Inferno à brasileira
Uma tabela com dados orçamentários descontextualizados e imprecisos quase deflagrou uma guerra federativa no país nos últimos dias. As informações com os repasses do governo federal para os 26 estados e o Distrito Federal foram publicadas no domingo, 28, nas redes sociais de Jair Bolsonaro, e desencadearam um levante inédito de governadores contra a inação do Palácio do Planalto no combate à pandemia. O motim, que incluiu até políticos bolsonaristas, colocou o presidente sob pressão. Bater na tecla enganosa de que o governo federal fez repasses trilionários da União para as unidades da federação é a nova estratégia de comunicação de Bolsonaro para se esquivar da culpa pela gestão desastrosa da crise sanitária. O governo tenta se eximir das suas responsabilidades, dizendo que Brasília repassou uma dinheirama para os governadores – a artimanha anterior, já superada, consistia em culpar o Supremo Tribunal Federal, que deu aos governantes locais poderes para decidir sobre medidas de isolamento social. As transferências alardeadas como um ato de benevolência federal, entretanto, são obrigatórias.
O estratagema presidencial de empurrar para os governos estaduais a culpa pelo recrudescimento da pandemia – o país vive hoje o pior momento da tragédia desde que o vírus chegou por aqui – fez governadores, independentemente de partido e posição ideológica, se unirem para dar uma resposta enfática a Bolsonaro. Com os serviços de saúde à beira de um colapso em vários estados e em Brasília, e sob críticas do empresariado pela decretação de medidas mais restritivas, eles agora exigem que o presidente da República assuma seus próprios deveres. Querem uma coordenação nacional da crise, cobram a liberação de recursos para a abertura de novos leitos de UTI e, principalmente, pressionam por mais proatividade do Planalto na compra de vacinas contra a Covid-19. “Em meio a uma pandemia de proporção inédita na história, agravada por uma contundente crise econômica e social, o governo federal parece priorizar a criação de confrontos, a construção de imagens maniqueístas e o enfraquecimento da cooperação federativa essencial aos interesses da população”, afirmaram 19 governadores em uma carta-protesto que virou o fato político da semana.
“Os governadores estão muito unidos desde antes da pandemia, porque o estilo do presidente Bolsonaro exigiu uma concertação maior entre nós. Agora, o que estamos buscando é ampliar a aproximação com o Congresso e com o STF, para podermos ter aliados no enfrentamento da pandemia”, afirma o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, do PSB. “Continuamos em busca de interlocução com o Ministério da Saúde, mas como o governo federal tem posições muito contraditórias com relação à Covid, precisamos de outros aliados para enfrentar esse recrudescimento da pandemia. Vamos passar de 2 mil mortos (diários) nos próximos dias, é como se uma bomba atômica caísse sobre algumas cidades”, emenda. Na última terça-feira, 2, governadores participaram de um almoço com o presidente da Câmara, Arthur Lira, para discutir o orçamento para este ano. A principal demanda foi a liberação de 14 bilhões de reais adicionais para despesas com saúde. Em seu melhor figurino governista, Lira disse que não é hora de “apontar os dedos uns contra os outros” e defendeu a união para o combate à pandemia, sem explicar como seria possível uma harmonia federativa diante da postura do presidente.
Nesta quinta-feira, 4, Bolsonaro voltou a exibir seu negacionismo raiz e sua insensibilidade diante da tragédia. “Nós temos que enfrentar nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos que enfrentar os problemas. Respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades. Mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?”, disse, em um evento no interior de Goiás, ao criticar novamente as medidas de isolamento social. Depois, chamou de “idiota” quem defende a compra de mais vacinas e disse que não há onde comprar imunizantes para fornecimento imediato. “Só se for na casa da tua mãe“, afirmou, com a delicadeza que lhe é peculiar. Horas mais tarde, em sua live semanal, tentou ajustar o discurso e afirmou que, ainda neste mês, o Brasil terá “no mínimo” 20 milhões de doses de vacinas. Mais ou menos no mesmo horário, o Ministério da Saúde divulgava seu balanço diário: nesta quinta, o país ultrapassou a marca de 260 mil mortes provocadas pelo novo coronavírus. A semana foi trágica. Por dois dias seguidos, o Brasil bateu seu recorde diário de mortes por Covid-19 desde o início da pandemia. Quase 11 milhões de brasileiros já foram infectados. Especialistas alertam que este é o pior momento da crise, agravada pela disseminação de novas variantes do vírus. Dizem ainda que é o pior instante para as pessoas contraírem a doença, porque a rede hospitalar está próxima do colapso em vários estados – em diferentes regiões é grande a chance de não haver um leito de UTI disponível para quem precisar de cuidados especiais. Enquanto os políticos se engalfinham entre si, alguns negando o perigo evidente e outros, com razão, tentando buscar saídas, mas de maneira atabalhoada, os brasileiros esperam resultados concretos: vacinas para todos o quanto antes e medidas que possam ajudar a conter o descalabro. No inferno particular em que vive o país, uma dose de bom senso já seria um passo importante.
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