também está sendo investigada. O que eu posso te dizer é que de uns 120 dias para cá, a minha sensação de segurança piorou muito no Rio. Não tenho mais rotina nem condições de trabalhar normalmente. Preciso ficar despistando meus destinos a todo momento. Tive de blindar os carros de toda a minha família, contratar segurança particular. Imagina quem não tem grana para arcar com tudo isso? É uma sensação de abandono. Eu fiz o acordo para reconstruir a minha vida e não para virar outra pessoa. Eu te digo que para mim é mais barato, e mais seguro obviamente, morar fora do país do que no Rio.

O sr. se arrepende de ter feito o acordo em 2018?
Não me arrependo de ter feito o acordo em 2018. Precisava passar a limpo essa parte da minha história e reparar erros. Hoje, vivendo tudo o que vivi, eu não faria o acordo de novo. Você apanha de todos os lados, apanha da própria máquina estatal. Estão fazendo isso para desacreditar não só os colaboradores, mas a operação (Lava Jato) como um todo. Em 2018, era outro momento. Quem estava preso ou mesmo do lado de fora como eu tinha a impressão de que o acordo de colaboração permitiria recomeçar a vida. Hoje, eu percebo que a legislação é muito frágil para o colaborador. Se outro órgão não aderir ao seu acordo, ele pode vir para cima de você. É o que está acontecendo na Receita e na CVM, por exemplo. Quem delatou sofreu retaliação desses órgãos administrativos.

Que tipo de retaliação o sr. sofreu?
No caso da Receita Federal, eu sou denunciante, não sou nem colaborador. Decidi correr o risco de fazer a ação controlada de forma espontânea, sem nenhum tipo de benefício, para provar que os fiscais estavam extorquindo os colaboradores da Lava Jato. Apesar de o fiscal que atuou na fiscalização fraudulenta ter se tornado delator e detalhado a fraude contra mim, os quatro fiscais da turma recursal da Receita, em julho de 2020, ignoraram este fato e mantiveram o procedimento fraudulento. E, veja só, depois disso, 26 fiscais desse mesmo escritório foram afastados na segunda fase da operação e o processo contra mim continuou. Não tenho a menor dúvida de que sou objeto de retaliação em função da minha denúncia sobre a Receita. Tenho contado com a ajuda do MPF e da Corregedoria da Receita e estão sendo noticiadas ações com base na Lei de Abuso de Autoridade contra esses fiscais. No caso da CVM, os resultados dos julgamentos envolvendo o Conselho da Petrobras falam por si: só quem delatou é punido, multado em milhões e fica impedido de trabalhar por 20 anos. Os delatados são absolvidos. É claro que é uma retaliação, não apenas pessoal, mas contra a Lava Jato. Dentro da própria CVM isso criou rusgas expostas pelo então diretor Henrique Machado que denunciou esse absurdo até em entrevistas. No meu caso, eu fui preso junto com o irmão do presidente da CVM, Marcelo Barbosa. Existem fatos narrados em que eu atuei com o Henrique Barbosa e até conflito de versões em relação à colaboração dele. Quando chega em março de 2020, eu sou julgado e condenado pela CVM com um voto do presidente da autarquia. É óbvio que existia um impedimento objetivo nessa história, que isso vai anular o julgamento. No mercado, todos ficaram impressionados por ele não ter se declarado impedido e do irmão dele jamais ter sido condenado ou investigado pela CVM, sendo delator em crimes cuja fiscalização é responsabilidade da própria CVM. Por si, só isso mostra a parcialidade e a manipulação da condução de processos.

O sr. acha que estão fazendo isso para desestimular as delações e enfraquecer as investigações?
Sem dúvida. Não sou só eu que diz isso. Quando você negocia um acordo sabe que vão fazer de tudo para desacreditar a sua colaboração. O problema é que isso está acontecendo não só por quem é delatado, mas dentro das instâncias administrativas que deveriam investigar e punir as fraudes. Ganhei credibilidade junto ao MP porque apresentei provas do que falei. A questão é que, quando a Lava Jato e a Greenfield chegaram nas instituições financeiras, nas fraudes envolvendo fundos de participação de grandes empresas, a retaliação política veio com toda a força por meio desses órgãos administrativos, onde as indicações são políticas. No Brasil, todos os órgãos administrativos que fiscalizam instituições financeiras, fundos de pensão, seguradoras e tributos estão sob o controle do Ministério da Fazenda. É como se, no Judiciário, um governador nomeasse os desembargadores, os juízes, os promotores e o chefe de polícia e botasse todos para trabalhar juntos, com a vantagem que eles escrevem as próprias leis.

Em trechos de sua delação, o sr. narra operações com prejuízos milionários para fundos de pensão mediante pagamento de propina a partidos políticos como PT, MDB, PP e PL. Acredita que isso continua ocorrendo?
Tenho certeza de que isso continua acontecendo, talvez de outra forma, por outros caminhos. A própria retaliação contra a Operação Greenfield é sinal de que ela incomodou muita gente. Ver o MPF se aperfeiçoando na apuração de crimes financeiros com a independência que os procuradores têm acendeu a luz vermelha nos players que atuam num mercado de trilhões de reais. Eles pensaram: ‘Esses caras tão ficando bons, entenderam o nosso jogo, temos que parar isso’. Estou impedido de falar qualquer coisa (sobre) fatos do meu acordo porque ainda está sob sigilo. O que eu posso dizer é que os partidos políticos aplicam a mesma lógica da máquina pública nos fundos de pensão. Querem controlar a maior quantidade de recursos possível. Com a vantagem de que os fundos de pensão são instituições altamente capitalizadas e o acesso aos recursos é menos burocratizado. Viabilizar uma operação de mercado é muito mais fácil do que preparar uma licitação, por exemplo. Os partidos usam os fundos para tirar vantagem direta e indireta, influenciando a alocação de recursos dos fundos em negócios de empresários que são colaboradores de campanha.

Desde o início da Lava Jato, em março de 2014, as forças-tarefas de Curitiba, Rio e São Paulo já fecharam mais de 250 acordos de colaboração com base na lei da delação premiada, sancionada em 2013, que regulou os meios de obtenção de prova nas investigações. Os procuradores da operação sempre defenderam que as delações são um instrumento importante para desmontar organizações criminosas enraizadas no núcleo do poder. A lógica de oferecer aos réus colaboradores benefícios como redução da pena de prisão em troca da devolução do dinheiro desviado e de provas contra os superiores hierárquicos da quadrilha é mundialmente aplicada, mas passou a ser atacada no Brasil justamente porque começou a dar resultados cada vez mais eficientes – e a incomodar poderosos de diferentes colorações políticas. O próprio procurador-geral da República, Augusto Aras, já se mostrou crítico ao modelo que alavancou a Lava Jato, dizendo que é preciso “corrigir os vícios” das delações. Um dos artífices do desmonte da maior operação de combate à corrupção já feita no país, o chefe do MPF não abandonou de vez os acordos, mas tem dado mais ênfase nos valores a serem ressarcidos pelos delatores do que propriamente nas provas, o que permite a muitos investigados comprar suas liberdades sem robustecer as investigações.

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