MarioSabino

Um prazer da vida normal

05.02.21

De vez em quando, pego para ler as crônicas de Clarice Lispector publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, reunidas em A Descoberta do Mundo. O estranhamento que ela sente em relação a certa normalidade é o meu. A certa normalidade nos expulsa, assim como Deus expulsou Adão e Eva do Jardim do Éden. Clarice e eu mordemos a maçã que não deveríamos morder, com a diferença de que para mim sobrou apenas um pedaço minúsculo da casca reservada aos medíocres.

Isso não a impedia de buscar aderir a essa normalidade. Uma das suas crônicas intitula-se Os Prazeres da Vida Normal, de 1968. Nela, Clarice abre o jogo. Eu a reproduzo a seguir:

“Pois e eu que durmo tão mal, dormi de oito da noite até seis da manhã. Dez horas: senti um orgulho pueril. Acordei com o corpo todo aumentado nas suas células. Ah, isso é vida normal, então? Mas então é muito bom!

E eu que nunca fiz luxo para comer, ainda há um tempo fazendo dieta para perder uns quilos a mais. Aí experimentei uma vida anormal para comer. Andava exasperada como se outros estivessem comendo o que era meu. Então, de raiva e fome, de repente comi o que bem quis. E como é bom comer, dá até vergonha. E certo orgulho também, o orgulho de ser um corpo exigente. Ah que me perdoem os que não têm o que comer; o que vale é que esses não são os que me leem.

Outro prazer que é normal é quando escrevo o que se chama de inspirada. O pequeno êxtase da palavra fluir junto do pensamento e do sentimento: nessa hora, como é bom ser uma pessoa!

E receber o telefonema de um amigo, e a comunicação de vozes e alma ser perfeita? Quando se desliga: que prazer dos outros existirem e de a gente se encontrar nos outros. Eu me encontro nos outros. Tudo o que dá certo é normal. O estranho é a luta que se é obrigado a travar para obter o que simplesmente seria o normal.”

Eu poderia aproveitar a deixa de Clarice, sobre a luta que se é obrigado a travar para obter o que simplesmente seria o normal, para falar das restrições que nos foram impostas pela pandemia. Ou para falar da miséria circundante de quem nunca teve a oportunidade de vislumbrar a beleza no seu cotidiano, mas o que vale, repetindo a escritora, é que esses não são os que me leem. O meu assunto é essa luta íntima que empreendo para me impor certa normalidade nas relações com o mundo, e que talvez também seja a sua. 

Na adolescência, li Tonio Kroeger, de Thomas Mann. Não lembro se já citei o livro aqui. Se já o fiz, peço perdão pela redundância. Uma das passagens que mais me marcaram é a cena em que o protagonista observa — de fora — homens e mulheres jovens se divertindo numa festa. Ali, tive a antecipação de que sempre estaria em permanente batalha para adentrar o salão. O salão de certa normalidade. Jamais consegui: mesmo estando dentro, estou fora, como se fosse mero espectador. Foi assim em todos os lugares por que passei, seja na vida familiar como profissional. Às vezes, para enganar-se, você acredita que isso o torna especial. Não é verdade. Encontrar-se nos outros é a melhor coisa que pode acontecer a alguém. E isso, sim, nos torna especiais. Como sei? Na verdade, é exagero dizer que jamais consegui. Tenho breves estadas nesse salão, instantes fugidios de encontro, da mesma forma que Clarice, que foi ser especial na literatura.

Assim como ocorre com as crônicas dessa magnífica escritora (mais valorizada fora do que dentro), eu de vez em quando pego os mesmos caminhos, em passeios solitários. Em São Paulo, sigo por ruelas do Jardim Paulistano, aqui do lado, tentando ouvir os barulhos das casas burguesas que parecem congeladas em certa normalidade — barulhos que foram escasseando à medida que os muros subiram. Quando estou em Roma, adentro o parque atrás da Galleria Borghese, sempre deserto de pessoas e povoado da história que já foi cotidiano habitual. Ali, descanso os olhos do barroco da cidade e dos meus barroquismos interiores. Quando estou em Paris, sigo pela rue de Grenelle.

A rue de Grenelle é paralela estreita e levemente sinuosa do Boulevard Saint-Germain — paralela relutante, que acaba por afastar-se dele para continuar a manter a sua tranquilidade de província. No seu início, é composta por negócios mais ou menos pequenos, entre os quais uma galeria chamada En attendant les barbares (À espera dos bárbaros). Acho o nome tão ilustrativo do estado da nossa civilização, que me recuso a conhecer a galeria, com receio de deparar com bárbaros já lá dentro. Não demora muito, os pequenos negócios vão dando lugar a grandes construções históricas, como a que hospeda o museu Maillol, a Embaixada da Rússia, uma das poucas igrejas protestantes da cidade e o Ministério da Educação Nacional — algum espaço é cedido em seguida a pequenas lojas outra vez, entre elas uma funerária, e também a um bistrô de horário peculiar. A rua desemboca na Esplanade des Invalides, mas nunca chego até o grande finale, para bater continência a Napoleão. Viro à direita, na rue de Bourgogne, e sigo até a Place du Palais Bourbon, onde morava, para tomar um copo de vinho (na verdade, dois) na minha brasserie preferida, que tem o melhor tartare de Paris porque selado em reminiscências.

O copo de vinho (na verdade, dois) é mero pretexto para o passeio. Gosto da rue de Grenelle porque ela me leva a lugar nenhum. No entanto, é um instante de encontro com os outros mesmo que seja com ninguém. É um prazer da vida normal. A rue de Grenelle dá sempre certo.

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