RuyGoiaba

O brasileiro é um Sísifo com Covid

12.03.21

Décio Pignatari — que não é aquele jurado do Show de Calouros — costumava dizer que o surrealismo não tinha dado certo no Brasil porque o país já era surrealista. Aquilo que espantava os franceses nas obras de André Breton e similares era fichinha perto do pão de cada dia dos abençoados habitantes do Bananão. Tenho para mim que coisa parecida ocorre com aquela ideia de “absurdo” de que Albert Camus falava em O Mito de Sísifo, livro de 1942 cujo título é um trocadilho esperto — em francês, soa igual a “o mito decisivo”.

Existencialista que pegava geral, por ser obviamente mais gato que o zarolho Jean-Paul Sartre, Camus começa esse livro dizendo que o suicídio é o único problema filosófico “realmente sério” (ecoando aquele monólogo de Hamlet que até quem nunca leu Shakespeare conhece, o tal do “to be or not to be”). O ser humano é arremessado a um mundo desconexo e ininteligível — ou seja, absurdo. Em busca de sentido e clareza, faz perguntas como “por que vivemos?” — que, assim como “quais os números vencedores da Mega-Sena?”, jamais serão respondidas. A questão principal é: “Devemos persistir em viver uma vida por vezes repleta de sofrimentos, em vez de escolher suprimi-la pelo suicídio?”.

A resposta do escritor franco-argelino é famosa pelo otimismo: sim, devemos. É aí que entra Sísifo, o personagem da mitologia grega condenado pelos deuses a rolar uma pedra até o alto de uma montanha apenas para vê-la cair e ter de empurrá-la para cima de novo — e de novo e de novo, por toda a eternidade. Camus vê no personagem uma espécie de herói absurdo que, apesar de condenado a uma tarefa sem sentido, odeia a morte e vive ao máximo a vida que lhe foi concedida (é nesse ponto que ele diria “pegue a visão”, se fosse um dos confinados do BBB). E conclui o livro assim: “É preciso imaginar Sísifo feliz”.

O escritor visitou o Brasil em 1949, oito anos antes de ganhar o Nobel de Literatura e quase 11 antes do acidente de carro que o mataria aos 46 anos, em janeiro de 1960. Como mostram seus diários de viagem, ele odiou basicamente tudo, com raríssimas exceções (uma conversa com Manuel Bandeira, as canções de Dorival Caymmi). Sem nenhuma base biográfica, e apenas porque o argumento serve a este meu texto, chuto que Camus se deparou no Brasil com um absurdo ainda mais absurdo que o descrito em O Mito de Sísifo, mas completamente naturalizado: já era o país que, 70 anos depois, seria descrito com perfeição por aquele meme “crime ocorre, nada acontece, feijoada”.

O brasileiro hoje é um Sísifo com Covid, rolando até o alto da montanha a mesmíssima pedra de 2018. Aliás, não é a mesma: é pior, porque agora a perspectiva é ter de escolher entre o ladrão (em vez do poste do ladrão) e o genocida, em meio a uma pandemia que está matando diariamente mais de 2.300 pessoas. Com gente querendo nos convencer de que o ladrão é lindo, maravilhoso e estadista — comparada ao Imbecil Lombrosiano do Planalto, até a unha do meu dedo mínimo do pé esquerdo é “estadista” — e dando aquele salto retórico digno de Nadia Comaneci, de “Sergio Moro não tem competência (ou imparcialidade) para julgar Lula” para “o que a Lava Jato apurou jamais aconteceu”. Como disse o economista Daniel Sousa, ainda havemos de devolver o dinheiro roubado à Odebrecht, com um lacinho e um pedido de desculpas. E, acrescento eu, transferir o excelente A Organização, livro da repórter Malu Gaspar sobre a corrupção na empreiteira, para a prateleira das obras de ficção.

Que “imaginar Sísifo feliz” o quê, Camus. Como dizia (naquela charge que citei aqui) o profeta do apocalipse com a plaquinha “isto não vai acabar nunca” ao outro profeta com a placa “o fim está próximo”: seu otimismo me enoja.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Nesta semana, a concorrência foi acirrada. Mas meus candidatos são Edson Fachin descobrindo agora, depois de quatro anos, que a 13ª Vara Federal de Curitiba era incompetente para julgar Lula (fique à vontade para inserir aqui sua piadinha sobre a “incompetência da vara”) ou o Partido Novo decidindo que, agora sim!, é oposição ao governo Bolsonaro, essa gestão liberal até debaixo d’água cheia de milicos intervencionistas. Na verdade, goiabice da semana é pouco para descrever: os dois deveriam disputar o Troféu Rubinho Barrichello.

Eduardo Knapp/FolhapressEduardo Knapp/FolhapressNa verdade mesmo, a comparação com Fachin e o Novo é sacanagem com Rubinho

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  1. goiaba, vendo aqui que vc não tem acompanhado o excelente trabalho na câmara, dos 8 deputados do Novo... e se não conhece, deu mancada na goiabice n.2

  2. Rui, cê tá forçando a barra, como sempre, com essa coisa de haver um genocida com nome de Bolsonaro. Bolsonaro decretou lockdowns, toques de recolher, soldou portas de estabelecimentos comerciais, prendeu pessoas pelos " graves crimes " de tentarem trabalhar, ir a parques ou praias? Bolsonaro decretou o fique em casa, a economia a gente vê depois. Bolsonaro pagou por respiradores superfaturados e não os receber e pagou fortunas por Hospitais de Campanha e os desmontou?

    1. Mas é justamente por ele não ter feito nada disso para conter a Covid e ter feito tudo para aumentar o contágio - dando exemplo de que pode aglomerar, não precisa usar máscara, é gripezinha, mimimi, frescura - é que ele é genocida. Usou o poder de influência dele pra fazer mais gente morrer à toa. Entendeu agora?

    2. Bolsonaro não vacina a população, amigo. Simples assim. Quer acabar com o Lockdown oportunista (oportunista, sim!) dos governadores? Nos dê vacina!

  3. Infelizmente, os fatos, fotos e feitos no Brasil 🇧🇷 atual são cotidianamente um atestado à veracidade de viagens ao futuro de eminentes filósofos e brilhantes escritores do passado... Texto perfeito, Goyaba, como de hábito!

  4. Excelente artigo. O melhor que leio ha anos. Sua analise e comparação do brasileiro com Sisifo, arrependido e infeliz, condenado a "isso nao vai acabar nunca" é um impecavel texto jornalistico. Tem humor e crueldade. parabéns,Rui Goiaba

  5. Nos esforçamos para levar nossa pedra morro acima mas daí vêm os FDPs do executivo+legislativo+judiciário enfiam o pé na mesma e ela rola morro abaixo. Difícil rir disso.

  6. 1.1 - Um dos problemas do Brasil na política, é que temos o gado irracional preto, do Bozo, e o gado irracional vermelho, do Lula. Para o gado irracional, tanto de um lado, como do outro, o que menos importa são os fatos e a verdade. Esses gados idolatram as suas vaquinhas sagradas e pronto. Para eles Lula não roubou e o Bozo não é responsável por nenhuma morte por covid. Talvez a solução para o Brasil, é termos um gado do meio, verde e amarelo.

    1. 1.2 - O gado verde e amarelo vai adotar uma visão de Poliana com o candidato da 3a Via. Mas apesar de propor essa aberração, eu mesmo não acredito nela. Eu faço parte da maioria dos brasileiros. E o interessante é que nós, a maioria, somos vencidos pela minoria. Nossas decisões são pautadas buscando um candidato perfeito. Não conseguimos idolatrar um político. Nossa força em outras decisões que tomamos no dia a dia, é nossa fraqueza na escolha política.

  7. O resultado das eleições para presidente vai revelar que ao brasileiro não havia outea saída: se escapasse da bst cairia na mrd

  8. a ironia bem elaborada, mas não dá para achar graça por ser a realidade nua e crua. Dá arrepios...

  9. Ruy Goiaba, sua vida anda muito mole ultimamente. Toda semana o Bananão te oferece um menu de situações bizarras q teimam em se repetir por aqui. Desse jeito sua imaginação vai atrofiar... adorei o texto, como sempre!

  10. Sempre muito bem escrito... parabens goiaba Boas colocaçoes e sempre misturando literatura e historia nos dias atuais

  11. Essa semana assisti jornalistas experimentados, que no passado dignificaram a profissão, classificarem o discurso do larápio como coisa de um estadista. A exceção honrosa foi o SARDENBERG. Independente do veículo de comunicação que se utilizava, ficou do lado dos fatos. Ainda bem que a CRUSOE existe.

  12. Rui Goiaba, sou Sisifo..e sifu...sem nenhuma esperança ...tristeza..depressão...horror ..estamos no fundo do fundo do poço esmagados pelos lulas Bolsonaros e seus capangas...sem perspectiva...acho que vou me mudar para o Paraguai.lá pelo menos tem gente que LUTA para tirar políticos

  13. E pensar que o sujeito escritor deste artigo , após grande esforço mental , produziu com ilustre sabedoria um monte de coisas muita engraçadas kkkk . Tenta outra vez , meu caro , um dia vai ficar bom.

  14. Ganhar o Troféu Rubinho Barrichello eles não conseguem. Barrichello é cidadão, honesto, trabalhador e um dos maiores esportistas vencedores que o Brasil tem. Não merece ser achincalhado por ninguém. Se você desconhece a história de uma pessoa, não use o nome dela indevidamente.

  15. Mr. Guava, Só você para referenciar Camus, Sartre, Shakespeare para nos descrever precisamente: “Crime ocorre, nada acontece, feijoada.” Um “detalhe” que talvez o Sr. não tenha ainda vislumbrado: não vamos só devolver o dinheiro roubado aos corruptos com um lacinho, mas corremos risco (mesmo) de ter de indenizá-los por “erro” do Estado.

    1. Acho que é isso que tem que acontecer. Porque soltar só Lula? Solta logo todo mundo e manda a Petrobras devolver o dinheiro que tinha sido recuperado, junto com um pedido de desculpas. Se é para esculhambar, façam logo o serviço completo...

  16. gilmar mendes em seu alemão perfeito explica "EIN GRAND CONFUTZION". Se algum estrangeiro nos elogiar ou é muito inferior a gente , ou está mal intencionado.ponto.

  17. Como NÃO disse Charles de Gaulle: "Le Brésil n'est pas un pays serieux".... Nem "o único problema filosófico realmente sério" sobrevive à uma"live" presidencial com a leitura de uma carta suicida (ainda se fosse autoral).

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