RuyGoiaba

Vem Kafka comigo

05.02.21

Não há nada mais eficiente em matar a literatura a pauladas do que o jornalismo. Sei que a frase soa paradoxal, considerando o enorme número de jornalistas que já se dedicaram ao ofício (incluindo meus chefes e colegas de colunismo aqui na Crusoé, Mario Sabino e Diogo Mainardi). Mas pensem na pessoinha com interesses literários que passa o dia tendo de ler e escrever sobre a última do Bolsonaro, a dancinha de Joice Hasselmann, o que Arthur Lira fez ou deixou de fazer e outras variantes desse misto de lixo hospitalar e radioativo. Ao fim do expediente, ela chegará em casa contaminada e sem ter um neurônio sobrando para a leitura de coisas menos hediondas — que dirá escrever.

Essa pessoinha, como o leitor sagaz já deve ter adivinhado, sou eu. Todo dia, enquanto visto meu escafandro imaginário para mergulhar nessa grande fossa borbulhante que é a política brasileira, me pego pensando em versões alternativas da clássica primeira frase de A Metamorfose: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama cercado de Brasil por todos os lados”. Ninguém venha me dizer que é pior acordar transformado em barata — palavra que, aliás, Franz Kafka não usa em lugar algum do livro para definir seu “inseto monstruoso” — do que num Bananão sem vacina, sem saneamento básico e sendo governado pelas baratas.

Também não me venham dizer que este país é “kafkiano”, embora às vezes a burocracia dê à gente aquele gostinho de se sentir como o Josef K de O Processo. Um amigo meu costumava reclamar do abuso do termo: Fulano fica, sei lá, uma hora e meia na fila do banco e sai dizendo “nossa, passei por uma situação kafkiana hoje”. Em termos literários, o Brasil é zero kafkiano: uma chanchada cujo roteirista engoliu uns cogumelos alucinógenos junto com a feijoada.

Enfim, se você também deu o azar de nascer brasileiro e quer se desligar um pouco do pesadelo que é nosso cotidiano opressivo, absurdo e sem sentido, sugiro um passeio pela literatura leve e solar de Kafka. Para além dos romances mais conhecidos (alguns inacabados, como O Processo), o “empregado modelo” da companhia de seguros em Praga era também grande contista, e temos a sorte de contar com as excelentes traduções de Modesto Carone para o português. Cada vez mais me sinto como o avô de “A Próxima Aldeia”, que está na coletânea Um Médico Rural e é meu favorito na categoria “contos de um parágrafo só”:

“Meu avô costumava dizer: ‘A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que — totalmente descontados os incidentes desditosos — até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada como essa’.”

É isso: a vida é espantosamente curta. Saia das redes sociais, desligue-se das notícias e, se for o caso, torça para acordar como Gregor Samsa amanhã. (Um dia ainda darei por aí palestras desmotivacionais baseadas em frases do Kafka. Acho que “há muita esperança no mundo, mas não para nós” é um bom começo.)

***

A GOIABICE DA SEMANA

Só um lugar como o Rio de Janeiro poderia inventar o conceito de “xepa da vacina” contra a Covid-19. Caso o leitor erudito não saiba, xepa são aqueles produtos que sobram depois que uma feira acaba, vendidos a preços mais baixos. Pois é isso que está acontecendo no Rio: segundo o Estadão, um pessoal que não faz parte da faixa etária programada para se vacinar aparece no posto de saúde no fim do dia para ver se descola alguma sobra assim, na brodagem.

Depois eu digo que vai ter vacina da Pfizer em isopor de ambulante na praia (junto com Viagra) e em geladeira de padaria (ali atrás da caixa de Eskibon) e o povo não me leva a sério. Empreendedorismo brazuca é isso aí.

Carlos Magno/Governo do Estado do Rio de JaneiroVacinação contra Covid no Rio de Janeiro, que continua sendo puro suco de Brasil

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