Kleyton Amorim/UOL/FolhapressNoronha ganhou uma declaração de amor de Bolsonaro e agora espera uma cadeira no STF

Noronhe-se

A história de João Otávio de Noronha, o ministro do STJ que caiu nas graças de Jair Bolsonaro, é um guia prático de como ser amigo do poder
05.03.21

Desde os tempos em que conciliava a diretoria jurídica do Banco do Brasil com a militância na Ordem dos Advogados do Brasil, no início dos anos 2000, João Otávio de Noronha sabia que era preciso estar muito bem posicionado no jogo do poder em Brasília para alcançar o sonho de ocupar uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça. Por meio do banco estatal, o então advogado fez agrados a magistrados da corte, liberando verbas para eventos e viagens da Escola da Magistratura e conquistando apoios importantes na corte enquanto se aproximava daqueles que poderiam ser os seus melhores padrinhos políticos no Planalto. A estratégia deu certo. Noronha conseguiu se garantir como o segundo mais votado na lista tríplice dentro do STJ e, depois, em dezembro de 2002, foi escolhido pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, para uma das cadeiras reservada à advocacia. Em seu favor, pesou muito o apoio do todo-poderoso ministro da Fazenda de então, Pedro Malan. Passados quase vinte anos, Noronha tenta repetir a receita para chegar ao cargo que há anos ambiciona, uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal. Agora, como não poderia deixar de ser, o alvo é o presidente Jair Bolsonaro.

As convergências entre ambos aumentaram no ano passado, quando o ministro ainda presidia o STJ e Bolsonaro teria de escolher o substituto de Celso de Mello no STF. Não faltaram decisões favoráveis de Noronha ao governo. Um levantamento do jornal O Estado de S.Paulo mostrou que 87% de seus despachos foram ao encontro do que a administração Bolsonaro desejava. Àquela altura, o presidente da República já havia declarado publicamente que sua relação com Noronha envolve paixão. Foi “amor à primeira vista“, chegou a dizer Bolsonaro em uma cerimônia no palácio do governo. O ministro fez jus ao amor pouco tempo depois, em meados do ano passado, concedendo prisão domiciliar a Fabrício Queiroz, o homem de confiança do clã presidencial que tinha sido preso pelo rachid no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio. Causou espécie entre outros ministros da corte o fato de Noronha ter estendido o benefício à mulher de Queiroz, que estava foragida, sob o argumento de que ela teria de “dar atenção necessária” ao marido. A decisão foi vista como “absurda” por pares do então presidente do STJ. Noronha já almejava, ali, uma cadeira no Supremo. Mas teve que aguardar mais um pouco na fila – apesar dos gestos, Bolsonaro acabou escolhendo o então desembargador federal Kassio Marques para a vaga.

O sonho do magistrado mineiro, porém, continua vivo, com a proximidade da aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello, em julho deste ano. Na semana passada, o ministro acolheu pedidos da defesa de Flávio para anular a quebra dos sigilos bancário e fiscal do senador e de outros investigados no caso do rachid. Outros três ministros seguiram o voto de Noronha no julgamento e, por quatro a um, a Quinta Turma do STJ descartou as principais provas da denúncia apresentada pelo Ministério Público do Rio contra o filho 01 de Bolsonaro. Em seu voto, Noronha ainda sinalizou ser favorável à anulação dos relatórios do Coaf que deram origem à investigação, o que pode levar toda a apuração à estaca zero – ou seja, tudo o que os Bolsonaro querem. O julgamento foi suspenso, mas o resultado parcial, liderado por Noronha, foi comemorado especialmente pelo próprio Flávio e por Wassef, a dupla que influencia as escolhas de Bolsonaro para os tribunais. A vaga de Marco Aurélio representa a última chance de Noronha de subir para o Supremo. Ele completa 65 anos em agosto e a partir dessa idade já não poderá mais disputar o cargo. Noronha tem concorrentes, porém. Também estão no páreo o atual presidente do STJ, Humberto Martins, e o ministro da Justiça, André Mendonça, ambos evangélicos — critério que Bolsonaro prometeu considerar para a próxima vaga. O procurador-geral da República, Augusto Aras, corre por fora.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisNinna Noronha, a filha: com o irmão, ela atua na alta advocacia de Brasília
Mineiro de Três Corações, João Otávio de Noronha logo se adaptou aos requintes que orbitam a cadeira de um magistrado de tribunal superior. Após virar ministro, deixou um apartamento de 170 metros quadrados na Asa Sul, em Brasília, para construir uma mansão quase dez vezes maior no Lago Sul, região mais luxuosa da capital – aquela mesma onde Flávio acaba de comprar uma casa. Enquanto o imóvel não ficava pronto, o ministro pediu para entrar na fila dos apartamentos funcionais cedidos pelo STJ aos magistrados que não têm residência fixa no Distrito Federal, mas ideia causou um enorme desconforto na corte. Nesse episódio, nasceria seu primeiro atrito com colegas de toga, como a então ministra Eliana Calmon. Em um julgamento envolvendo a legalidade de um benefício fiscal que poderia gerar um prejuízo bilionário para a União, Noronha sinalizou ser radicalmente favorável às empresas. Eliana se irritou. Ela defendia que a corte não poderia submeter os cofres públicos a tamanho prejuízo em um processo repleto de lobby – incluindo o do então presidente do Senado, Renan Calheiros – e dinheiro. Nesse instante, a ministra esfregou os dedos para reforçar a ideia de que a decisão não podia ser tomada a partir da lógica do dinheiro. Noronha interpretou o gesto como uma provocação e ameaçou processá-la.

Não foi a única refrega com colegas em seus quase 18 anos de STJ. Em 2016, o novo amigo do peito de Bolsonaro se desentendeu com o ministro Francisco Falcão por causa de uma investigação interna para apurar suspeita de desvios em contratos de informática dentro da corte. O caso era visto por parte dos ministros como uma espécie de perseguição a adversários internos. Noronha depôs como testemunha de um investigado. Em fevereiro daquele ano, Falcão chamou a julgamento um recurso movido por uma empresa contra a investigação, o que revoltou Noronha – ele pedira vista do processo e ainda não tinha liberado seu voto. De um lado, Falcão disse que, por ser testemunha, Noronha estaria impedido de votar. De outro, Noronha afirmava que, por ter aberto o procedimento, Falcão era “parte” no processo, o que demonstrava a alegada “perseguição”. Houve troca de insultos, especialmente nos bastidores.

Emerson Leal/STJEmerson Leal/STJHumberto Martins, presidente do STJ, também almeja a vaga no Supremo
Noronha e Bolsonaro têm traços em comum. Um exemplo: ambos têm filhos nas cercanias dos palácios onde eles despacham. Em setembro do ano passado, Crusoé mostrou que há mais de 7 mil processos no STJ nos quais filhos, sobrinhos e cônjuges de ministros figuram como advogados. Entre os mais atuantes desse time estão os filhos de Noronha, Otávio e Anna Carolina, a Ninna. Com apenas 36 anos, Tavinho, como é conhecido o primogênito do ministro, atuou por exemplo em uma causa de arbitragem milionária e defendeu políticos enrolados em operações da Polícia Federal, como um irmão do ex-governador paraibano Ricardo Coutinho, preso por desvio de dinheiro da saúde do estado. Por influência do pai, o jovem advogado também chegou à presidência do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, o STJD, por onde já passaram vários outros filhos de ministros do STJ, como Caio Rocha, filho de Cesar Asfor Rocha. Já Ninna apareceu, em 2017, como personagem de um episódio que envolvia tentativas de lobby para obter decisões no STJ. A advogada Renata Gerusa do Prado, defensora da gigante JBS, participava da articulação.

Renata é filha da desembargadora Maria do Carmo Cardoso, do Tribunal Regional da 1ª Região – aquela mesma que, no fim do ano passado, ajudou Frederick Wassef, advogado de Flávio Bolsonaro (sim, no fim os personagens sempre se entrelaçam) a se livrar do percalço de relatórios do Coaf que revelavam transações financeiras suspeitas, inclusive com a própria JBS. Carminha, como a desembargadora é conhecida, é amiga de longa data da família de João Otávio de Noronha. Ela empregou em seu gabinete a mulher do ministro, a pedagoga Denimar Noronha, que nem formação jurídica tem. A relação entre a desembargadora e o ministro só foi abalada quando Noronha viu adiado seu sonho de ir para o Supremo no ano passado. Isso porque Carminha, que também se aproximou da família Bolsonaro e até conseguiu emplacar uma outra filha como conselheira do Cade, apoiou o nome de Kassio Marques, seu colega de TRF-1. Agora, com as recentes decisões favoráveis ao primogênito do presidente, João Otávio de Noronha pode ter conseguido alguma dianteira na corrida.

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