Licença para o crime
É farto na literatura mundial o acervo de pesquisas e estudos acadêmicos que correlacionam a escalada da violência ao aumento do número de armas de fogo circulando em um determinado território. Em países marcados pela desigualdade social, como o Brasil, as consequências costumam ser ainda mais letais. Mesmo assim, segue ilesa dentro da ideologia bolsonarista a crença de que armar os “cidadãos de bem” é uma estratégia eficaz para enfrentar a criminalidade. O revólver virou símbolo de liberdade e o fuzil passou a escoltar o mantra da legítima defesa. Desde o início do mandato, o presidente Jair Bolsonaro tem se empenhado em alterar normas para facilitar o acesso da população a armas e munições e afrouxar a fiscalização da Polícia Federal e do Exército, a partir do lema “povo armado jamais será escravizado”. Os quatro últimos decretos editados pelo presidente há uma semana, para agradar sua ala mais fiel de apoiadores, elevaram o nível de alerta entre especialistas e autoridades em segurança pública quanto aos efeitos da política armamentista do governo. Ao dar mais poder de fogo aos CACs, acrônimo pelo qual são chamados os caçadores, atiradores e colecionadores de armas, Bolsonaro não só beneficia sua tropa aliada — incluindo parentes, como o leitor verá a seguir — como municia indiretamente violentas organizações criminosas, entre as quais as milícias e as facções que comandam o tráfico de drogas no país.
Em linhas gerais, os decretos presidenciais publicados em série na noite de sexta-feira, 12, véspera do Carnaval, aumentam a quantidade de armas que um cidadão comum pode comprar de quatro para seis — em 2019, o limite já havia subido de duas para quatro —, permitem o porte de até duas armas simultâneas por pessoa e autorizam os atiradores a adquirirem até 60 armas e 180 mil munições por ano sem necessidade de aprovação do Exército. Ainda excluem da lista de produtos controlados pela corporação projéteis com calibre de até 12,7 milímetros, usados em pistolas .50, carregadores, mira telescópica e — o mais preocupante — máquinas e prensas para recargas de munição de calibres permitidos e de uso restrito, capazes de produzir até mil balas por hora. Na quarta-feira, 17, o PSB entrou com uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal pedindo a suspensão dos quatro decretos das armas, que só entram em vigor em abril. O partido, de oposição a Bolsonaro, argumenta que as novas normas alteram a lei federal que instituiu o Estatuto do Desarmamento, em 2003 — o que só pode ser feito por meio de projeto de lei aprovado pelo Congresso — e favorecem a criação de “ligas de justiceiros”. O caso ainda será analisado pela corte. Em dezembro, a partir de um pedido semelhante, o ministro Edson Fachin já havia cassado a decisão do governo de zerar a alíquota do imposto sobre a importação de armas e pistolas.
Para especialistas ouvidos por Crusoé, os novos decretos de Bolsonaro vão alavancar ainda mais um fenômeno que já está ocorrendo hoje no país: o envolvimento de falsos CACs em grandes assaltos e no tráfico de entorpecentes. Na Polícia Civil de São Paulo, há uma investigação sigilosa em curso que apura o uso de armas e munições registradas em nome de laranjas por facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital. Segundo um delegado que por anos atuou em operações policiais contra o PCC, a facilitação do acesso a armamentos permite que bandidos consigam munições de grosso calibre de forma legal — e de maneira mais segura e mais barata do que se estivessem contrabandeando de outros países, como o Paraguai, ou desviando dos próprios órgãos de segurança pública. “Agora, com esse decreto, eles vão poder fabricar a própria munição. E se a gente estourar uma fábrica dessas e o indivíduo mostrar que tem um certificado de atirador, com uma arma registrada, eu não tenho nem mais como prendê-lo. O pior é que essa munição caseira nem é rastreável. Isso dificulta muito o trabalho da polícia”, afirma o delegado, que pediu para não ser identificado. “O conjunto desses decretos incentiva a produção clandestina de munições e facilita a vida das organizações criminosos. Não vejo justificativa alguma para liberar o uso individual nessa proporção, e a falta de controle vai provocar consequências danosas”, diz o procurador Márcio Christino, que integrou a força-tarefa anti-PCC do Ministério Público paulista no início dos anos 2000.
Para os especialistas, é “enganosa” a tese propagada pelo bolsonarismo de que um “cidadão de bem” armado tem mais chance de sobreviver a uma tentativa de homicídio ou inibir um assalto. Em 2017, 80% dos policiais assassinados no país morreram armados, em dias de folga. Outro ponto crucial é o fato de que o elemento determinante nas ações criminosas não é a arma em si, mas o fator surpresa sobre as vítimas nos chamados crimes de oportunidade, que são os assaltos na rua. Quando há alguma reação, alguém sai ferido ou morto. Um caso ocorrido com o próprio presidente Bolsonaro corrobora esse argumento. Em 1995, quando era deputado federal, ele foi vítima de um assalto no Rio. Estava armado, mas foi surpreendido pelos bandidos, que ainda acabaram lhe roubando uma pistola Glock .380. “Noventa e oito por cento da literatura disponível no mundo mostra que os efeitos do aumento da circulação de armas de fogo na sociedade são sempre os mesmos: mais crimes, mais suicídios, mais violência doméstica, crimes contra a mulher. Há uma série de efeitos cascata dessa política que estimula a compra de armas e o presidente da República é o principal garoto-propaganda dela”, afirma Marques. Para ele, a política armamentista explica a alta de 7% no número de assassinatos no Brasil no primeiro semestre de 2020, em comparação com o mesmo período do ano anterior.
Outra narrativa que os fatos desmentem é a de que liberar mais armas para os CACs significa armar os “cidadãos de bem”. Isso porque o oportunismo dos bandidos já os levou a se infiltrar entre atiradores nos clubes de tiro e a corromper agentes públicos para fraudar os certificados de registros, os CRs, emitidos pelo Exército, que permitem a um atirador transitar armado e adquirir munições legalmente. No fim de janeiro, uma operação coordenada pela Polícia Civil em Brasília prendeu nove pessoas — entre elas, três cabos do Exército — acusadas de facilitar os registros de CAC para quem não cumpria todos os requisitos legais. Segundo a investigação, a quadrilha cobrava até 3 mil reais de propina para lançar, no sistema que gerencia as licenças, dados e documentos falsos, como cópias de antecedentes criminais adulteradas. Até réus denunciados e sentenciados por roubo conseguiram a carteirinha de atirador subornando militares. “Ex-militares atuavam na condição de despachantes e utilizavam dessa influência nos servidores da ativa, através de pagamentos de vantagens indevidas, para o militar agilizar e fazer vista grossa para ausência dos requisitos legais”, diz o delegado Fernando Cocito, que apreendeu 70 armas cadastradas com o grupo, entre revólveres, pistolas, carabinas e fuzis. “No frigir dos ovos, o que aconteceu é que armas legais iam parar nas mãos de criminosos”, afirma.
Para que uma pessoa consiga tirar a carteirinha de CAC, ela precisa obrigatoriamente estar associada a um clube de tiro. Nos decretos da semana passada, Bolsonaro não apenas afrouxou — ou “desburocratizou”, como ele prefere dizer — o poder de fiscalização da PF e do Exército sobre os atiradores, como ampliou os poderes desses clubes, que experimentam um boom sem precedentes no país. Foram 523 unidades oficialmente abertas só nos últimos dois anos, como o do advogado Henrique Law, que já viajou na comitiva presidencial para a China em 2019 e é filho do notório empresário chinês Law Kin Chong, preso mais de uma vez apontado como o maior contrabandista do Brasil nos anos 2000.
Os clubes têm acesso irrestrito a munições, são os responsáveis por emitir o laudo que atesta a capacidade técnica de manuseio de arma pelos atiradores e a frequência mínima no estande para a renovação da carteirinha. Eles poderão, agora, ampliar seu leque de clientes com jovens a partir de 14 anos. As medidas não estimulam apenas um hobby do clã Bolsonaro — o presidente os filhos frequentam estandes de tiro —, como os próprios negócios da família. Em março do ano passado, um mês antes da célebre reunião ministerial em que Jair Bolsonaro elevou o tom para dizer que queria “todo mundo armado“, dois sobrinhos do presidente abriram um clube de tiro em Cajati, cidade de 28 mil habitantes que fica no Vale do Ribeira, onde moram três irmãos do presidente. Pelos registros na Junta Comercial, Orestes e Osvaldo Bolsonaro investiram juntamente com o pai 100 mil reais para montar um clube e um hotel no município. Cajati passará a receber uma leva de jovens interessados na carreira militar nos próximos meses, com a inauguração de um quartel de Tiro de Guerra pelo Exército na cidade. A clientela dos Bolsonaro deverá aumentar.
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