Berlinda com data marcada
Assinado em 2015, o Acordo de Paris tinha como objetivo limitar o aquecimento global a 2 graus Celsius acima das temperaturas registradas antes da era industrial. O pacto fez história por ter sido o primeiro acordo que incluiu metas de redução das emissões de carbono tanto de países ricos como das nações em desenvolvimento. Mas uma grande decepção acompanhou o seu anúncio. Como cada país determinou voluntariamente as próprias metas, a conta não fechou. A soma de tudo aquilo que os países se dispunham a cortar de carbono na atmosfera não era suficiente para evitar um aumento da temperatura acima de 2 graus. Ficou combinado, então, que uma nova conferência aconteceria em 2020, para estabelecer novas metas. Também se acertou que ninguém poderia estipular objetivos menos ambiciosos na rodada seguinte.
Essa segunda conferência, batizada de COP26, deveria ter acontecido em Glasgow, na Escócia, em novembro do ano passado. Com a pandemia, o encontro foi adiado para novembro deste ano. Os países já estão anunciando quais serão os seus objetivos para quando chegar a reunião. O Brasil enviou as suas metas em dezembro do ano passado, mas tomou um senhor puxão de orelha um mês depois. A Climate Action Network, a CAN, uma coalizão de 1.300 organizações ambientalistas, enviou uma carta para a mexicana Patricia Espinosa, secretária-executiva da Convenção-Quadro das Nações Unidas para a Mudança do Clima, alegando que o governo brasileiro estava retrocedendo em seus objetivos, o que violaria as regras do Acordo de Paris.
Em 2015, o governo brasileiro tinha se comprometido a cortar as emissões em 37% até 2025, em relação aos níveis de 2005. Para 2030, a redução seria de 37%. Com Ricardo Salles no comando do Ministério do Meio Ambiente, o Brasil confirmou as duas metas, mas não atualizou as porcentagens depois que, por critérios técnicos, a base de cálculo das emissões de 2005 foi ajustada para cima. Segundo a CAN, o truque permitiria ao país emitir de 20% a 40% mais toneladas de carbono na atmosfera do que tinha combinado em Paris. Para a organização, se os países da COP26 aceitassem a proposta brasileira, “um caso até agora único no mundo”, isso enviaria um sinal indesejável para outros governos, que também poderiam se sentir no direito de regredir em seus esforços.
Pode até existir alguém no Itamaraty ou no Ministério do Meio Ambiente acreditando que o resto do mundo, lutando contra a pandemia e a recessão, decida de bom grado mandar esse cheque para o Brasil, país que afrouxou os mecanismos de controle do desmatamento e cujo presidente dá mostras de não se importar com o assunto. “Até então, o Brasil nunca tinha exigido dinheiro do exterior em troca da proteção da floresta, tanto que reduziu o desmatamento com recursos próprios e se recusou a vincular nossas metas climáticas ao recebimento de fundos no exterior. Esta postura atual parece mais uma catimba. O governo está querendo ganhar tempo enquanto é pressionado”, diz Claudio Angelo, do Observatório do Clima, rede de ONGs que acompanha as negociações. Também será difícil convencer os estrangeiros de que o problema por trás dos incêndios na floresta seja a falta de recursos internacionais. “Há cerca de 3 bilhões de reais parados no Fundo Amazônia, sem aplicação, um valor bem maior que o orçamento previsto para a área ambiental neste ano, que é de 1,72 bilhão de reais. O problema central não é a escassez de dinheiro, mas saber o que fazer com ele: faltam políticas, determinação e esforços próprios do Brasil”, afirma Mark Lutes, conselheiro-sênior de política global de clima do WWF.
O Brasil ainda pode rever seu posicionamento. Em vez de ocorrer com Donald Trump na presidência e com os Estados Unidos fora do Acordo de Paris, a COP26 acontecerá com Joe Biden na Casa Branca e o país de volta ao grupo. O democrata é um ardoroso defensor do tratado e está ansioso para que a revisão das emissões desta vez feche a conta. Se algum país pensava que poderia ignorar os compromissos à vontade, sem ser cobrado por isso, essa possibilidade não existe mais. “A parceria que havia entre Brasil e Estados Unidos no governo Trump dava uma certa legitimidade para as decisões baseadas no ceticismo climático. Essa dinâmica mudou”, diz Viviane Romeiro, gerente de clima do instituto de pesquisas WRI Brasil.
Dentro do governo, quem tem buscado uma postura, digamos, mais racional no debate é o vice-presidente Hamilton Mourão. Como presidente do Conselho da Amazônia, ele realizou reuniões com empresários em meados do ano passado. O vice se mostrou sensível às demandas que ouviu. “Todos eles colocam a questão de que a gente tem que ter uma meta, reduzir o desmatamento ao mínimo aceitável, e as pessoas entenderem que não podem desmatar“, disse Mourão. O vice até chegou a dizer que iria à COP26, mas foi desautorizado pelo presidente em seguida. “O Mourão está dizendo que vai à reunião do clima, mas quem irá será o Salles“, disse Bolsonaro.
Diplomatas estrangeiros e ambientalistas ainda aguardam a notícia de que Mourão irá embarcar no avião para Glasgow. “O vice tem posições mais racionais do que Bolsonaro. Por isso, o resto do mundo torce para que ele tenha um papel mais importante. Mas provavelmente ele não terá poder de decisão”, diz Eduardo Viola. Até a COP26, haverá tempo suficiente para o governo brasileiro ajustar as suas pretensões — e para o resto do mundo conhecer qual é a sua real intenção.
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