O chefe, a cadeia e a eleição
“É um canalha. Um mau-caráter. O que ele fez foi deslealdade jurídica”, disse o ex-presidente Lula a Fernando Haddad na tarde da última segunda-feira, 6 de agosto. O petista estava irritado. O alvo do xingamento era o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, que, na semana anterior, havia remetido ao plenário um recurso da defesa do ex-presidente petista que poderia enterrar por antecipação sua candidatura ao Palácio do Planalto nas eleições deste ano. O encontro ocorreu poucas horas depois de o ex-prefeito de São Paulo ter sido escolhido pelo PT como candidato a vice-presidente na chapa petista, aquela que só nos devaneios dos militantes mais empedernidos tem alguma chance de vingar. Lula não engole Fachin. Queixa-se de que o ministro chegou à corte pelas mãos do PT, mas hoje se comporta como um adversário do partido. A reunião com Haddad em que o ex-presidente fez o desabafo foi como todas as que ele vem tendo na cela especial em que está recolhido desde que foi preso, em 7 de abril, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá. Sempre a sós com seus interlocutores. Com a porta da sala de quinze metros quadrados fechada, mas não trancada. E tendo ao lado uma Bíblia, constantemente aberta, e um Livro de Salmos, invariavelmente fechado.
A Bíblia e o Livro de Salmos, evidências de uma estranha e repentina conversão do petista em carola, ficam próximos a um rádio-relógio que repousa sobre a cômoda disposta ao lado da cama, também de madeira. Sobre o colchão, além dos lençóis e travesseiros brancos, há uma manta azul. Encostado em uma parede há um armário. E atrás dele fica o pequeno banheiro privativo do inquilino do pedaço, em que os visitantes evitam entrar. Lula e Haddad estavam sentados em duas das quatro cadeiras que a Superintendência da Polícia Federal deixou disponíveis na cela improvisada, preparada especialmente para abrigar o preso ilustre. Na mesa ao redor da qual as conversas com os visitantes se desenrolam, há alguns livros, papéis em branco empilhados, canetas e cadernos — parte da matéria-prima básica que Lula tem utilizado para, de dentro da prisão, comandar o PT e toda a estratégia eleitoral do partido na sucessão presidencial. Ela se dá ora em cartas, ora nesses encontros reservados, em que o ex-presidente conta com os préstimos de seus seguidores mais próximos para fazer chegar as suas ordens ao mundo exterior.
Lula consegue comandar a campanha petista da cadeia porque o partido encontrou brechas na legislação para que fosse formada uma estrutura de comunicação permanente com o petista. Como advogados podem visitar presos a qualquer momento, a solução encontrada foi incluir na equipe jurídica dele dirigentes partidários com registro na Ordem dos Advogados do Brasil. É o caso do próprio Haddad, que até fez chiste da nova função ao dizer a amigos que pela primeira vez faria uso de sua carteirinha de advogado, da presidente da sigla, a senadora Gleisi Hoffmann, e dos deputados federais Paulo Teixeira e Wadih Damous. Os quatro são os principais porta-vozes e meninos de recado do condenado. Ao grupo se juntam os advogados Cristiano Zanin e Valeska Teixeira, com quem o ex-presidente preso trata apenas de temas jurídicos, mas que em parte das vezes também atuam como pombos-correios. Isso ocorre quando os políticos-advogados não estão em Curitiba e o ex-presidente deseja passar alguma ordem ao PT. Ele então redige um texto que é entregue por Zanin ou Valeska a um jornalista do Instituto Lula que fica permanentemente em Curitiba. Marco Aurélio, mais conhecido como Marcola, é quem decifra a letra de Lula, transcreve o texto, digitaliza a carta e encaminha o recado para Gleisi por e-mail. No final de junho, o time foi reforçado por outro condenado por corrupção, José Dirceu, solto pelo Supremo Tribunal Federal. Funciona assim: Gleisi se encontra com o ex-ministro no apartamento dele em Brasília, colhe suas impressões do cenário eleitoral e viaja até Curitiba para transmiti-las a Lula, que devolve suas impressões a Dirceu.
Da confabulação remota entre os condenados, com a intermediação da senadora investigada, saem as principais estratégias. No começo, houve até uma disputa sutil entre Gleisi e Haddad, para definir quem seria o principal porta-voz do petista. A função acabou com a paranaense, e de uma forma bastante curiosa: ela mesma se declarou a vencedora da parada. Disse que a decisão foi do próprio Lula. O modelo engrenou. Logo nas semanas subsequentes à prisão, o ex-presidente conseguiu interditar o debate levantado por governadores do PT de que o partido deveria avaliar o apoio a uma candidatura de outra legenda. O ex-ministro Jaques Wagner também era entusiasta da ideia. Até que foi convocado para uma reunião em Curitiba, no bunker de Lula, que determinou diretamente ao ex-ministro o encerramento imediato do debate.
A Copa do Mundo esfriou as articulações, mas, uma vez finalizado o torneio, elas voltaram a ganhar intensidade. Com o início do prazo das convenções partidárias, ampliaram-se. E Lula, da prisão, atuou fortemente. Idealizou o acordo do PT com o PSB que acabou por isolar a candidatura de Ciro Gomes e garantir a hegemonia petista no campo da esquerda. Para tanto, não hesitou em sacrificar a candidatura da vereadora petista do Recife Marília Arraes ao governo de Pernambuco, abrindo caminho para a reeleição do governador Paulo Câmara, do PSB. Em troca, a sigla se comprometeu a retirar a candidatura do ex-prefeito de Belo Horizonte Márcio Lacerda ao governo de Minas Gerais, facilitando a reeleição do petista Fernando Pimentel ao governo mineiro. Na negociação, o PSB se comprometeu ainda a ficar neutro na disputa. E assim o fez. A maquinação de Lula foi um tiro na testa de Ciro Gomes, que vinha tentando se apresentar como opção capaz de unir parte da esquerda, mas acabou conseguindo fazer aliança com apenas um partido: o nanico Avante.
Os movimentos de Lula a partir da prisão, bem-sucedidos até então, tiveram algumas inflexões no último e decisivo final de semana, com consequências ainda incertas. Isso porque a operação que resultou na escolha de Haddad como vice voltou a incendiar o partido e expôs a divisão interna sobre o rumo ideal a seguir nesta eleição. Mesmo com a escolha do ex-prefeito para a vice, ainda há quem defenda que Jaques Wagner seja o escolhido. Uma parcela relevante do partido rejeita Haddad como candidato. Consideram-no “muito classe média universitária e sem histórico nos movimentos sociais”, conforme relatou a Crusoé um petista que atuou nessas negociações. A rejeição parte justamente de onde Haddad deveria ser mais forte: do PT de São Paulo. Ali, há muitas queixas relacionadas à forma com a qual ele tratou a bancada da Câmara e do Senado quando era ministro da Educação e ao estilo considerado arrogante com que lidava com correligionários quando foi prefeito de São Paulo, entre 2013 e 2016. Os que não gostam da solução Haddad temem que uma eventual vitória dele possa levar a uma crise política como a enfrentada por Dilma Rousseff em seu governo, potencializada pelo seu estilo alheio à política.
O estado-maior da prisão
Na semana passada, Gleisi levou essas inquietações a Lula. Na sexta-feira, ele deflagrou uma última operação com o objetivo de convencer Wagner a disputar a Presidência. O prazo era exíguo, já que as indicações dos candidatos deveriam ser encaminhadas ao Tribunal Superior Eleitoral até a meia-noite de domingo. Gleisi repassou, ainda na sexta, o apelo de Lula a Wagner: tomou um avião, foi a Salvador e disse pessoalmente que ele deveria ser o candidato por ter mais “a cara do PT” e ser mais articulado politicamente que Haddad, além de gozar de bom trânsito dentro e fora do partido. O candidato a governador de São Paulo pela legenda, Luiz Marinho, um dos petistas mais próximos de Lula, foi convocado para a operação. Também seguindo as orientações expedidas pelo preso em Curitiba, ele reforçou o apelo. O baiano resistiu. Alegou que sua candidatura faria acelerar as investigações que correm contra ele, decorrentes da Lava Jato. Um temor que nem a sua mulher, Fátima Mendonça, faz questão de esconder. Em um almoço recente na cidade de Brumado, no interior da Bahia, ela respondeu com veemência a um aliado do marido quando foi chamada de “primeira-dama do Brasil”. “A polícia entra na minha casa, não é na sua”, esbravejou.
O que poderia parecer um episódio excepcional em que a vontade de Lula não se tornou realidade se mostraria, em seguida, mais uma prova do domínio do ex-presidente sobre seus comandados. Desde que Lula foi preso, Jaques Wagner passou a dizer que era hora de o PT apoiar outro nome da esquerda. O baiano viajou duas vezes a Curitiba para tentar convencer o chefe. Em uma das vezes, se ofereceu para ser vice na chapa encabeçada pelo candidato do PDT, Ciro Gomes. Na outra, colocou-se à disposição para ser vice do empresário Josué Gomes, filho de José Alencar, filiado ao PR de Valdemar da Costa Neto. Segundo seus interlocutores, Jaques Wagner fazia a leitura de que, após quatro eleições vitoriosas e com Lula preso, era o momento de a legenda compartilhar a hegemonia na esquerda, até para diminuir o tiroteio dos adversários e amainar o furacão que o partido já há algum tempo experimenta no Judiciário – o grande culpado, na visão petista, por todos os males. Mas não houve conversa. Lula não topou a ideia de Jaques Wagner.
A ideia do PT, a partir da orientação de Lula a Gleisi na sexta, era impedir a candidatura própria do PCdoB, mas sem o compromisso de que o partido ocupasse de imediato a candidatura de vice. O risco, porém, era alto àquela altura. A decisão dos comunistas de manter a candidatura de Manuela foi avisada ao PT em uma primeira reunião entre dirigentes dos dois partidos no domingo, também na sede do PCdoB. Gleisi então tirou, literalmente, uma carta da manga. Mostrou um texto escrito à mão por Lula em um papel de caderno em espiral. Nela, o petista indicava Haddad como seu vice e assumia o compromisso de que Manuela assumiria o posto assim que o imbróglio jurídico em torno de sua candidatura chegasse ao fim. No documento, segundo relatos de integrantes das duas siglas, Lula justificava que seria importante manter temporariamente um petista como vice, porque só um integrante do PT teria capacidade de expressar as suas ideias de maneira convincente. E Haddad seria esse nome.
Haveria ainda uma terceira reunião para comunicar o PT da decisão. Era fim de noite de domingo. Ainda desconfiados, os dirigentes do PCdoB pediram que os petistas dessem entrevistas anunciando o acordo de que Manuela seria vice assim que a questão jurídica de Lula fosse resolvida. O acordo foi fechado e encaminhado ao TSE a poucos minutos da meia-noite. Manuela não gostou, de imediato, da ideia. Incomodou-se com a situação de ser vice informal. Preferia manter a candidatura. Acompanhou à distância os debates do domingo. Estava no Rio Grande do Sul, com a família. Acreditava estar animando a militância e que seria importante marcar posição. Permaneceu em silêncio até a manhã de terça-feira, quando deu coletiva de imprensa ao lado de Haddad, já falando como vice. Até então, o máximo que fez foi postar na segunda-feira uma foto com Lula, acompanhada do poema “Mãos Dadas”, de Carlos Drummond de Andrade.
As articulações do ex-presidente na cadeia passam também pela definição do seu futuro próximo. Se seu plano eleitoral der certo, a conta a pagar será alta. Tanto é assim que, à boca miúda, os petistas já começam a falar no papel que ele teria depois da eleição, se o partido eventualmente ganhar a corrida de outubro. Preso ou solto, Lula continua mandando – há até quem acredite que, caso esteja em liberdade, ele deve ser nomeado ministro. A própria estratégia para deixar a cadeia passa pelo resultado das urnas. Se não conseguir sair pelas vias judiciais, Lula sonha com um indulto presidencial. Ele tem certeza de que Haddad ou Manuela D’Ávila teriam coragem suficiente para livrá-lo com uma canetada. Até nisso ele já pensou. Para não parecer uma medida exclusiva, destinada a beneficiá-lo, a ideia é que o indulto venha como parte de um “grande acordo nacional”, envolvendo também outras lideranças de grandes partidos. Para tanto, segundo um político aliado do PT enfronhado nas conversas que ocorrem Curitiba, seria preciso que o presidente eleito “retomasse o poder da política”. Na cabeça de Lula, a política é a chave para abrir a porta da sua cela.
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