Barraco com papel passado
Desavenças entre colegas não são raras na iniciativa privada e na administração pública. Do chão de fábrica à cúpula de empresas, apaziguar conflitos é uma das missões mais espinhosas para gestores. Nem o Palácio do Planalto escapa das escaramuças entre autoridades. Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro deu uma nova demonstração de seu desapreço pelo vice Hamilton Mourão, ao deixá-lo de fora de uma importante reunião ministerial – os companheiros de chapa em 2018 mal se falam desde o ano passado. Integrantes do primeiro escalão de Bolsonaro também andaram se estranhando. Em outubro, depois de chamar de “traíra” o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, o então ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, acabou exonerado.
Também em Brasília, um conflito recente entre conselheiros do Tribunal de Contas local adicionou à crônica política da cidade um elemento inédito: o barraco com registro em cartório. Em abril do ano passado, durante uma conversa de WhatsApp com o conselheiro Manoel de Andrade, a então presidente da corte, Anilcéia Machado, chamou dois outros colegas de “bandidos”. Oito meses depois, às vésperas da eleição para a presidência do tribunal, Andrade tomou uma iniciativa inusitada até mesmo para os elásticos padrões brasilienses. Sentou-se diante do escrevente de um cartório e pediu que as conversas gravadas no aplicativo fossem inteiramente transcritas e lavradas em ata notarial. Não demorou muito para que uma cópia do documento passasse a circular, ainda que discretamente, pela cúpula do tribunal.
O conselheiro que registrou em cartório as próprias conversas com uma colega e expôs as baixarias da corte integra o Tribunal de Contas do Distrito Federal há mais de duas décadas. Manoel de Andrade foi nomeado em 2000 por Joaquim Roriz, ex-governador morto há três anos. À época da indicação, era conhecido como Manoelzinho do Táxi, alcunha que fazia referência à sua atuação no Sindicato dos Taxistas. Já como conselheiro, o ex-taxista foi denunciado pelo Ministério Público Federal por prevaricação – ele é acusado de reter em seu gabinete um processo de interesse pessoal. Andrade teve condenação por improbidade administrativa confirmada em três instâncias, mas, em setembro, após apresentação de recurso especial, o STJ determinou o retorno dos autos ao Tribunal de Justiça do DF para novo julgamento dos embargos de declaração.
A colega com quem ele trocou mensagens, Anilcéia Machado, era a presidente do tribunal à altura do diálogo. Ela deixou o cargo em dezembro e Manoel de Andrade acalentava o desejo de substituí-la. Mas um acordo celebrado entre os demais seis conselheiros do TCDF frustrou seu plano: a sucessão obedeceria ao tradicional esquema de rodízio, pelo qual o integrante mais antigo entre os que nunca haviam assumido o comando do tribunal seria eleito por aclamação. Andrade esperava contar com o apoio de Anilcéia, de quem sempre foi próximo, para derrubar a solução já combinada e se transformar no candidato de consenso, o que não aconteceu. Foi por perceber o fracasso de seu projeto de poder que, seis dias antes da eleição, o ex-taxista tramou contra Anilcéia e decidiu se vingar registrando a troca de mensagens em cartório. Para além do processo eleitoral na corte, o registro dos diálogos também pode ter sido feito com uma segunda, mas não menos importante, intenção: Manoel ainda esperava contar com a ajuda da colega em embargos auriculares junto a ministros do STJ, onde será julgado em breve – ele acredita que a conselheira tem canais na corte.
Anilcéia: “Uma pena esse debate, não deveria nem conhecer essas representações. Parabéns aos delegados do tribunal, estensão (sic) da Polícia Civil no tribunal, desculpe o desabafo, sinto-me envergonhada. (…) Rasguemos a lei”.
Manoelzinho do Táxi: “Calma”.
Anilcéia: “Desculpe-me mais uma vez, estou muito decepcionada c (com) o tribunal, acho que o cansaço bateu. (…) Cansei de lutar sozinha em prol do tribunal e ver esses dois bandidos terem vitória aqui dentro”.
No vídeo da sessão, transmitida pela internet, é possível ver quando Anilcéia e Manoel manuseiam o celular. A então presidente não votou no julgamento do caso relacionado aos policiais civis. Já Manoel de Andrade foi o relator e se posicionou a favor deles. Em uma evidência de que aquilo que o distinto público vê quase sempre não reflete o que acontece nos bastidores, curiosamente na despedida de Anilcéia da presidência da corte, mesmo depois de já ter circulado o documento com o registro das mensagens em que eram torpeados, os dois conselheiros chamados de “bandidos” a encheram de elogios. Michel disse que a colega havia sido “brilhante” no comando do tribunal. Rainha seguiu na mesma toada.
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