Agência BrasíliaPlenário do Tribunal de Contas do DF: conselheiros agora querem abafar o caso

Barraco com papel passado

A insólita confusão brasiliense em que uma integrante de um tribunal chamou colegas de bandidos em uma troca de mensagens de WhatsApp e a acusação foi parar em documento de cartório
12.02.21

Desavenças entre colegas não são raras na iniciativa privada e na administração pública. Do chão de fábrica à cúpula de empresas, apaziguar conflitos é uma das missões mais espinhosas para gestores. Nem o Palácio do Planalto escapa das escaramuças entre autoridades. Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro deu uma nova demonstração de seu desapreço pelo vice Hamilton Mourão, ao deixá-lo de fora de uma importante reunião ministerial – os companheiros de chapa em 2018 mal se falam desde o ano passado. Integrantes do primeiro escalão de Bolsonaro também andaram se estranhando. Em outubro, depois de chamar de “traíra” o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, o então ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, acabou exonerado.

Também em Brasília, um conflito recente entre conselheiros do Tribunal de Contas local adicionou à crônica política da cidade um elemento inédito: o barraco com registro em cartório. Em abril do ano passado, durante uma conversa de WhatsApp com o conselheiro Manoel de Andrade, a então presidente da corte, Anilcéia Machado, chamou dois outros colegas de “bandidos”. Oito meses depois, às vésperas da eleição para a presidência do tribunal, Andrade tomou uma iniciativa inusitada até mesmo para os elásticos padrões brasilienses. Sentou-se diante do escrevente de um cartório e pediu que as conversas gravadas no aplicativo fossem inteiramente transcritas e lavradas em ata notarial. Não demorou muito para que uma cópia do documento passasse a circular, ainda que discretamente, pela cúpula do tribunal.

ReproduçãoReproduçãoManoelzinho do Táxi foi ao cartório registrar as mensagens da colega
Por trás do incomum registro público de um diálogo privado e das divergências entre integrantes do tribunal de contas estão rumorosas brigas por poder, a tentativa de proteção política a policiais e o temor de condenações no Superior Tribunal de Justiça.

O conselheiro que registrou em cartório as próprias conversas com uma colega e expôs as baixarias da corte integra o Tribunal de Contas do Distrito Federal há mais de duas décadas. Manoel de Andrade foi nomeado em 2000 por Joaquim Roriz, ex-governador morto há três anos. À época da indicação, era conhecido como Manoelzinho do Táxi, alcunha que fazia referência à sua atuação no Sindicato dos Taxistas. Já como conselheiro, o ex-taxista foi denunciado pelo Ministério Público Federal por prevaricação – ele é acusado de reter em seu gabinete um processo de interesse pessoal. Andrade teve condenação por improbidade administrativa confirmada em três instâncias, mas, em setembro, após apresentação de recurso especial, o STJ determinou o retorno dos autos ao Tribunal de Justiça do DF para novo julgamento dos embargos de declaração.

A colega com quem ele trocou mensagens, Anilcéia Machado, era a presidente do tribunal à altura do diálogo. Ela deixou o cargo em dezembro e Manoel de Andrade acalentava o desejo de substituí-la. Mas um acordo celebrado entre os demais seis conselheiros do TCDF frustrou seu plano: a sucessão obedeceria ao tradicional esquema de rodízio, pelo qual o integrante mais antigo entre os que nunca haviam assumido o comando do tribunal seria eleito por aclamação. Andrade esperava contar com o apoio de Anilcéia, de quem sempre foi próximo, para derrubar a solução já combinada e se transformar no candidato de consenso, o que não aconteceu. Foi por perceber o fracasso de seu projeto de poder que, seis dias antes da eleição, o ex-taxista tramou contra Anilcéia e decidiu se vingar registrando a troca de mensagens em cartório. Para além do processo eleitoral na corte, o registro dos diálogos também pode ter sido feito com uma segunda, mas não menos importante, intenção: Manoel ainda esperava contar com a ajuda da colega em embargos auriculares junto a ministros do STJ, onde será julgado em breve – ele acredita que a conselheira tem canais na corte.

Reprodução/Redes SociaisReprodução/Redes SociaisAnilcéia: “Cansei de ver esses dois bandidos terem vitória aqui dentro”
A conversa que foi parar em ata pública se deu em 29 de abril, durante o julgamento de polêmicos processos relacionados à aposentadoria de policiais civis. A tese favorável aos agentes prevaleceu graças ao apoio de dois conselheiros egressos da própria Polícia Civil, Márcio Michel e Renato Rainha. A partir da posição de presidente, Anilcéia Machado queixou-se da ação desbragada de Michel e Rainha em favor dos ex-colegas de distintivo:

Anilcéia: “Uma pena esse debate, não deveria nem conhecer essas representações. Parabéns aos delegados do tribunal, estensão (sic) da Polícia Civil no tribunal, desculpe o desabafo, sinto-me envergonhada. (…) Rasguemos a lei”.

Manoelzinho do Táxi: “Calma”.

Anilcéia: “Desculpe-me mais uma vez, estou muito decepcionada c (com) o tribunal, acho que o cansaço bateu. (…) Cansei de lutar sozinha em prol do tribunal e ver esses dois bandidos terem vitória aqui dentro”.

No vídeo da sessão, transmitida pela internet, é possível ver quando Anilcéia e Manoel manuseiam o celular. A então presidente não votou no julgamento do caso relacionado aos policiais civis. Já Manoel de Andrade foi o relator e se posicionou a favor deles. Em uma evidência de que aquilo que o distinto público vê quase sempre não reflete o que acontece nos bastidores, curiosamente na despedida de Anilcéia da presidência da corte, mesmo depois de já ter circulado o documento com o registro das mensagens em que eram torpeados, os dois conselheiros chamados de “bandidos” a encheram de elogios. Michel disse que a colega havia sido “brilhante” no comando do tribunal. Rainha seguiu na mesma toada.

Trecho da ata notarial com o registro das mensagens: iniciativa inusitada
As conversas tornadas públicas poderiam, em tese, caracterizar dano moral contra pessoa jurídica de direito público. No ano passado, o STJ firmou jurisprudência no sentido de que cabe o ajuizamento de ação por agressão à credibilidade de uma instituição pública. Mas o processo teria que ser iniciado pelo comando do próprio Tribunal de Contas, o que é considerado improvável. O atual presidente da corte, o ex-deputado petista Paulo Tadeu, ficou perplexo com as mensagens. Ele prefere, contudo, serenar os ânimos internamente. Pelos mesmos motivos, os conselheiros chamados de “bandidos” na conversa registrada em cartório devem evitar ações, práticas e jurídicas, contra a colega. Em um plenário pequeno, com apenas sete integrantes, a deflagração de um conflito pode paralisar por completo os julgamentos. Agora todos querem abafar o barraco registrado em ata.

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