MarioSabino

Voltaire ou o Cansaço

26.02.21

Eu tinha um pulôver de cashmere que podia ter virado roupa de cachorro. Explico: depois de usar muito o pulôver num inverno bastante frio em Paris, pedi à funcionária que me assistia três vezes por semana que o lavasse. Na minha crença panglossiana de que estamos no melhor dos mundos possíveis, eu esperava que ela soubesse que cashmere não deve ser enxaguado, centrifugado e secado em máquina. Em casa, requer lavar à mão. Como a moça não sabia, sobrou-me um pulôver que parecia miniatura dessas vendidas em pet shop. Agrura de um pequeno-burguês.

O cashmere em questão era de uma marca francesa chamada Zadig & Voltaire. Além de considerar uma marca de bom gosto, acho genial a sua referência. Zadig ou o Destino é o nome de um livro de Voltaire. Eu o li aos 25 anos, depois de Cândido ou o Otimismo, ambos em Nápoles. Eu havia me hospedado num hotel barato ao lado da estação ferroviária e terminava os meus dias lendo Voltaire, ao som da música árabe que vinha do quarto ao lado. A trilha sonora até que conferia um clima aproximativo com Zadig, uma vez que o personagem que dá título à novela vive as suas aventuras no Oriente Médio, entre a Babilônia e o Egito, enfrentando injustiças e superstições. Já Cândido, cuja “fisionomia anunciava a sua alma” de candura, contrastava com a paisagem oferecida pelo hotel barato ao lado da estação ferroviária de Nápoles. Há dois lugares nos quais definitivamente não dá para ser Cândido e acreditar na máxima do seu mestre Pangloss de que vivemos no melhor dos mundos possíveis: quando se está hospedado perto de uma estação ferroviária de uma grande cidade europeia ou em Brasília, não importa a localização ou o preço do hotel. 

Daquele longínquo 1987 para cá, minhas leituras me afastaram de Voltaire. Voltaire passou a ser, no mais das vezes, o quai que atravesso para alcançar o Louvre, o monumento numa esquina da rue des Écoles, e, raramente, a sua tumba no Panthéon, que desafia a de Rousseau, posicionada do outro lado. Já não compro mais cashmeres na Zadig & Voltaire. Em 2006, por aí, visitei o Palácio de Sans-Souci, em Potsdam, construído por Frederico, o Grande, soberano da Prússia. Voltaire costumava hospedar-se lá, num quarto de paredes douradas, para bajular Frederico, um desses poderosos metidos a pensador (existem até hoje). Bem melhor do que o hotel barato de Nápoles, não pude deixar de pensar.

Na semana passada, porém, Voltaire irrompeu na minha vida pelo Twitter. Caí na besteira de dizer que jamais havia saído da boca ou pena dele a seguinte frase que circulava na rede social, em inglês: “Se você quiser saber quem o controla, veja quem você não tem permissão para criticar”. A frase foi colocada em circulação no contexto da prisão de deputado federal Daniel Silveira, que postou aquele vídeo no qual ofendia ministros do Supremo. Achei-me na obrigação de informar, sem querer fazer treta, como se diz, que a frase não era de autoria de Voltaire. Como sei? Porque há cinco anos estudiosos de Voltaire desmentiram que ela fosse do autor francês, depois que um político australiano a utilizou. Ao que parece, quem primeiro divulgou a atribuição falsa foi um neonazista americano.

Outras pessoas também apontaram o equívoco, mas só posso falar por mim: enderecei educamente o meu tweet a Ana Paula Henkel, ex-colaboradora desta revista, que me respondeu de maneira igualmente cortês. No entanto, os seus adversários políticos a crucificaram por ter postado a frase e os seus simpatizantes me apedrejaram pela correção. Entre os seus adversários, o ex-jogador de futebol Walter Casagrande, hoje comentarista, atacou frontalmente a ex-jogadora de vôlei no site para o qual escreve. Ana Paula Henkel revidou o ataque no Twitter e Neto, também ex-boleiro e agora comentarista, solidarizou-se na televisão com Walter Casagrande. Na sequência, Ana Paula Henkel retuitou um artigo no qual o palestrante Mario Sergio Cortella atribui a tal frase a Voltaire — e eu me senti convocado a entrar na arena e escrever no Twitter que “o Brasil cansa. A frase não é de Voltaire”, com link para uma matéria do jornal inglês The Guardian, de 2015, que ouviu um dos maiores especialistas em Voltaire, Paul Gibbard, professor na Austrália e ex-pesquisador da Fundação Voltaire, em Oxford. “Há muitas citações atribuídas a Voltaire que não são realmente dele, e essa é uma delas”, disse Gibbard. “Voltaire tem sido copiado, imitado e objeto de pastiches desde que produziu os seus primeiros escritos”. E o estudioso acrescentou: “Se você coloca o nome de Voltaire na frase, certamente tem muito mais autoridade do que se fosse apenas uma citação sua”.

François-Marie Arouet, o Voltaire, era um frasista prolífico, o mais notável do Iluminismo. A frase falsamente atribuída a ele, que deu margem a memes impagáveis, pode até ter o seu espírito, mas não se pode atribuir autorias que não são verdadeiras. Como a disputa foi parar no campo esportivo, houve quem quisesse cravar o placar de um a um: se não havia certeza de que a frase fora dita originalmente por um neonazista americano, não hava garantia também de que Voltaire não a tivesse proferido. Francamente, desonestidade intelectual tem limite até no Brasil. Mesmo os franceses cometem o erro de assinar o nome de Voltaire em frases que ele não disse. O jornal Le Parisien, por exemplo, elencou entre 410 frases atribuídas ao autor francês a famosa “Não concordo com o que você diz, mas defenderei até o fim o seu direito de dizer”. Não é dele, embora constantemente tasquem o nome de Voltaire embaixo dela. É uma ótima frase de qualquer jeito.

Ao fim e ao cabo, recomendo que as pessoas leiam Voltaire de verdade. Elas podem ler apenas as duas obras que devorei há 34 anos – e às quais pretendo voltar depois da confusão no Twitter. São curtas, divertidas e bastante instrutivas a respeito da estupidez e intolerância que nos cercam. É uma forma também de desagravá-lo por ter parado na crônica esportiva da internet e adjacências. Voltaire apanhou o suficiente na vida, não precisa apanhar depois de morto. Quando contava 32 anos, ele levou uma surra de servos de Guy-Auguste de Rohan-Chabot, um mauricinho arrogante de uma ilustre família francesa. “Senhor Voltaire, Senhor Arouet, como chamá-lo?”, perguntou o sujeito, a fim de humilhá-lo. O autor respondeu: “Voltaire! Eu começo o meu nome e o senhor termina o seu”. A resposta lhe valeu umas bastonadas, ele quis duelar com o mauricinho, viu-se preso na Bastilha por causa da ousadia e acabou exilado. Foi para a Inglaterra, onde o seu pensamento perdeu as finas amarras que ainda o seguravam. Eu topo apanhar (e bater) no Twitter. Mas não encolhamos Voltaire na máquina de lavar das redes sociais.

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