RuyGoiaba

Joseph Brodsky contra o Mal

19.03.21

Um truque antigo de colunista — alguém que precisa preencher todo dia, toda semana ou seja lá qual for a periodicidade o espaço que lhe foi destinado num veículo de imprensa — é citar extensamente textos de outros escritores ou jornalistas, para que seu próprio texto não fique com o tamanho de um haicai (no que dependesse de mim, eu publicaria o meme “crime ocorre, nada acontece, feijoada” todo dia aqui no lugar da coluna, e ela sairia sempre atual). Recentemente, fiz com que Franz Kafka, George Orwell e Luis Fernando Verissimo — todos devidamente creditados, é claro — escrevessem bons pedaços da coluna por mim, o que obviamente melhorou o nível desta bagaça.

Outra boa opção é a longa lista de adjetivos, que evitarei aqui porque foi usada faz pouco tempo, com sucesso, por Ruy Castro e Mariliz Pereira Jorge ao citarem as excelsas qualidades de Jair Bolsonaro (por incrível que pareça, ainda ficaram faltando algumas qualificações, como “vagabundo” ou “Imbecil Lombrosiano”). É expediente literário consagrado, aliás — François Rabelais, o grande autor de Gargântua e Pantagruel, passa grande parte de um capítulo descrevendo a troca de insultos entre vendedores de bolo de países rivais: “parlapatões, desdentados, ruços pacóvios, vagabundos, caga-na-cama, brutamontes, marotos, desordeiros, beberrões, fanfarrões, vilões, patifes, ladrões, cretinos, gente sem eira nem beira, boiadeiros de bosta e pastores de merda e outros epítetos difamatórios”. (Um professor de roteiro de hoje em dia talvez torcesse o nariz e dissesse que isso não ajuda a “avançar a trama”. Bem, não mesmo — e daí?)

Hoje, a vítima da minha “apropriação de aspas” — e veja que consegui escrever dois parágrafos longos antes de chegar a ela: diga se não é um narigão de cera bonito — será o grande poeta e ensaísta Joseph Brodsky, Nobel de Literatura em 1987, nascido na então Leningrado (hoje São Petersburgo) em 1940, morto em Nova York no início de 1996 e sepultado na ilha de San Michele, em Veneza — cidade que amava e sobre a qual escreveu um belíssimo livro, Marca d’Água.

Brodsky ficou conhecido no Brasil não por sua poesia, mas como caso político: na URSS de 1964, foi denunciado como “pornográfico” e “antissoviético”. Preso por “parasitismo social” (era tradutor free-lance, não filiado ao sindicato) acabou condenado a cinco anos de trabalhos forçados, cortando lenha e carregando esterco. Sua história foi citada em Liberdade, Liberdade, a peça de Millôr Fernandes e Flávio Rangel encenada com sucesso nos anos 60. Finalmente, em 1972, o regime comunista acabaria por expulsar Brodsky — que, reza a lenda, deixou o país levando na mala uma máquina de escrever, duas garrafas de vodca e um volume de poemas de John Donne, para não retornar nunca mais.

Instalado nos EUA depois de uma curta passagem por Viena, o poeta passou a lecionar em várias universidades do país e obteve cidadania americana em 1977. Sete anos depois disso, fez diante da turma de 1984 do Williams College o melhor discurso de formatura de todos os tempos — está na coletânea de ensaios Menos Que Um, lançada no Brasil há anos pela Companhia das Letras e, até onde sei, jamais reeditada. A tradução feita por Sérgio Flaksman para esse discurso, porém, é fácil de encontrar na internet: procurem por Um Discurso Inaugural no Google e garanto que vocês não se arrependerão. Começa assim:

“Por mais ousados ou cautelosos que vocês decidam ser, no decorrer de suas vidas estão destinados a entrar em contato físico direto com aquilo que é conhecido como o Mal. Não estou me referindo aqui a um elemento do romance gótico, mas, para dizer o mínimo, a uma realidade social palpável que vocês não têm como controlar (…) A estrutura da vida é tal que aquilo que vemos como o Mal é capaz de uma presença bastante difundida, mesmo porque tem a tendência de aparecer sob o disfarce do bem. Vocês nunca irão vê-lo atravessando a soleira de suas portas e se anunciando: ‘Olá, eu sou o Mal!’”.

E prossegue: “A defesa mais segura contra o Mal é o extremo individualismo, a originalidade de pensamento, a singularidade, e até mesmo — se quiserem — a excentricidade. Ou seja, algo que não possa ser fingido, falsificado, imitado; algo que nem mesmo um impostor experiente seja capaz de copiar. Alguma coisa, em outras palavras, que não possa ser compartilhada, como, por exemplo, sua própria pele: nem mesmo por uma minoria. O Mal tem loucura pela solidez. Ele sempre procura os grandes números, o granito confiante, a pureza ideológica, os exércitos bem treinados e os orçamentos bem equilibrados. Presumivelmente, sua atração por essas coisas tem a ver com sua insegurança inata, mas, de novo, esta compreensão nos vale pouco como consolo quando o Mal triunfa. E ele triunfa: em muitas partes do mundo, e dentro de nós mesmos”.

O poeta recorre à Bíblia para resgatar o sentido original da passagem sobre “oferecer a outra face” — que está longe do clichê da “resistência passiva” e mais próxima de algo como “bata mais, canalha, você não me derruba”. E narra em terceira pessoa, sem se identificar, sua experiência numa “competição socialista” no campo de trabalhos forçados, quando ele passou doze horas seguidas rachando lenha, muito além do que os guardas do regime haviam demandado.

Não vou citar o discurso todo aqui: insisto em que vocês o leiam. Mas deixo um dos parágrafos finais como o trecho que mais me toca hoje, neste Brasil em meio ao colapso da pandemia e à barbárie: “O confronto [com o Mal] sempre ocorre em termos individuais, de um contra um. É sempre a sua pele, a sua túnica e a sua capa, e suas pernas, que terão que sofrer as consequências. Aconselhar, quanto mais insistir, sobre a maneira como cada um deve usar essas propriedades é, se não inteiramente errado, pelo menos indecente. Tudo o que pretendo fazer aqui (…) é apagar de suas mentes um clichê que tanto mal fez a tantos e rendeu tão pouco. Também gostaria de instilar em vocês a ideia de que, enquanto continuarem tendo suas peles, suas túnicas, suas capas e seus pés, ainda não foram derrotados, por menores que sejam suas possibilidades”.

Um gaúcho diria “não está morto quem peleia”, e Elton John cantaria I’m Still Standing: são todas variações do mesmo recado essencial. Estamos na luta, ainda que seja como o Cavaleiro Negro daquele filme do Monty Python.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Toda semana há goiabices aos borbotões, mas hoje a escolha está especialmente difícil: tivemos a brilhante ideia de Alberi David, presidente da Câmara Municipal de Canela, de combater a pandemia da Covid usando um avião para pulverizar a cidade com álcool gel (um amigo gaúcho, que a-do-ra a região, já sugeriu aproveitar para riscar um fósforo e tocar fogo em tudo, à moda de Graciliano Ramos dizendo que Alagoas, seu estado, era um “bom lugar para fazer um golfo”). Tivemos o igualmente genial Romeu Zema criticando a ideia de lockdown e dizendo que, por causa dele, a Nova Zelândia “praticamente se transformou numa ilha” (e isso é o que, supostamente, passa no tal “processo seletivo” do Partido Novo; não quero nem imaginar os que são reprovados).

Mas o campeão é André Mendonça, esbirro ridículo de um governo idem, mandando a Polícia Federal investigar um outdoor que diz que o chefe dele —, oh, que insulto! —, “não vale um pequi roído”. E você, contribuinte, é quem sustenta essa gente ordinária enquanto morre de Covid.

Foto: Luidgi Carvalho/Futura Press/FolhapressDas duas uma: ou Romeu Zema sempre foi zero em geografia ou está morrendo de saudade da Pangeia (Foto: Luidgi Carvalho/Futura Press/Folhapress)

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  1. Uma enorme ofensa ao pequi, fruto que alimenta gerações no cerrado brasileiro, roído e com espinhos ainda que engolido produziria menos dor e sofrimento do que um "ex" negacionista genocida produz diariamente;

  2. Essa de encher as cronicas com citações é bem conhecida e utilizada pelo Sabino...sim, aquele que enalteceu o tal Barroso, lembram-se

  3. Então vai este: O Capoeira - Qué apanhá sordado? - O quê? - Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada. Oswald de andrade Andrade, O. Pau-Brasil, Au Sans Pareil, 1925.

  4. Excelente observação do meu governador. E eu diria mais. Pasmem, senhoras e senhores... Por causa do Lockdown, o Japão também se transformou numa ilha (ou melhor, em 4 ilhas)

    1. Não é falta do que fazer, é pura incapacidade de fazer algo realmente útil. Ou melhor, não sabe o que fazer e o que deve fazer um ministro da justiça. Então, fica brincando de lambe botas.

  5. O Brasil não vale um pequi roído. Mas o narcisismo atroz q acomete o brasileiro o faz crer q o Brasil é o melhor lugar do mundo pra se viver. Basta olhar pro lado pra ver q aqui tá morrendo muita gente - e de forma desumana. Mas isso parece não atormentar muita gente...

  6. Goiabão falacioso e sofístico, fazendo graça com o Zema para encher a coluna. Claro que a referência à Nova Zelândia se tornar uma ilha é no sentido de isolamento da estratégia de lockdown em relação aos vizinhos, nada a ver com geografia. Você abandonou a inteligência para não perder a piada.

  7. Sr. Goiaba, obrigado pela dica - gostei muitíssimo do discurso, é um dos maiores que já li. Quanto ao NOVO, o processo seletivo não se destina a escolher os melhores - de resto, uma ideia totalitária, de verniz platônico, quando se trata de democracia -, mas de barrar os independentes e ungir os que são fiéis ao Sr. João Amoedo. Aliás, os Antagonistas não perceberam que o NOVO tem pouca ou nenhuma democracia interna.

  8. O governo Bolsonaro é o que de pior poderia ter acontecido ao Brasil! Bolsonaro não tem qualquer credibilidade,é um escroque, populista, mentiroso,sociopata e genocida!

  9. Referências preciosas em meio à realidade enojante. De quebra até deu para rir com as goiabices - somos o país da piada pronta.

  10. Creio que foi nos anos sessenta. Surgiu por aqui uma empresa de implosões. A primeira delas foi um grande prédio na praça da Sé para a estação do metrô. Um espetáculo de poeira e precisão, mostrado em todos os meios de comunicação. A partir daí foi um festival de implosões Brasil afora. Eu, então muito jovem, passei a achar que a implosão seria uma boa saída para o Brasil. Implodir tudo e partir do zero. Hoje aos 70 anos, a ideia volta a me perseguir.

  11. O que eu queria mesmo é que essa turma daí mordesse com força um pequi roído. Pelo menos enquanto estivessem com espinhos na boca, não falariam tanta asneira....

    1. Simone, infelizmente o asteroide que providenciará a limpeza desta nossa " civilização " só chegará em 2076, quando o Brasil já terá acabado a muito tempo.😧

  12. Você,Goiaba, querido,é a cereja do bolo da minha semana. Não é que hoje você me deu uma boa ideia? Como sou boa dona de casa e amo o Brasil resolvi jogar um avião de álcool na Praça dos 3 poderes em Brasília.Só para desinfetar,claro! Mas se alguém quiser riscar o fósforo....

    1. Concordo, Vanderley. Tornou-se um reduto privilegiadíssimo de bandidos e veja a que se reduziu a "ex".

    2. Concordo ,Vanderley. Um reduto privilegiadíssimo de toda sorte de bandidos é o que veio a se tornar. E veja a que se reduziu a "ex".

    3. Como bom mineiro, peço desculpas por JK ter mandado construir isso daí. Com todo respeito aos nossos irmãos nordestinos que foram os instrumentos. Mas, definitivamente, Brasília não foi uma boa ideia.

    4. Seria bom. Tostados e já acostumados com o fogo, iriam todos para o inferno. Possivelmente infernizariam Hades, ao ponto de o levarem à loucura...

  13. Pangeia Designa-se por Pangeia o continente que, descrito pela deriva continental, existiu entre 200 a 540 milhões de anos, durante a era Paleozoica, segundo estudos.

  14. Sou eleitora do Partido Novo, mas se Romeu Zema fugiu das aulas de geografia desse jeito, tem de rever todas as afiliações. Tenho uma amiga que vive lá e contou que esses lockdowns deles não são por decreto que estabelece obrigatoriedades e punições. São conjuntos de medidas solicitadas e sugeridas, às quais as pessoas aderem por iniciativa própria.

    1. Verdade. Maravilhoso. (Mas deu para dar uma risadinha no final).

  15. O mais lamentável nisso é que além de tudo "sustentamos essa gente ordinária" para nos enterrar num grande buraco. Mas continuar lutando é o caminho.

    1. Parabéns Rui. Sérgio Porto vulgo Stanislaw Ponte Preta, deve estar pálido de inveja com as suas Goiabices da Semana que são dignas de fazer frente as famosas crônicas FEBEAPA do finado e refinado Jornalista.

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