De condenado a mártir
Esparramado no sofá de casa, em São Bernardo do Campo, onde vive com a namorada Rosângela da Silva e três cachorros vira-latas, o ex-presidente Lula lançou um vaticínio assim que recuperou os direitos políticos e voltou a se tornar elegível, por decisão do ministro Edson Fachin. “Vou voltar. E sabe aquilo que o Serjão (ex-ministro das Comunicações de FHC, Sérgio Motta) falava do PSDB? Vou ser eleito novamente e o PT vai ficar 20 anos no poder.” A megalômana previsão do petista que soa como como música aos ouvidos da esquerda, mas que apavora mais da metade dos brasileiros que o rejeita, foi testemunhada por Paulo Okamotto, diretor do Instituto Lula e tarefeiro predileto do ex-presidente.
A decisão da Segunda Turma do Supremo que na terça-feira, 23, declarou que o ex-juiz Sergio Moro foi parcial ao julgar Lula apenas consolidou algo que o ex-presidente e seus advogados já esperavam desde a virada do ano. O movimento de Fachin já havia feito o PT pisar no acelerador para colocar em marcha a campanha para o regresso de Lula ao poder em 2022.
Graças aos veredictos favoráveis das úlimas semanas no Supremo, e ao caldo de cultura muito bem nutrido pelo governo Bolsonaro, responsável direto por colocar em xeque a Lava Jato, o plano petista passa por uma estratégia de comunicação destinada a reposicionar a imagem de Lula, que já se apresenta como um “injustiçado”, uma vítima da Lava Jato, como se num passe de mágica fosse possível apagar da memória dos brasileiros os saques à Petrobras, a escandalosa promiscuidade no trato com o Congresso, a indecente relação com empreiteiros e os benefícios amealhados por ele e seus familiares nos esquemas descobertos pela operação.
Nas recentes reuniões do grupo, atualmente por videoconferência, ficou acertado que, nos próximos meses, Lula irá começar a rodar o país e promover encontros com lideranças regionais. Por ora, no entanto, o petista seguirá mais recolhido. Por três motivos, apurou Crusoé: Lula quer aguardar o arrefecimento da pandemia, evitar se expor excessivamente antes do tempo, para não virar alvo “da imprensa e de adversários políticos”, e por uma teoria da conspiração desenvolvida por dirigentes do PT nos últimos dias — impedir que ele possa ser vítima de um atentado por um “Adélio de sinal trocado”, numa referência ao homem que esfaqueou Jair Bolsonaro em setembro de 2018.
Por mais bem-sucedida que seja a estratégia, até os petistas mais empedernidos concordam que não será simples passar uma borracha nos crimes cometidos pelo partido e incutir na cabeça da população uma espécie de “esqueçam que eu delinqui”, versão do “esqueçam o que eu escrevi”, frase atribuída a Fernando Henrique Cardoso no início dos anos 1990. Por exemplo, como fazer desaparecer o departamento de propinas da Odebrecht, onde, segundo delação do ex-ministro Antonio Palocci, Lula era o “Amigo” que chegou a ter um saldo de 40 milhões de reais, em 2012? Como desfazer as declarações ainda do mesmo Palocci de que um “pacto de sangue” foi firmado por Lula com o empreiteiro Emílio Odebrecht para continuar a receber propinas da empreiteira mesmo depois de deixar o governo? Como é possível deletar dos autos as reformas no sítio de Atibaia e no tríplex, em particular, autorizada pela “Madame”, como Marisa Letícia era chamada por um ex-diretor da OAS?
Quando seu indicado Kassio Marques votou contra a suspeição de Sergio Moro na terça-feira, 23, o presidente da República comemorou, mas não foi pela Lava Jato e pelo ex-juiz, sim pelo cálculo político segundo o qual é interessante ter Lula fora da corrida no ano que vem. A guinada de Cármen Lúcia, decisiva para virar o jogo em desfavor de Moro, guarda total relação com o momento em que vive o país: o novo espírito do tempo, ou o Zeitgeist, como dizem os alemães, é combater a tragédia bolsonarista, responsável por perenizar a sensação de que nada pode ser pior, nem mesmo uma eventual volta de Lula ao poder. Ao falar das agruras de se tornar ex-presidente, José Sarney costuma dizer que os mandatários, quando deixam o poder, passam a ser “um grande e profundo encalhe”. Pois Bolsonaro, o ministro Gilmar Mendes e o STF conseguiram a proeza de desencalhar Lula. E ainda de dar a ele uma aura de mártir, apesar das muitas evidências em sentido contrário.
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