Adriano Machado/Crusoé

O próximo alvo de Gilmar

Depois de trabalhar para implodir a força-tarefa de Curitiba, o ministro do Supremo agora mira na Lava Jato do Rio, a que mais se aproximou dos esquemas no Judiciário. Enquanto isso, no submundo já houve até quem oferecesse dinheiro para um advogado destruir Marcelo Bretas e os procuradores
19.03.21

Mesmo com os sucessivos acessos verborrágicos de Gilmar Mendes, pairava no meio jurídico uma dúvida sobre a dimensão do golpe que se armava contra a Lava Jato dentro do Supremo Tribunal Federal. Estaria a campanha de destruição da operação, calçada nas mensagens roubadas dos procuradores do Paraná, limitada aos feitos da força-tarefa de Curitiba? Ou o movimento capitaneado pelo ministro seria expandido para as sucursais da operação, criadas para investigar os desdobramentos dos esquemas de corrupção em outros estados? Na última semana, Gilmar tratou de enterrar qualquer dúvida que pudesse haver sobre suas intenções. Durante o julgamento da suspeição do ex-juiz Sergio Moro em um dos processos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na Segunda Turma, ele pontuou, mais de uma vez, qual é seu próximo alvo: a “tal 7ª Vara do Rio de Janeiro”. É na vara comandada pelo juiz Marcelo Bretas que correm os processos da Lava Jato fluminense, reconhecidamente o braço da operação que mais avançou sobre o Poder Judiciário, denunciando advogados renomados e parentes de magistrados, além de ter prendido empresários e políticos ligados ao próprio Gilmar Mendes.

Com um método nada ortodoxo que já virou sua marca registrada, o ministro que lidera a ala anti-Lava Jato do Supremo lançou suspeitas sérias sobre a frente da operação no Rio. Gilmar afirmou que existe um “escândalo que ainda não veio à tona” na 7ª Vara, aquela comandada por Bretas, e jogou no ar o nome de um jovem advogado investigado por “vender” uma suposta “aproximação” com os procuradores e o juiz da Lava Jato fluminense, o que poderia configurar crime de tráfico de influência ou exploração de prestígio. “Não sei se já ouviram falar, senhores ministros, de um personagem que gravita por aí e que fez uma reclamação no STJ chamado Nythalmar. Um advogado que liderava as delações até um determinado momento e depois se tornou uma figura espúria”, disse o ministro aos colegas de turma. A mensagem que Gilmar quis passar foi clara: os tais “crimes” que ele diz terem sido praticados na 13ª Vara de Curitiba com Moro também teriam ocorrido na 7ª Vara do Rio com Bretas, que rebateu o ataque quase que em tempo real, pelas redes sociais, negando “qualquer suposta irregularidade”.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisO advogado Nythalmar Ferreira Filho recebeu oferta de dinheiro para atacar Bretas e a força-tarefa
Nythalmar Dias Ferreira, o advogado citado por Gilmar, virou uma espécie de bucha de canhão para explodir a Lava Jato do Rio, depois que ele mesmo se tornou alvo do Ministério Público Federal, em outubro do ano passado, em um intrincado processo que envolve ameaças e até oferta de dinheiro para aniquilar a operação que chegou a prender 265 suspeitos e já condenou 41 réus. A origem dessa trama é um processo ético-disciplinar movido há dois anos por um grupo de advogados contra Nythalmar na OAB do Rio, por “cooptação indevida de clientes”. Com 30 anos, o advogado teve uma ascensão meteórica na carreira costurando acordos de delação premiada para clientes famosos apanhados na Lava Jato, como o empreiteiro Fernando Cavendish, ex-dono da construtora Delta preso em 2016. O caso de Cavendish chamou atenção no meio jurídico pelas decisões consideradas vantajosas obtidas por um inexpressivo advogado junto ao juiz Marcelo Bretas, como penas mais leves que a de outros réus e a possibilidade de devolver o dinheiro desviado com créditos milionários que a empreiteira alega ter a receber do governo do Rio.

O empreiteiro que enriqueceu abocanhando obras na era de ouro de Sergio Cabral e confessou ter pago propina ao ex-governador virou o principal cartão de visita de Nythalmar, que passou a aliciar clientes de outros advogados dentro dos presídios e nos corredores do tribunal. Logo ele deixaria o anonimato e o escritório no subúrbio para ganhar seu lugar entre as estrelas.

Na lista de alvos abordados estariam o próprio Cabral e o empresário Eike Batista, a quem o advogado teria “vendido facilidades” para fechar acordos na 7ª Vara. Assim que a representação feita contra Nythalmar na OAB ganhou o noticiário, ainda em 2019, o coordenador do braço fluminense da Lava Jato, procurador Eduardo El-Hage, pediu uma investigação ao próprio Ministério Público Federal, por causa da suposta “aproximação” com o juiz e com a força-tarefa que o advogado teria usado para ganhar novos contratos. O inquérito ficou praticamente parado até setembro de 2020, quando a Lava Jato compartilhou com o procurador encarregado do caso duas possíveis provas contra Nythalmar: uma anotação na agenda do almirante Othon Pinheiro da Silva, na qual o ex-presidente da Eletronuclear descreve Nythalmar como “advogado milagreiro do juiz Marcelo Bretas”, e uma mensagem de WhatsApp enviada pelo advogado a Sergio Côrtes, em agosto de 2018, na qual ele alerta que o ex-secretário de Cabral estava “perdendo uma semana preciosa” e que precisava receber o “compromisso de solução do seu caso”. Côrtes não trocou de advogado e foi preso cinco dias depois por ordem de Bretas.

Agência BrasilAgência BrasilEl Hage, coordenador da Lava Jato do Rio: na mira dos detratores da operação
Em outubro do ano passado, o advogado que já foi descrito como o criminalista mais caro da Lava Jato no Rio voltou ao noticiário, desta vez como alvo de uma operação. A Polícia Federal vasculhou cinco endereços ligados a Nythalmar no Rio, incluindo um apartamento que ele diz ter comprado de Cavendish em Ipanema, e levou um computador e dois celulares. Um detalhe curioso nessa história é que o delegado da PF responsável pela investigação já foi preso em 2008 por suposta participação em uma quadrilha de policiais envolvidos na máfia dos combustíveis que tinha como um dos defensores o mesmo advogado que representou contra Nythalmar. Mas foram os episódios que sucederam a busca e apreensão que renderam ao advogado o título de “homem-bomba” da Lava Jato do Rio – o mesmo que despertou o interesse do ministro Gilmar Mendes. Duas semanas depois da operação, o diretor da 7ª Vara, Fernando Pombal, servidor mais próximo de Bretas, começou a receber ligações e mensagens de texto de números desconhecidos com ameaças ao juiz e ao coordenador da Lava Jato, insinuando ter documentos que poderiam acabar com a carreira e a vida pessoal de ambos e pedindo para que a investigação sobre Nythalmar fosse arquivada. O próprio auxiliar de Bretas disse em depoimento acreditar que a ameaça partiu do advogado, por causa da “riqueza de detalhes“, e a investigação do MPF sobre as ameaças identificou que um aparelho usado para enviar as mensagens pertencia ao próprio Nythalmar — ele teria trocado apenas o chip, o que não foi suficiente para eliminar suas digitais na estratégia maquinada para assustar o juiz e seu assessor.

As especulações envolvendo o caso Nythalmar ganharam ainda mais fôlego entre os que querem usá-lo para fustigar a Lava Jato depois que o advogado decidiu, em uma ousada estratégia de defesa, fazer uma reclamação ao Superior Tribunal de Justiça, argumentando que como a investigação sobre ele trata de uma suposta “venda de facilidades”  na 7ª Vara, o juiz Marcelo Bretas e os procuradores também deveriam ser considerados suspeitos e investigados. Como dois integrantes da força-tarefa são procuradores regionais da República, a competência para investigá-los seria então do STJ, e não da primeira instância da Justiça Federal do Rio. A reclamação foi propositadamente protocolada por Nythalmar no dia 21 de dezembro, para que fosse apreciada durante o recesso do Judiciário pelo presidente da corte, Humberto Martins, cujo filho Eduardo Martins foi denunciado pelos próprios procuradores e teve os bens bloqueados por Bretas sob a acusação de receber honorários milionários da Fecomércio do Rio, para influenciar nos julgamentos de interesse da entidade na corte onde atua o pai. Menos de oito horas depois, Humberto Martins concedeu a liminar a Nythalmar e puxou toda a investigação para o STJ, inclusive a parte relativa a Bretas e aos demais procuradores. A relatora é a ministra Laurita Vaz.

Eduardo Matysiak/Futura Press/FolhapressBretas foi ao Twitter rebater Gilmar
O inquérito está agora com a subprocuradora Lindôra Araújo, braço direito do procurador-geral da República, Augusto Aras, outro algoz da Lava Jato. Caberá à PGR analisar, por exemplo, a perícia que será feita no computador e nos celulares de Nythalmar. Embora o advogado se declare inocente tanto das acusações de tráfico de influência e exploração de prestígio quanto das suspeitas de ameaça, e também não tenha até agora apresentado provas de qualquer abuso cometido por Bretas ou pelos procuradores, o caso está sendo espalhado pelos detratores da operação como uma bomba relógio prestes a explodir. O jogo no submundo é ainda mais pesado do que aquele jogado à luz do dia por Gilmar Mendes.

Crusoé apurou que o advogado já recebeu ao menos uma oferta de dinheiro de uma pessoa interessada em destruir a Lava Jato fluminense, para delatar a força-tarefa ou o próprio Marcelo Bretas. Em paralelo, boatos envolvendo um suposto acordo de delação premiada de Nythalmar têm sido cada vez mais frequentes, alimentados por narrativas como as que foram alinhavadas por Gilmar Mendes na semana passada. Procurado por Crusoé, Nythalmar negou estar negociando uma delação e encaminhou documentos para rebater as acusações feitas contra ele por outros advogados, como uma carta escrita de próprio punho por Sergio Cabral na cadeia, na qual o ex-governador afirma que Nythalmar não tentou convencê-lo a trocar de advogado, e um ofício de um presídio do Rio informando que ele nunca esteve no local onde uma advogada disse que ele aliciou seu cliente.

É difícil prever os próximos capítulos da trama. Mas é fato que o caso que nasceu de uma disputa entre advogados virou um prato cheio para Gilmar e Humberto Martins fustigarem – e procurarem destruir – a Lava Jato do Rio. Agora, com o auxílio das mensagens hackeadas dos procuradores do Paraná, que foram compartilhadas com o presidente do STJ naquele inquérito que ele abriu no mês passado para apurar a suposta tentativa da força-tarefa de “intimidar” os ministros da corte com investigações clandestinas. Se Humberto Martins tem interesse pessoal no caso em razão do envolvimento de seu filho na operação, Gilmar não fica atrás.

Gustavo Lima/STJGustavo Lima/STJApuração subiu para o STJ, cujo presidente, Humberto Martins, tem interesse direto no caso porque seu filho é investigado
Destinatário de todos os casos da Lava Jato fluminense que aportam no Supremo, o ministro coleciona uma série de embates com Bretas, mandando soltar quem o juiz da 7ª Vara mandou prender. Entre os alvos estão pessoas do círculo próximo do ministro, como o empresário do setor de transportes Jacob Barata – Gilmar foi padrinho de casamento da filha dele, no qual o noivo era um sobrinho de sua mulher, a advogada Guiomar Feitosa Mendes. Barata foi preso duas vezes por Bretas e solto três vezes pelo ministro. Outro personagem que o liga às decisões de Bretas é o advogado Caio Rocha, filho do ex-presidente do STJ César Asfor Rocha e casado como uma sobrinha da mulher de Gilmar. Caio Rocha foi um dos denunciados na Operação E$quema S, em setembro passado, juntamente com outros advogados de peso, como Cristiano Zanin, defensor de Lula, e Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro, por supostos desvios da Fecomércio. Todo o processo foi suspenso por decisão de Gilmar.

Nos dois casos – o de Jacob Barata e o de Caio Rocha –, o MPF pediu a suspeição do ministro, mas os pleitos nunca avançaram na corte. Já no Rio, onde o combate à corrupção avançou, o episódio Nythalmar está suscitando pedidos de suspeição de Bretas. A conhecida eloquência de Gilmar tem funcionado como pano de fundo para a estratégia. Quem conhece o ministro sabe que, uma vez definido o alvo, ele não vai se limitar ao gogó. A nova guerra de Gilmar está só começando.

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