Marcelo D. Sants/FramePhoto/Folhapress

Ele acha que pode apagar a história

Beneficiado por uma espantosa decisão do STF, Lula volta ao jogo político posando de inocente, como se os desvios bilionários do petrolão nunca tivessem existido. Entenda o que vem pela frente
12.03.21

Tão logo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou a carceragem da Polícia Federal em Curitiba, em novembro de 2019, depois de 580 dias preso, dirigentes do PT trocaram a bandeira do “Lula livre” pela campanha “Lula inocente”, com o objetivo explícito de lançá-lo à Presidência da República em 2022. Àquela altura, o sonho petista se via nas mãos de um Supremo Tribunal Federal que ainda tinha certo pudor em minar o combate à corrupção no Brasil. Nesta semana, em uma reviravolta meteórica, a corte deu a Lula as armas que ele tanto queria. Na segunda-feira, 8, o ministro Edson Fachin surpreendeu o mundo político e jurídico ao anular todas as condenações do ex-presidente na Lava Jato, tirando o petista do rol de fichas sujas e devolvendo a ele a chance de voltar a se candidatar. A decisão, extemporânea e estranha, acelerou o movimento que Gilmar Mendes preparava havia dois anos para atingir Sergio Moro, o maior algoz do ex-presidente. Na esteira de Fachin, Gilmar desengavetou o julgamento da suspeição do ex-juiz e carregou seu voto em favor de Lula com uma seleção de mensagens roubadas da força-tarefa do Paraná para atacar os procuradores e desqualificar o magistrado que condenou o petista. Não tardou para que Lula explorasse os fatos com a narrativa que lhe convém. Em um longo discurso na quinta-feira, 10, no qual se portou como rival do presidente Jair Bolsonaro na eleição do ano que vem, o petista se disse “vítima da maior mentira jurídica” da história do Brasil e começou a difundir a mentira que ele pretende espalhar rodando o país como candidato: “Estou satisfeito que tenha sido reconhecido aquilo que os meus advogados vêm dizendo há muito tempo: o presidente é inocente”.

Lula não foi absolvido nem pela decisão de Fachin, nem pelo julgamento da suspeição de Moro na Segunda Turma do STF, que ainda não foi concluído. Fachin decidiu anular todos os atos decisórios da 13ª Vara Federal de Curitiba envolvendo os processos de Lula, inclusive as condenações por corrupção e lavagem de dinheiro nos casos do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, por considerar que o foro onde Moro atuou até 2018 não tinha competência para julgar o petista. O argumento apresentado pelo ministro foi o de que, desde 2015, o Supremo tem delimitado o alcance da Lava Jato no Paraná aos casos vinculados a desvios de dinheiro da Petrobras, e que não ficou demonstrado nas denúncias que os crimes atribuídos a Lula tinham conexão com o petrolão. Fachin determinou o envio das quatro ações penais contra o petista para a Justiça Federal de Brasília, dando ao juiz que receberá os processos por sorteio a possibilidade de decidir se convalida as provas, as denúncias e até mesmo as sentenças proferidas contra o ex-presidente na 13ª Vara de Curitiba. No dia seguinte, contudo, ao votarem pela suspeição de Moro, Gilmar e Ricardo Lewandowski defenderam a anulação de todo o caso do tríplex – que pode ser estendida aos demais processos de Lula –, por entenderem que a suposta parcialidade de Moro contaminou toda a ação desde a origem. O julgamento foi interrompido com um pedido de vista do ministro Kassio Marques, com placar de 2 a 2 — Fachin e Cármen Lúcia já tinham votado contra a suspeição de Moro em 2018, antes de Gilmar reter o recurso de Lula em seu gabinete. Agora, a tendência é que o ministro indicado por Bolsonaro vote a favor de Lula. Cármen também deve alterar seu voto.

O roteiro traçado pelas duas decisões do Supremo – a de Fachin e a que está por vir – é o da velha impunidade que reinava no Brasil pré-Lava Jato. Os crimes de Lula devem prescrever antes de um novo julgamento em Brasília. Alguns deles, como o de corrupção no tríplex, no sítio e no Instituto Lula, podem caducar já em 2022, antes mesmo da eleição presidencial — como o ex-presidente tem mais de 70 anos de idade, o prazo da prescrição cai pela metade. Lula, então, se verá livre de uma nova punição, mesmo sem ter sido inocentado como ele apregoa. Em uma canetada, o STF o livrou da Lava Jato e retirou a maior barreira para suas ambições políticas. “Eu estou muito de bem com a vida. A Lava Jato desapareceu da minha vida”, declarou o petista na quinta-feira. As decisões do Supremo, contudo, podem desencadear um efeito cascata sem precedentes, com anulação de sentenças em série, beneficiando réus condenados em duas ou até três instâncias como Lula. A tese de que a 13ª Vara de Curitiba é incompetente para julgar os casos também é usada pela defesa de João Vaccari, para tentar livrar o ex-tesoureiro do PT dos 30 processos a que ele responde na Justiça Federal do Paraná. Paralelamente, os advogados tentam acesso à íntegra das mensagens hackeadas que Lewandowski deu aos defensores de Lula para sustentar que o dirigente petista também foi vítima de um conluio entre os procuradores da força-tarefa e Sergio Moro. Estratégia semelhante já está sendo planejada pela defesa do ex-ministro José Dirceu, que tem duas condenações em Curitiba por corrupção e lavagem de dinheiro. “Não tenho dúvida que a parcialidade mostrada com Lula foi igual com José Dirceu”, disse o criminalista Roberto Podval, advogado de Dirceu, o número 2 petista que deixou a cadeia no mesmo dia que Lula, depois que o STF revogou o entendimento que previa prisão imediata para réus condenados em segunda instância.

O desejo coletivo de reproduzir os feitos obtidos pela defesa de Lula no Supremo é alimentado pelos próprios ministros Gilmar e Lewandowski, que já abriram uma brecha na Segunda Turma para o uso informal dos diálogos roubados como prova – ou como eles preferem dizer, “reforço argumentativo” –, a fim de anular sentenças proferidas por Moro, sem que a corte tenha apreciado a autenticidade e a validade jurídica das mensagens hackeadas. Como Crusoé mostrou na edição 146, em fevereiro, foi Lewandowski quem deu acesso à íntegra do material apreendido com os hackers na Operação Spoofing para os advogados de Lula, por meio de uma liminar proferida em dezembro, após uma manobra da defesa petista para tirar a análise do pedido das mãos de Fachin. Desde então, trechos das conversas privadas selecionados pelo advogado Cristiano Zanin começaram a ser juntados em um outro processo no Supremo, com acesso público, ou seja, sem nenhum sigilo. Foi com base nesses recortes das mensagens que Gilmar Mendes transformou seu longo voto pela suspeição de Sergio Moro em duros ataques ao ex-juiz e aos procuradores liderados por Deltan Dallagnol. No palanque virtual armado na corte, Gilmar rasgou a toga para afirmar que a Lava Jato é o “maior escândalo judicial da nossa história” e que Moro atuou de forma criminosa ao lado dos procuradores, com o objetivo de “inviabilizar de forma definitiva a participação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na vida política nacional”.

Nelson Jr/SCO/STFNelson Jr/SCO/STFAo reabilitar Lula, na prática Fachin fez as pazes com sua origem
Além de convergir com Lula no combate à Lava Jato, Gilmar também tem em comum com o petista uma desenvoltura política que sobressai perante os pares. Durante o julgamento da suspeição de Moro na terça-feira, o ministro se apresentou como “insuspeito” porque, ao contrário de Fachin, Lewandowski e Cármen Lúcia, ele não chegou ao Supremo “pelas mãos do Partido dos Trabalhadores” — foi indicado em 2002 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. O ministro chegou a insinuar, apesar da imparcialidade que se espera de um magistrado e que ele cobra de Moro, que era apenas “adversário” do PT, e não inimigo. “Sempre soube distinguir o que é ser adversário do que é ser inimigo e tentava dizer isso aos próprios próceres do Partido dos Trabalhadores”, disse Gilmar, lembrando dos tempos em que era chamado de líder da oposição ao PT no Supremo. De fato, a inflexão de Gilmar que agora beneficia Lula coincide com o avanço da operação de combate à corrupção sobre alguns de seus muitos amigos políticos, como Aécio Neves, José Serra e Michel Temer. Antes do impeachment de Dilma Rousseff, o ministro elogiava a operação e chegou a endossar as ações de Moro, por exemplo, quando usou os áudios da conversa entre Lula e Dilma divulgados pelo juiz em 2016 para suspender a nomeação do ex-presidente como ministro da Casa Civil. A medida ajudou a precipitar o impeachment de Dilma – algo muito desejado àquela altura por Temer. Além de dar foro privilegiado a Lula, o ato era visto como a última carta de Dilma para tentar salvar seu governo. O ódio de Gilmar à Lava Jato ficou ainda mais evidente quando ele soltou no meio do julgamento sobre Moro a acusação de que há um “escândalo” que ainda não veio à tona na 7ª Vara Federal Criminal do Rio. É onde tramitam os casos da Lava Jato fluminense, com o juiz Marcelo Bretas, que já mandou prender empresários e políticos das relações de Gilmar – caso, de novo, do ex-presidente Temer.

Todo o movimento de Gilmar, que estava sendo maturado na corte enquanto a divulgação na imprensa de novos trechos das mensagens roubadas ia criando a atmosfera ideal para destruir a Lava Jato, foi precipitado pela decisão inesperada de Edson Fachin. Sem avisar nenhum colega, nem mesmo aqueles que defendem a operação, como o presidente Luiz Fux e o ministro Luís Roberto Barroso, o relator da Lava Jato anulou de forma monocrática as condenações de Lula com base em um habeas corpus que a defesa do petista tinha impetrado em novembro do ano passado — e que Fachin já tinha despachado para apreciação do plenário. Baseada em uma série de precedentes do Supremo, muitos dos quais o próprio ministro havia votado contra, a decisão foi vista por alguns analistas do Judiciário como uma tentativa de blindagem da Lava Jato. Isso porque no mesmo despacho ele tornou sem efeito outros 14 recursos de Lula. Entre eles estava exatamente o que questionava a suspeição de Moro. Em tese, essa “solução” adotada por Fachin manteria vivas as provas usadas contra o petista nas ações em Curitiba e evitaria que uma eventual decisão sobre a parcialidade do ex-juiz desencadeasse um efeito cascata em outros processos apreciados por ele, o que poderia ser enquadrado na doutrina do fruto da árvore envenenada. Mas o que aconteceu no dia seguinte, quando Gilmar decidiu ignorar a decisão de Fachin e retomar o julgamento da suspeição de Moro, suscitou dúvidas sobre a estratégia de Fachin. Se a ideia era conter Gilmar, não funcionou. Começou, então, a circular entre advogados o boato de que o relator da Lava Jato também teria aparecido nas mensagens hackeadas, o que não se provou até agora. O mistério persiste: ele tentou mesmo blindar a operação ou seria apenas um reposicionamento político do ministro, para realçar que, após quatro anos à frente da operação no Supremo, ele – que foi nomeado por Dilma e antes de virar ministro chegou a liderar manifestos em favor dela – não persegue o PT?

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéGilmar é o ponta de lança da operação contra a Lava Jato
Meia hora antes da sessão da Segunda Turma, na tarde de terça-feira, Fachin pediu a suspensão do julgamento e enviou o caso para a presidência do Supremo, buscando uma intervenção de Fux. O ministro, contudo, ouviu do presidente da corte que da forma como as coisas foram feitas, sem nenhuma conversa prévia, só restava a ele lutar com as próprias armas no colegiado presidido por Gilmar. O fato é que os desdobramentos do caso do ex-presidente Lula no Supremo nesta semana se tornaram um prato cheio para outros alvos e detratores da Lava Jato, que querem tirar proveito do momento de maior fragilidade da operação. O presidente da Câmara, Arthur Lira, por exemplo, que é aliado de Bolsonaro e já foi denunciado por corrupção no âmbito da operação, foi às redes sociais após a decisão de Fachin para dizer que Lula “pode até merecer” uma “absolvição”, mas “Moro, jamais”. Já está em curso na classe política – e aí entra um largo espectro, que vai de petistas a bolsonaristas, passando pelo Centrão de Lira e companhia – a estratégia de usar os eventuais e pontuais excessos cometidos pela Lava Jato para construir no imaginário coletivo a ideia de que o petrolão nunca existiu. O plano é colocar de pé a narrativa de que o maior escândalo de corrupção da história do país não passou de uma armação forjada pelos procuradores e por Moro, que pressionavam doleiros, empresários e políticos a delatar crimes que não aconteceram. Tudo, de preferência, acompanhado da anulação de todas as provas materiais obtidas com as quebras dos sigilos bancário, fiscal e telemático. “Há esforços, advindos de vários setores do país, de jogar por terra esse sistema de combate à corrupção que vem sendo aprimorado ao longo dos últimos 30 anos, justamente porque ele se mostrou eficiente e rompeu com a impunidade dos crimes de colarinho branco praticados pela elite política e econômica. Se isso for adiante, corremos o risco de virar um pária internacional“, afirma Fábio da Nóbrega, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República.

Quem mais sai fortalecido da manobra em curso é o ex-presidente Lula. No discurso minuciosamente calculado na quarta-feira, o líder petista já se colocou como candidato ao Planalto, embora não tenha assumido isso abertamente, e se posicionou no polo oposto ao do atual presidente. Bateu insistentemente no “desgoverno” diante da pandemia do coronavírus, vinculou Bolsonaro às milícias por causa da política armamentista e afagou militares e o mercado dizendo que ambos foram beneficiados pelo seu governo, com investimentos nas Forças Armadas e com o aumento da renda da população. Não abandonou, porém, algumas bandeiras históricas da esquerda, como a vinculação do Banco Central ao governo e o veto a privatizações. Apesar dos ataques à Lava Jato e das críticas à imprensa, o petista tentou passar a imagem de conciliador e disse que vai rodar o país para falar com políticos para formar uma aliança que possa derrotar Bolsonaro. O cenário não poderia ser mais propício. Até antigos desafetos, como o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, elogiaram a postura. “Você não precisa gostar do Lula para entender a diferença dele para o Bolsonaro”, escreveu Maia, que deve trocar o DEM pelo PSDB. O “indulto” eleitoral conferido ao máximo chefe petista pelo Supremo fez com que o PT rebaixasse mais uma vez Fernando Haddad a plano B. Derrotado por Bolsonaro em 2018, o ex-ministro havia lançado sua pré-candidatura a 2022 no mês passado, por ordem do próprio Lula. Agora, com Lula “livre da Lava Jato”, deve ser ainda mais coadjuvante.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMoro: a suspeição do ex-juiz tende a ser confirmada pela Segunda Turma
Dentro do PT, o plano é que Lula lidere a articulação com partidos de esquerda e de centro, mas deixe para oficializar sua candidatura no início do ano que vem. O ex-presidente prefere aguardar os desdobramentos dos seus processos da Lava Jato em Brasília e verificar como estará seu índice de rejeição nos próximos meses. A estratégia, como ele admitiu, será, sim, polarizar com Bolsonaro. “O PT não pode ter medo de polarizar. O PT tem que ter medo é de ficar esquecido”, disse. A volta de Lula ao jogo provocou reações imediatas entre os adversários. Bolsonaro, por outro lado, gostou de ter outra vez seu inimigo preferido, o que sustenta sua retórica de ameaça comunista. E deve duelar com o ex-presidente no campo populista, com a vantagem de ter hoje o poder da caneta, o que representa um risco às finanças do país. Já o governador de São Paulo, João Doria, que conseguiu emergir como antítese de Bolsonaro durante a pandemia, se viu obrigado a acelerar o plano de se viabilizar como presidenciável do PSDB ainda neste ano, para não perder terreno para Lula na oposição a Bolsonaro. Esse é também um dilema de Ciro Gomes, que voltou a trocar farpas com a cúpula petista nesta semana e pode, novamente, sucumbir diante da polarização. O apresentador Luciano Huck, por sua vez, foi cobrado por aliados a se decidir logo se abandona os vultosos contratos de publicidade e com a TV Globo para se aventurar na política, antes que a campanha violenta entre dois polos elimine a chance de um terceiro nome prosperar. Até outubro de 2022 ainda tem muito chão, mas quem não começar a arregimentar suas tropas desde agora ficará pelo caminho. Além disso, como vem dando certo o estratagema dos enrolados de sempre para apagar os escândalos de que foram parte, a tendência é que a guerra seja ainda mais suja.

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