Divulgação"O Texas relutou mais em impor o fechamento do comércio. Na Califórnia, os colégios ainda estão fechados"

O duelo dos estados titãs

O cientista político Ken Miller explica como o republicano Texas e a democrata Califórnia tentam moldar a política americana e compara o desempenho dos dois governos, com políticas diametralmente opostas, no combate à pandemia de Covid
12.03.21

Se a Califórnia fosse um país independente, teria a quinta maior economia do mundo, atrás de Estados Unidos, China, Japão e Alemanha. Se o Texas fosse contado separadamente, ficaria em nono nessa lista, à frente do Brasil. Os dois estados americanos foram parte do Império Espanhol e contam basicamente com a mesma porcentagem de latinos na população, cerca de 40%. No entanto, trilharam caminhos totalmente distintos na política nas últimas duas décadas. A Califórnia pintou-se com o azul dos democratas e o Texas virou um reduto vermelho, a cor dos republicanos.

Com a chegada da pandemia, os dois estados enfrentaram o problema de formas distintas. Recentemente, o governador do Texas, Greg Abbott, anunciou com orgulho que as máscaras já poderiam ser guardadas e que todos os negócios seriam reabertos em breve. A California, por sua vez, tem adotado medidas mais restritivas desde o início da pandemia. “Cada um desses dois estados tem atuado de acordo com a sua orientação política”, diz o cientista político Ken Miller, de 57 anos, professor de política americana na Universidade Claremont McKenna.

Curiosamente, as medidas em direções opostas não fizeram tanto efeito no número de casos se levado em conta o tamanho da população de um estado e de outro. “Isso é um mistério”, diz Miller. Mas a Califórnia registrou menos mortes, segundo ele, por ter um sistema de saúde mais robusto e com capacidade para atender os pobres. No ano passado, o californiano Miller lançou um livro, Texas vs. California, em que compara a história, a política e a economia dos dois estados e mostra como eles tentam moldar o destino dos Estados Unidos. A seguir, a entrevista que ele concedeu a Crusoé.

Como o Texas e a Califórnia estão combatendo a Covid?
Cada um desses dois estados tem atuado de acordo com a sua orientação política. O Texas relutou mais em impor o fechamento do comércio e em criar regras, como obrigar o uso de máscaras. Na área da educação é que a abordagem foi mais distante. O Texas foi muito lento em fechar as escolas e rápido demais em reabri-las. Na Califórnia, os colégios ainda estão fechados. Isso acontece principalmente por causa da força dos sindicatos de professores públicos. Nesse estado, o governo estadual é muito controlado pelas organizações de trabalhadores. Também por isso, o fechamento de restaurantes, lojas e atividades foi muito mais rigoroso que no Texas. Um exemplo disso está no mundo dos esportes. O campeonato de baseball World Series teve de ser jogado no Texas, em vez da Califórnia, apesar de o Los Angeles Dodgers estar competindo. A mudança ocorreu porque a Califórnia não autorizou partidas com plateia, mas o Texas sim. A mesma coisa se deu com o futebol americano. O Rose Bowl, do qual equipes universitárias participam em Pasadena, na Califórnia, foi transferido para o Texas, onde aglomerações têm sido permitidas e poucas pessoas estão usando máscaras. 

A população da Califórnia se beneficiou dessas medidas mais duras?
Em termos de casos, o número de mortes para cada 100 mil habitantes desde o dia 21 de janeiro de 2020 foi de 8.796, segundo o Centro de Controle de Doenças (CDC). Não é um número muito menor que o do Texas, que teve 9.119 casos para cada 100 mil habitantes. 

Arquivo pessoalArquivo pessoal“Com a Covid, a parte da Califórnia que estava crescendo, como o Google e a Apple, seguiu o seu curso”
Como o sr. explica que o número de casos seja tão parecido?
Isso é um mistério. A Califórnia tentou conter o vírus impondo restrições muito mais fortes do que o Texas, mas não teve um sucesso muito maior. É por isso que muitos californianos sentem que estão atravessando “o pior dos dois mundos“. Eles enfrentaram meses de restrições e fechamentos e as crianças não puderam ir para as escolas, mas apesar disso eles ainda estão registrando muitos casos de Covid. Isso tem gerado muita frustração.

E quanto ao número de mortes?
Foi um pouco maior no Texas: 148 em 100 mil, para 131 na Califórnia (no Brasil, a taxa é de 122). Uma possível razão para isso é que o Texas não tem um sistema de saúde tão robusto. As pessoas pobres têm menos acesso a hospitais financiados pelo governo do que as que vivem na Califórnia. Essa é uma das explicações da taxa de mortalidade maior no Texas. 

A economia texana está se saindo melhor do que a californiana porque permite aglomerações?
Não muito. Antes da pandemia, os dois estados estavam indo muito bem. A Califórnia estava progredindo com os trabalhadores altamente escolarizados e as empresas de tecnologia de ponta. O Texas estava atraindo muitos trabalhadores de classe média com a criação de muitas vagas. Várias empresas mudaram suas sedes e indústrias para lá. A Toyota saiu de Los Angeles e foi para Dallas. A Hewlett Packard, uma das gigantes do Vale do Silício, mudou-se para Houston. São modelos econômicos diferentes, que estavam funcionando cada um do seu jeito. Com a Covid, a parte da Califórnia que estava crescendo, como o Google e a Apple, seguiu o seu curso. O que não se deu bem foi o comércio que não está na internet. Lojas pequenas e restaurantes tiveram problemas, porque as pessoas não podem frequentá-los. O Texas também foi afetado nesse último ponto, embora menos. O efeito maior ocorreu em relação à economia texana ligada ao petróleo, que sofreu muito com a redução no transporte, especialmente o aéreo. Então, os dois estados foram muito afetados economicamente, e só estão atravessando a crise graças a uma gigantesca ajuda de dinheiro do governo federal. Isso poderá trazer outros riscos, como aumento da dívida pública no longo prazo. Mas, pelo menos, esse auxílio tirou a economia da depressão. 

Em seu livro, o sr. fala que a população do Texas está crescendo muito com a chegada de americanos de outros estados, inclusive da Califórnia. Como explicar esse fluxo?
As casas no Texas são mais baratas e o custo para sustentar uma família lá é menor. Na Califórnia, é preciso pagar mais impostos para diversas coisas. Além disso, há muita legislação ambiental em diversos níveis da administração pública, o que torna mais difícil construir novas casas. Como a oferta de imóveis não aumenta há décadas, o preço subiu. Muita gente de classe média não pode pagar para morar em um lugar caro como a Califórnia. 

Qual é a importância do Vale do Silício para o modelo econômico da Califórnia?
Tradicionalmente, o estado tinha vários setores que fomentavam a economia. Havia fábricas de carros e de aviões, que hoje desapareceram. A única empresa que fabrica automóveis na Califórnia atualmente é a Tesla, de Elon Musk, de veículos elétricos. Mas isso não vai durar muito. Musk disse que já decidiu mudar sua fábrica para o Texas, porque é mais barato e há menos regulações. Assim como o setor automobilístico, vários outros encolheram na Califórnia. Enquanto isso, o setor de tecnologia alcançou um incrível sucesso. O Vale do Silício explodiu em crescimento, em produtividade e em riqueza na última geração. Empresas como Facebook, Google e Apple nasceram do nada e hoje estão entre as mais valiosas do mundo. Isso gerou uma enorme riqueza para as pessoas que trabalham nesse setor na Califórnia. Elas proporcionam uma arrecadação enorme para o estado, que com isso pode oferecer serviços públicos melhores. 

DivulgaçãoDivulgação“O Texas estava atraindo muitos trabalhadores de classe média”
Como o Texas se tornou um estado predominantemente republicano e a Califórnia, democrata?
Os dois estados foram possessões espanholas na América do Norte. Depois, tornaram-se parte do México. Ambos foram incorporados aos Estados Unidos quase na mesma época. A grande diferença é que o Texas foi um estado escravocrata antes da Guerra Civil americana (1861-1865). A Califórnia não foi escravocrata e participou do movimento para abolir essa chaga. É uma diferença importante, que teve consequências depois. Na última geração, todos os estados americanos se dividiram em linhas partidárias. As partes do país que eram mais conservadoras acabaram se movendo para o Partido Republicano. Isso inclui o Texas. Mesmo regiões perto da fronteira, com alta população de latinos, são majoritariamente conservadoras nas questões sociais. Eles querem mais controle em relação a imigrantes e são contra a organização de trabalhadores em sindicatos. Também são contra impostos muito altos. Os estados que eram mais progressistas, por outro lado, aproximaram-se do Partido Democrata. 

O Texas poderá se tornar um estado democrata no futuro?
Há mais de uma década se prevê que o Texas se tornará um estado democrata por causa das mudanças demográficas. Mas o Texas tem quase a mesma porcentagem de hispânicos que a Califórnia, cerca de 40%. É por isso que as pessoas pensam que, como a Califórnia se tornou democrata quando ficou mais diversa, a mesma coisa um dia vai acontecer com o Texas. O que meu livro mostra é que não é assim tão simples. Não se pode olhar apenas para a demografia. Há outros fatores em jogo. Os democratas são contra os combustíveis fósseis e o gás de xisto e querem uma moratória contra novas explorações de recursos fósseis em terras federais. Mas isso representa grande parte da economia do Texas. Outro ponto são as armas. Os texanos são muito favoráveis a elas. Acham que possuir uma é um direito constitucional inquestionável. Por tudo isso, será difícil para os democratas ganharem o Texas, mesmo que a demografia indique que isso deveria acontecer.

Na eleição de 2020, vários projetos de lei progressistas foram rejeitados nas urnas da Califórnia, como a proposta de adotar novamente as cotas nas universidades e entidades públicas. Como explicar isso?
Um pouco antes, os políticos democratas acharam que a eleição seria um bom momento para buscar aprovar novas leis, inserindo questões nas cédulas de votação. Estavam confiantes de que os californianos iriam votar em massa porque eles odeiam Donald Trump. O democrata Joe Biden ganhou de Trump com uma vantagem de 30 pontos percentuais na Califórnia. Os democratas também mantiveram uma grande maioria no Legislativo estadual. É praticamente o estado de um partido, com controle total dos democratas. Mas os eleitores rejeitaram algumas propostas que os deputados estavam cozinhando havia muito tempo. Minha impressão é que há certo viés conservador entre vários eleitores californianos. Eles não querem aumentos de impostos, por exemplo. É uma lição para Biden. Ele agora sabe que não pode se mover muito para a extrema-esquerda, porque pode encontrar resistência entre eleitores de seu partido. Isso já aconteceu antes com Bill Clinton (1993-2001), quando ele tentou implementar o atendimento de saúde universal no seu primeiro ano no cargo. 

Como a democrata Califórnia e o republicano Texas têm influenciado a política nacional dos Estados Unidos?
Ambos estados produziram vários presidentes. O democrata Lyndon Johnson (1963-1969) era do Texas. Depois, o estado emplacou George H. Bush (1989-1993) e seu filho George W. Bush (2001-2009), dois republicanos. Da Califórnia, todos foram republicanos, o que é interessante porque hoje é um estado democrata: Herbert Hoover (1929-1933), Richard Nixon (1969-1974) e Ronald Reagan (1981-1989). Nunca um californiano democrata se tornou presidente. A vice-presidente atual, Kamala Harris, é uma democrata e é da Califórnia. Muita gente pensa que ela poderá ser a primeira presidente democrata proveniente do estado. 

E além disso?
Quando o democrata Barack Obama (2009-2017) foi presidente, o Texas estrategicamente entrou com processos nas cortes federais para bloquear políticas nacionais em questões ambientais e de imigração. Foram muito bem-sucedidos nisso. Quando Trump se tornou presidente, em 2017, a Califórnia usou a mesma estratégia para bloquear políticas de Trump nas áreas de energia, imigração e aborto. Não acho que seja muito saudável os estados entrarem na Justiça contra o governo federal, em vez de cooperar com Washington, mas isso se tornou parte do nosso polarizado sistema político.

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500
  1. Ah é? Vejam os números hoje??? Depois que o Texas abriu TUDO e retirou a obrigatoriedade da máscara, a contaminação CAIU 42%!!!!!!

  2. Essa matéria é muito interessante, Duda. Por que a Califórnia tão desenvolvida, sempre precisa de recursos federais para sanear suas contas públicas? Poderia falar mais sobre isso em outras matérias? Muito obrigada!

  3. Boa entrevista. Enquanto isso, no Bananão, no meio da maior crise sanitária da história recente, estamos discutindo a entrega da Presidência a um populista de esquerda e um populista de direita.

  4. Ou seja: para segurar o Covid, antes de se obrigar a parar tudo, ou não, o que salva mesmo são HOSPITAIS. E isso ninguém comenta, né... mesmo quando se vê hospitais lotados.. oq nem é de hoje... hospitais lotados vem desde sempre...

  5. Que tal se usasse os mesmos parâmetros para comparar estados como SP ou RS com Minas (governada pelo bolsonarista Zema) ou Goiás (governado pelo bolsonarista Caiado)

    1. Não viaja não, Zema não é Bolsonarista.

  6. E aí, Mainardi? Como ficou comprovado as restrições não funcionaram para evitar a propagação da Covid na comparação entre o Texas e a Califórnia. Será um mistério?

    1. Márcio, lugar estranho esse que você habita. Aqui na vida real nunca vi boi questionando. Só boi comendo apenas o que lhe dão, vivendo conforme a vontade de seu dono e tomando drogas obrigatórias.

    1. O Bolsonaro teve o seu experimento macabro em Manaus. Lá os bolsonarista incentivaram o não uso de máscaras e o não distanciamento, contando com a cumplicidade de um prefeito e governador bolsonarista. O resultado desse experimento: pessoas morreram por falta de cilindros de oxigênio. Então antes de escrever comentários estúpidos, pense. Mas o gado irracional preto, não pensa. Para esse gado, o Bolsonaro está certo em tudo. Já do outro lado, o gado irracional vermelho, acha q o Lula é inocente.

  7. Excelente entrevista. No Brasil o antagonismo é regional: o sul, centro-oeste e São Paulo de direita, o nordeste petista. Minas e Rio estados pêndulo. Mas a coisa anda ficando confusa.

  8. Olha.. quem de nós tem interesse em saber das opiniões sobre dois estados norte americanos? Será que os temas sobre a gravíssima situação da conjuntura brasileira estão esgotados? Não consegui entender, por mais que me esforce, qual o interesse dessa entrevista, para os leitores da crusoé. Sinceramente, não entendi. Apscosta/df

    1. Ué mesmo. Se pelo menos não estivéssemos submetidos aos mesmos autoritarismos que os americanos no combate à nova doença. Bem vindo ao mundo globalizado

  9. Excelentes informações e reflexões, trazem luz para os impasses atuais. Parabéns Crusoé, continue na toada, trazendo subsídios de qualidade.

    1. Patriota, energia nuclear é a única alternativa aos fósseis de quem não vive no mundo de faz de conta inventado por bilionários aos seus ativistas. Não importa se a queima acontece dentro do veículo ou não. A origem da energia é a mesma.

    2. E o Texas vai adotar a marca TEXACO, porque agarra-se nos combustíveis fósseis, com data para serem abandonados.

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