Reprodução/redes sociaisDelgatti, o estelionatário-hacker de Araraquara, virou ídolo do lulopetismo

As provas que não são provas

Como as mensagens roubadas da força-tarefa inauguraram um novo elemento no sistema jurídico brasileiro: provas oriundas de um crime que, mesmo sem ser validadas, servem para convencer ministros do Supremo fora dos autos
26.03.21

As mensagens roubadas por hackers dos celulares de integrantes da Lava Jato viraram uma espécie de prova fantasma no Supremo Tribunal Federal, usadas ao sabor das conveniências dos interessados em implodir a operação. Embora elas existam, e parte de seu conteúdo seja de conhecimento público, as mensagens não foram validadas judicialmente nem constam oficialmente dos autos nos quais, nas últimas semanas, ministros da corte deram passos importantes para destruir a maior investigação anticorrupção já realizada no país.

No momento em que lhe foi oportuno, por exemplo durante o julgamento que franqueou à defesa de Lula o acesso ao material apreendido em uma operação destinada a investigar o crime dos hackers, o ministro Gilmar Mendes usou os diálogos como espinha dorsal de seu voto. Já em meio à discussão da suspeição do ex-juiz Sergio Moro, Gilmar até fingiu que não precisava considerá-las, mas a todo tempo visitava o acervo construído graças à invasão ilegal no aplicativo em que integrantes da força-tarefa se comunicavam sobre a investigação. “Não vamos ficar de conversa fiada. Não estamos falando de prova ilícita”, tentou disfarçar Gilmar ao responder, enfaticamente, ao voto do colega Kassio Marques a favor de Moro.

Quando a primeira leva de mensagens foi divulgada pela primeira vez, em junho de 2019, Lula ainda estava preso na sede da Polícia Federal em Curitiba, condenado a doze anos de prisão pelo caso do tríplex do Guarujá. Àquela altura, a origem do material ainda era uma incógnita. Mesmo assim, as mensagens serviram para guiar uma verdadeira campanha movida pelos adeptos do movimento “Lula livre”, os quais argumentavam que o petista era vítima de uma injustiça histórica. O acervo foi explorado estrategicamente para sustentar a narrativa de que toda a investigação foi irregular. A descoberta de que os diálogos tinham sido fruto de um crime se daria no mês seguinte aos primeiros vazamentos, com a deflagração da Operação Spoofing, destinada a identificar os responsáveis pela ação hacker. Sergio Moro, àquela altura, era o ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. A operação levou à prisão quatro acusados de participar da invasão dos celulares não só de integrantes força-tarefa, mas também de algumas das mais altas autoridades do país – até ministros do Supremo chegaram a ser alvo.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressA prisão de Delgatti: ação para apurar invasão serviu para esquentar as mensagens roubadas
Entre os presos estava Walter Delgatti Neto, apelidado de “Vermelho”, que em depoimento disse ter oferecido o material em maio de 2019 à ex-deputada Manuela D’Ávila, do PCdoB, que fora candidata a vice no ano anterior na chapa de Fernando Haddad, do PT. Foi a ex-deputada, segundo essa versão, quem fez os primeiros movimentos para que a coleção de mensagens roubadas finalmente chegasse às mãos de um site simpático ao petismo. A Spoofing, ironicamente, ajudaria a cumprir a primeira etapa da estratégia: com os computadores dos hackers apreendidos, as mensagens finalmente passaram a estar em poder do Judiciário, o que mais tarde viria a ser um passo utilíssimo à defesa de Lula.

Já ali teve início uma série de artimanhas jurídicas na tentativa de legitimar o material roubado. Depois de ter o pedido de compartilhamento das mensagens para uso no processo do sítio em Atibaia negado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e pelo relator da Lava Jato no Supremo, Edson Fachin, a defesa de Lula recorreu a Ricardo Lewandowski. O ministro era relator de um outro requerimento de Lula, desta vez para ter acesso a termos do acordo de leniência da Odebrecht, e vinha se mostrando receptivo aos pedidos do petista, chegando a suspender um processo contra o ex-presidente pelo suposto recebimento de propinas da empreiteira. Em dezembro de 2020, Lewandowski atendeu ao anseio de Lula e determinou à Justiça Federal em Brasília que compartilhasse com o petista mensagens “que lhe digam respeito, direta ou indiretamente, bem assim as que tenham relação com investigações e ações penais contra ele movidas na 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba ou em qualquer outra jurisdição”.

A porteira estava, então, aberta para que a campanha prosseguisse, agora com o verniz da autorização de um ministro do Supremo. A narrativa logo mudou: os advogados de Lula, e depois também os ministros simpáticos à causa do petista, passaram a se referir ao material não mais como “mensagens roubadas por hackers” ,mas como “mensagens apreendidas pela Operação Spoofing”. A partir dali, conduzido espertamente pelos maiores interessados em carimbar a operação como um antro de ilegalidades, o acervo acabou indo parar também, ainda que de maneira lateral, nos processos da Lava Jato. Isso sem que, em nenhum momento, o Judiciário tenha nem sequer iniciado uma discussão sobre a validade legal do material como prova.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisThiago Eliezer: a conexão brasiliense do esquema foi revelada por Crusoé
Em fevereiro deste ano, no julgamento em que a decisão de Lewandowski foi referendada pela Segunda Turma do STF por quatro votos a um, Gilmar usou pela primeira vez as mensagens roubadas da Lava Jato. Ele não apenas leu parte delas, como as interpretou, abusando da teatralidade. A postura do ministro se repetiria durante a primeira etapa do julgamento da suspeição de Moro na Segunda Turma, em que ele voltou a ler trechos dos diálogos. Depois que Kassio Marques apontou para ilegalidade do acervo, Gilmar recorreu enfurecido a malabarismos retóricos para dizer que não precisava das mensagens para compreender a ação da força-tarefa e de Moro como um abuso judicial.

A defesa de Lula, que há tempos vem explorando as mensagens, mas em paralelo vem se esforçando para evitar que a discussão jurídica no Supremo descambasse para a questão da legalidade do material, logo fez coro ao ministro. “Só gostaria de esclarecer que este habeas corpus foi impetrado em novembro de 2018. Naquela oportunidade, sequer havia qualquer existência ou notícia de hackers ou do Intercept ou de quaisquer outras mensagens. Então, portanto, a petição inicial deste habeas corpus não faz alusão a qualquer mensagens hackeadas”, afirmou o advogado Cristiano Zanin. Um sofisma.

Na esteira da decisão a favor de Lula, as defesas de outros alvos da Operação Lava Jato têm pedido acesso às mensagens para tentar anular, também, suas condenações. Enquanto isso, denunciados pelas invasões aos celulares e associação criminosa, os supostos responsáveis pelo roubo das mensagens estão livres e, hoje, quase nada se fala sobre eles – dois dos hackers foram libertados em setembro do ano passado.

Marcelo Camargo/Agência BrasilMarcelo Camargo/Agência BrasilSegundo o hacker, mensagens foram oferecidas inicialmente a Manuela D’Ávila
Não se descobriu se há uma estrutura de poder acima da quadrilha, cujos principais integrantes não passavam de modestos estelionatários de Araraquara, no interior de São Paulo. Walter Delgatti Neto, o Vermelho, confessou o crime, mas negou ter sido financiado por terceiros – agora, alçado à condição de herói do lulopetismo, ele dá entrevistas e diz que pretende se candidatar a um cargo público em um futuro próximo. Outro envolvido, Thiago Eliezer Martins, o Chiclete, um experiente programador de computadores de Brasília cuja identidade foi revelada por Crusoé, virou um personagem lateral, a despeito dos muitos sinais de que sua participação foi fundamental na trama – a certa altura, ele até ofereceu um acordo de delação premiada em que supostamente revelaria outros nomes ainda desconhecidos dos investigadores, mas a proposta não prosperou.

Mesmo sem a identificação de possíveis patrocinadores da invasão, e há muita gente grande que já se envolveu em espionagem no Brasil, as provas colhidas até o momento revelam que Delgatti e companhia, cujos crimes cometidos até então miravam a obtenção de dinheiro fácil, tinham em comum a intenção de destruir a Lava Jato. Uma intenção surgida repentinamente, digamos assim. O mais curioso é que, ao usar politicamente os diálogos roubados, os mesmos ministros do STF que agora condenam a Lava Jato com base na tese de que os fins não podem justificar os meios estão fazendo exatamente o mesmo que criticam: valem-se de um material sabidamente obtido por meios ilícitos para justificar o objetivo de enterrar a operação.

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