Adriano Machado/Crusoé

Em causa própria

Arthur Lira quer revisar, de novo, a legislação eleitoral. Ele pretende, entre outras coisas, limitar os poderes do TSE e, claro, dar mais dinheiro aos partidos
12.02.21

Recém-eleito presidente da Câmara, Arthur Lira iniciou sua gestão fazendo jus ao que prometeu a seus pares durante a campanha. Bem na linha “deputados acima de tudo”, o líder do Centrão passou a se mover para blindar os colegas — e a si próprio. Seu primeiro grande feito foi coerente com essa ótica: mandou transferir para uma sala sem janelas no subsolo da Câmara o Comitê de Imprensa, espaço onde nas últimas cinco décadas trabalharam jornalistas encarregados de cobrir as atividades legislativas. Lira quer instalar seu próprio gabinete no local. Como passará a ter acesso direto ao plenário, o deputado conseguirá escapar mais facilmente de perguntas que lhe possam causar constrangimento. No mesmo espírito, o presidente da Câmara acaba de tomar outra iniciativa que irá beneficiar não apenas ele próprio, mas o establishment político em geral. O plano é modificar a legislação eleitoral.

Oficialmente, o propósito dos parlamentares é resumido com um linguajar pomposo: “sistematizar e unificar todo o arcabouço jurídico que envolve as eleições, criando o Código de Processo Eleitoral”. Em português claro, a intenção não é nada nobre, como é de se esperar de uma iniciativa dessa natureza embalada pelo notório Centrão. A ideia é fortalecer os grandes partidos, livrar os parlamentares de eventuais punições, abrir as portas para possíveis práticas de crimes eleitorais e mostrar os dentes para o Judiciário, limitando os poderes do TSE. Entre as propostas em estudo, estão tornar ainda mais generoso o fundo eleitoral para as principais agremiações partidárias do país e estabelecer uma anistia ao caixa 2 eleitoral, sonho dourado de parlamentares de quase todas as colorações partidárias.

Na composição do colegiado, indicado inteiramente por Arthur Lira, o Centrão fez barba e bigode. O grupo terá 90 dias para concluir seus trabalhos e apresentar uma proposta. Como um dos objetivos é limitar o poder da Justiça Eleitoral de regulamentar normas e punições não previstas em lei, é claro que o tal código — ao qual terão de se submeter os magistrados de todas as instâncias incumbidos de organizar as eleições, processar os resultados das urnas e punir desvios — será elaborado de maneira a eliminar aquilo que, hoje, incomoda os parlamentares e seus partidos. As queixas são muitas. Eles alegam que as cortes eleitorais atropelam o Congresso e constrangem os políticos ao lançar novas regras às vésperas das eleições. Citam o caso, por exemplo, das cotas do fundo eleitoral para candidatos negros e pardos, estabelecidas a menos de dois meses das eleições municipais de 2020.

Edilson Rodrigues/Agência SenadoEdilson Rodrigues/Agência SenadoCiro Nogueira emplacou uma aliada como relatora do grupo criado por Lira
A ideia é que o projeto seja aprovado até julho em plenário.“O Judiciário tem que fazer normas internas ou então regras para aplicação da lei, e não inovar o direito como hoje faz a Justiça Eleitoral através de resoluções. Eles terminam inovando, criando regras que o legislador não previu. Essa função normativa não está prevista em nenhum diploma legal”, reclama a deputada Margarete Coelho, já escolhida para coordenar o trabalho. Ela é aliada de primeira hora de Ciro Nogueira, presidente do Progressistas.

Como não poderia deixar de ser, uma das principais preocupações da turma do Centrão é montar um cordão de proteção em torno dos parlamentares. Com a criação do grupo, diversos projetos de lei que já tramitam na Câmara propondo modificações no Código Eleitoral poderão ser apreciados de uma vez pelo grupo criado por Lira. Nesse bolo, há, por exemplo, propostas como a criminalização do caixa 2 aprovada pelo Senado em 2019, mas que não avançou na Câmara. É um tema que quase sempre vem acompanhado dos famosos jabutis, como são conhecidos os contrabandos incluídos em leis de maneira sorrateira. Na última oportunidade em que a casa tentou tipificar o crime, em 2016, o Centrão trabalhou para, na prática, transformar a medida em uma anistia à conduta de políticos que recorreram ao expediente das contabilidades paralelas. Com o discurso de “tornar mais clara” a legislação, há deputados que enxergam agora uma brecha para que a anistia ao caixa 2 volte à pauta.

Ainda no sentido de blindar-se, os deputados também pretendem alterar os processos de prestação de contas eleitorais, que são os que mais lhes causam problemas com a Justiça. Uma das possibilidades aventadas, a pretexto de “unificar as decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais”, é restringir as punições aplicadas a candidatos nas situações em que ficar comprovada a intenção de cometer o crime. “Às vezes você tem um candidato com contas rejeitadas em um estado por um erro em que não houve dolo. E, em outro estado, um outro candidato com contas aprovadas com ressalvas porque o TRE daquele local entende que a irregularidade é ínfima. Nós não temos a menor previsibilidade sobre como um TRE vai julgar. O entendimento sobre diversos pontos precisa ser unificado”, diz um parlamentar do Centrão, ouvido sob reserva.

Câmara dos DeputadosCâmara dos DeputadosEm 2013, Vaccarezza abriu as portas para o vale-tudo nas redes sociais
Parlamentares já se mobilizaram antes para tentar moldar a legislação eleitoral à sua feição. Em 2013, a Câmara formou um grupo para promover mudanças nas leis que regiam as eleições. O trabalho era coordenado por Cândido Vaccarezza, então deputado pelo PT. Foi justamente aí que o Congresso começou a abrir as portas para o vale-tudo das campanhas nas redes sociais.

Em 2019, houve uma tentativa de alterar a Lei dos Partidos Políticos, permitindo que siglas que não tivessem prestado contas à Justiça Eleitoral sobre os gastos do fundo partidário participassem das eleições mesmo assim. A brecha constituiria um perdão total a partidos com pendências no TSE. A anistia foi barrada em plenário. “Não dá. Aí também já é demais”, admitiu o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Com o grupo agora criado por Lira, o Centrão ensaia ressuscitar a proposta. Presidentes de partidos integrantes do bloco entendem que a proibição de participar de eleições é uma punição “severa demais”. A interlocutores, Arthur Lira tem dito que quer aproveitar o capital político de sua vitória para liberar imediatamente todos os pacotes de bondades – bondades para os próprios deputados, diga-se – prometidos durante a sua campanha.

Faz parte dos regalos o avanço sobre o fundo eleitoral das legendas menores. O caminho seria aprovar a extensão da cláusula de barreira, já aplicada ao fundo partidário, ao chamado fundão eleitoral.

PRTBPRTBO pequeno PRTB, de Levy Fidelix, pode ficar sem o fundo eleitoral
Na prática, os pequenos partidos – que já não contam com o fundo partidário – ficariam sem a verba destinada às campanhas. Por outro lado, os partidos maiores receberiam uma fatia maior do bolo, para o deleite de seus caciques, que em geral definem para onde e principalmente para quem vai o dinheiro do fundão. Hoje, ainda que não tenham acesso ao fundo partidário, dez das 33 siglas registradas no Brasil, como o PRTB do folclórico Levy Fidelix, e a Democracia Cristã, de Eymael, recebem dinheiro do fundo eleitoral. A narrativa dos dirigentes dos grandes partidos para tungar o dinheiro reservado a essas legendas menores já está pronta e assume pretensos ares republicanos: “o país tem partidos demais”.

As siglas pequenas e médias, no entanto, não ficariam sem uma compensação. Uma reivindicação do chamado baixo clero pode ser analisada pela comissão de Lira: a volta das coligações nas eleições proporcionais. Em 2017, o Congresso promoveu uma minirreforma eleitoral que acabou com as alianças nas eleições para vereador, deputado estadual e deputado federal, mantendo-as apenas nas disputas majoritárias – para prefeito, governador e presidente. O propósito era acabar com o “efeito Tiririca” – quando a votação expressiva de um candidato ajudava a eleger outros de uma mesma coligação, muitas vezes sem qualquer identificação ideológica com a legenda do puxador de votos.

Com Arthur Lira disposto a agradar a todos sem desagradar a ninguém, os bolsonaristas querem aproveitar o coração generoso do novo presidente da Câmara para tentar emplacar o projeto do voto impresso na agenda prioritária do grupo recém-criado. Esse item, porém, não reúne tantos entusiastas quanto os demais. Os aliados mais próximos de Lira duvidam que ele queira comprar a ideia. Quanto ao restante do plano, tudo parece encaminhado para, mais uma vez, os deputados decidirem em causa própria.

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