Marcos Brandão/Senado Federal

A volta do mecanismo

Com a Lava Jato oficialmente extinta, o comando do Congresso entregue à ala fisiológica e o Planalto alegremente rendido, o establishment político se reorganiza e devolve o país ao trilho dos acordões, do compadrio, da corrupção e da impunidade
05.02.21

Para quem está acostumado com os códigos bem particulares de Brasília, a festa de arromba que reuniu mais de 300 pessoas na segunda-feira, 1º, e entrou pela madrugada em comemoração à vitória de Arthur Lira na Câmara tinha um ar de coisa já vista – e a reminiscência não é nada boa. Para além da definitiva ascensão do Centrão ao poder, festejava-se na luxuosa casa de um empresário, com dancinhas, canções ao microfone e abraços calorosos, o esperado retorno a tempos que pareciam ter ficado para trás a partir do sucesso da Operação Lava Jato. Sob um governo rendido, que prometia combater “tudo isso daí”, o país assiste agora ao retorno triunfal da política dos acordões, do compadrio, do “é dando que se recebe” e da impunidade. Na linguagem do establishment, é o regresso à conveniente “acomodação de forças”, que só é boa para quem quer ver as engrenagens do sistema – ou do “mecanismo” – voltarem a girar como antes.

Na prática, como aconteceu na eleição do Congresso, que alçou Arthur Lira, do Progressistas, à presidência da Câmara e Rodrigo Pacheco, do DEM, ao comando do Senado, o vicioso ciclo tradicional da política se repete: em troca de votos em favor do governo, parlamentares recebem recursos para fidelizar os prefeitos, que depois serão responsáveis por ajudar em suas reeleições. Deputados e senadores indicam “afilhados políticos” para ocupar órgãos públicos, que acabam sendo usados como fonte de recursos para sustentar partidos, políticos filiados a esses partidos e suas respectivas campanhas eleitorais. Uma parte da dinheirama entra pelas vias oficiais. Outra, como demonstram dezenas de investigações, é fruto do desvio de verbas de contratos cuja assinatura depende desses apadrinhados estrategicamente abrigados em postos chaves da máquina pública. Era o que Roberto Jefferson chamava, à época do mensalão, de “fabriquinhas de propina”. Com a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República e setores do Supremo Tribunal Federal e de outras cortes superiores domesticados, ninguém incomoda ninguém, os poderosos de turno deixam de ser surpreendidos a cada semana com operações de combate à corrupção, cessam as manifestações na porta dos palácios, o establishment político se reorganiza e todos amealham mais e mais poder.

Não é difícil supor o que poderá acontecer mais adiante, como resultado da leva de indicações patrocinadas pelas agremiações do Centrão nas últimas semanas. Embora tenha deixado a reforma ministerial em banho-maria, o presidente Jair Bolsonaro já prometeu ampliar o quinhão dos partidos do bloco fisiológico. O primeiro movimento deve ser a troca de comando do Ministério da Cidadania. Negociada com o Republicanos, a estrutura tem orçamento previsto de 104 bilhões de reais para este ano – o valor não inclui a possível retomada do auxílio emergencial, que no ano passado custou 300 bilhões de reais. A pasta deve ser entregue a um integrante da bancada baiana do partido, uma forma de contemplar também o presidente nacional do DEM, ACM Neto, que contribuiu para a vitória de Lira ao evitar o apoio formal de seu partido ao candidato Baleia Rossi, do MDB, traindo Rodrigo Maia.

Cassiano Rosário/Futura Press/FolhapressCassiano Rosário/Futura Press/FolhapressEntrevista da Lava Jato em Curitiba, em 2016: a força-tarefa agora está oficialmente extinta
Além do Ministério da Cidadania, outras pastas estão na mesa de negociações com o Centrão e devem ser entregues ainda neste primeiro semestre, à medida que a nova base aliada oferecer contrapartidas no Congresso. Aos poucos, no entanto, os aliados de Arthur Lira já vinham ganhando mais capilaridade na Esplanada. No Ministério do Desenvolvimento Regional, embora o comando ainda seja oficialmente de Rogério Marinho, o grupo que elegeu Lira já detém o controle de secretarias e autarquias. Inclusive, já se faz muita “política” por lá.

Dados obtidos por Crusoé por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que essas áreas com influência direta do Centrão lideraram o ranking das obras inauguradas em 2020. Muitas dessas obras, no entanto, estavam concluídas ou prestes a ser finalizadas, e serviram apenas para justificar pomposos eventos políticos. O campeão de entregas no ano passado foi o Departamento de Projetos de Mobilidade e Serviços, comandado por um indicado do presidente nacional do Progressistas, senador Ciro Nogueira. O departamento está vinculado a uma secretaria entregue em julho do ano passado a outro apadrinhado do Centrão, Tiago Pontes Queiroz. Tiago é um daqueles quadros típicos que jogam em qualquer posição, a depender do chamado de seus padrinhos. Ele já administrou, por exemplo, um departamento do Ministério da Saúde, quando a pasta era comandada pelo atual líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, também do Progressistas. Os dois, Tiago e Barros, são alvo de uma ação de improbidade administrativa por supostas irregularidades na compra de medicamentos para doenças raras. O Ministério Público Federal apontou o “favorecimento de empresas, inobservância da legislação administrativa, de licitações e sanitária, prejuízo ao patrimônio público, descumprimento de centenas de decisões judiciais, além de, pelo menos, 14 pacientes mortos”. A ação está na Justiça Federal do DF e tem tramitação lenta, graças a um jogo de empurra entre juízes de diferentes varas – pelo menos três magistrados já declinaram da competência para julgar o caso.

“Depois de um tempo, Bolsonaro terá noção do perigo que está correndo, mas poderá ser tarde demais. A tendência agora é que o Centrão se apodere cada vez mais do governo”, disse a Crusoé um experiente líder na Câmara dos Deputados. A ascensão do Centrão ao poder eleva o risco da ingerência dos fisiológicos nos Três Poderes – tanto as explícitas quanto as ocultas nas minúcias do orçamento ou nos bastidores de Brasília. Setores do Legislativo e do Judiciário acreditam que a aliança fisiológica com o governo representará um risco para as instituições. “Com um presidente acuado por denúncias de rachid e com aspirações autoritárias, ampliar sua influência no Legislativo graças à eleição de um sujeito que é réu por corrupção e lavagem de dinheiro significa enfraquecer a democracia”, afirma o deputado Kim Kataguiri, do DEM.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéEduardo, o filho 03 do presidente, passa o telefone para Lira receber os cumprimentos do pai: regozijo dos dois lados
A indicação de Kassio Marques para o Supremo Tribunal Federal, com as bençãos de Ciro Nogueira e de outros expoentes do Centrão, é uma demonstração de como os interesses do grupo não se limitam ao xadrez político do Congresso. A intenção é manietar também os demais poderes. O ministro piauiense é visto como longa manus dos partidos fisiológicos na corte e poderá ficar no STF até 2047. Em julho, após a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello, Jair Bolsonaro fará sua segunda indicação para o Supremo. A despeito das promessas de escolher um nome “terrivelmente evangélico”, a próxima nomeação também deve passar pelo escrutínio dos novos poderosos do Congresso, que são bem menos religiosos, por assim dizer.

Como os fatos mostraram em 2020, a captura das instituições alcança ainda o Ministério Público, graças ao alinhamento quase que automático do procurador-geral da República, Augusto Aras, ao presidente da República e seus aliados. Na última segunda-feira, 1º, mesmo dia da eleição de Arthur Lira para a presidência da Câmara, Aras deu ao governo e aos políticos encalacrados com a Justiça o maior dos regalos: a extinção oficial da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. A implosão da operação, depois de quase sete anos de trabalho, contou com a retaguarda de magistrados das mais altas cortes e os aplausos de potentados da política e economia, que por um período, ainda que curto, temeu o fim da impunidade.

Como Crusoé mostrou em novembro, a estratégia de Aras para asfixiar a Lava Jato foi aplicada de forma paulatina, precarizando as condições de trabalho dos procuradores ao impedir que eles pudessem se dedicar exclusivamente à operação, com um discurso de que era preciso “institucionalizar” as investigações e “acabar com o lavajatismo”. A PGR já avisou que o mesmo método adotado em Curitiba será replicado na força-tarefa do Rio de Janeiro a partir de abril. Procuradores de diferentes estados ouvidos por Crusoé dizem ser impossível conduzir os inquéritos com a mesma eficiência com uma equipe mais enxuta e sobrecarregada com outras atribuições, para além da Lava Jato. “Não basta desidratar, eles precisam destruir”, afirma um deles.

A vitória do sobre aqueles que ousaram combater o mecanismo fica ainda mais evidente em São Paulo e em Brasília, epicentro dos esquemas ilícitos. Desde setembro do ano passado, após o pedido de demissão coletiva de procuradores por desentendimento com a titular dos casos e falta de apoio da PGR, a chamada “Lava Jato paulista” tem uma única procuradora acumulando dezenas de procedimentos que apuram desvios de milhões em obras públicas nos governos do PSDB. É um sinal de que, no novo quadro institucional do país, diferentes partidos – até mesmo aqueles que se apresentam como rivais – se beneficiam.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO ministro Kassio Marques: em breve, a coalizão integrada por Bolsonaro fará novas nomeações para o Judiciário
Casos envolvendo as famílias dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Michel Temer já foram despachados para outros gabinetes. Na capital federal, Aras colocou o procurador Celso Três, crítico da Lava Jato, para tocar as investigações sobre fraudes bilionárias em fundos de pensão da Operação Greenfield, depois que os procuradores também decidiram deixar suas funções diante do sucateamento imposto à força-tarefa pelo homem escolhido por Jair Bolsonaro para comandar o MPF até setembro deste ano.

Não bastasse o desmonte das estruturas de investigação a cargo da PGR, o establishment político ainda trabalha para desconstruir e anular o que foi feito enquanto a Lava Jato teve autonomia e apoio da opinião pública para combater a corrupção sistêmica no país, nem que para isso seja necessário fazer uso de supostas provas obtidas ilicitamente. É o caso, por exemplo, da ação de suspeição do ex-juiz Sergio Moro movida em 2019 pela defesa de Lula no STF, com o objetivo de anular as condenações impostas ao ex-presidente nos casos do tríplex de Guarujá e do sítio de Atibaia. No fim de dezembro, durante o recesso judiciário, o ministro Ricardo Lewandowski autorizou os advogados do petista a terem acesso às mensagens privadas trocadas entre os procuradores de Curitiba e Moro e que foram roubadas pelos hackers presos na Operação Spoofing, em julho de 2019.

As mensagens estavam em sigilo na Justiça Federal em Brasília, onde os invasores dos celulares dos agentes públicos estão sendo julgados. Nesta semana, Lewandowski decidiu, então, tornar pública a íntegra das conversas hackeadas que serão usadas pela defesa de Lula no julgamento da suspeição de Moro, que o ministro Gilmar Mendes promete colocar em pauta no plenário ainda neste semestre. As mensagens, estrategicamente sacadas no momento de ocaso da Lava Jato, serão usadas agora para tentar dar uma espécie de golpe fatal na operação. Bom para Lula, bom para Bolsonaro – tudo o que o bolsonarismo deseja é polarizar com o petista em 2022, o que, acreditam os bolsonaristas, facilitaria a reeleição do presidente. Enquanto tem tribunal considerando relatório de inteligência financeira produzido oficialmente pelo Coaf como prova ilícita e trancando inquérito, como no caso do advogado bolsonarista Frederick Wassef (leia nesta edição), o Supremo legitima as mensagens privadas roubadas por hackers e não periciadas como uma prova lícita em um julgamento que pode anular condenações sacramentadas em diferentes instâncias. É só mais uma evidência de que, de novo, está tudo dominado. O mecanismo se regenerou, está forte e, mais do que nunca, tentará de todas as formas prevenir iniciativas que o coloquem de novo em risco.

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