SergioMoro

O destino de Pequod

26.03.21

​“Chamem-me de Ismael.” Com essa breve sentença se inicia Moby Dick, de Herman Melville, uma das aberturas de livros mais conhecidas da literatura. O recurso narrativo é a porta de entrada para o relato testemunhal da história do Capitão Ahab e sua obstinação para capturar e matar Moby Dick, a grande baleia branca. Os tripulantes do navio baleeiro, o Pequod, são seus reféns e compartilharão o destino fatal do capitão enlouquecido. Além das descrições realistas da prática de caça à baleia no século XIX e dos recursos retóricos e poéticos da escrita de Melville, Moby Dick é acima de tudo uma história sobre a obsessão e a loucura que muitas vezes a acompanham.

​Há várias interpretações sobre a caça à baleia branca. Para alguns, ela representa a luta do homem contra a natureza ou contra o próprio destino. Para outros, a baleia é a encarnação do puro mal, enquanto há quem vislumbre a sua caça irracional como uma metáfora sobre a tentativa fútil do homem desobrepujar Deus. Como diz o próprio Ahab, “os objetos vísiveis não são mais do que máscaras de papelão” — atrás deles, assim, pode-se encontrar qualquer coisa, a depender da interpretação. A história pode ser utilizada como metáfora para vários empreendimentos ou acontecimentos humanos, nos quais a busca sem freios por objetivos inalcançáveis resultaram em tragédia.

​A busca pelo poder e pela manutenção do poder é uma delas. Quem exerce o poder quer nele permanecer, seja pelo prazer de exercer o poder ou pelo próprio temor de perdê-lo. Mas o poder sem finalidade é vazio. A questão fundamental é se há um projeto que transcende o mero exercício autorreferente do poder pessoal. Não me convenço dos conselhos de Maquiavel, constantes em O Príncipe, para manutenção do poder. Melhor ser temido do que amado pode ser um conselho válido para o século XVI ou para os Bórgias, mas não para os tempos atuais, salvo para candidatos a tiranos.

​Li recente entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no Estadão reconhecendo brevemente o valor de meu trabalho como juiz e o legado da Lava Jato, mas ressalvando que, como ministro, não teria mostrado “muita apetência”, ou seja, apetite, pelo poder. Não interpretei como uma crítica, mas como um elogio. Ingressei no governo como Ministro da Justiça e Segurança para desenvolver um projeto, não pessoal, mas para o país, de fortalecimento do “rule of law”. Quando verifiquei que, independentemente do que eu fizesse, o projeto não iria adiante, por motivos que já expliquei exaustivamente no passado, eu simplesmente saí. Não sou daqueles que ficaria no cargo apenas pelo cargo ou em busca de miragens.

​Mas essa não é a praxe comum no mundo político ou da administração pública. Não raramente o detentor de um cargo o exerce pensando não em fazer o seu melhor, mas, sim, na oportunidade para obter outro cargo maior. Alguns representantes eleitos buscam, desde o primeiro momento, a reeleição, esquecendo que o exercício do poder que lhe foi atribuído tem uma finalidade maior do que a mera continuidade. Fazer a coisa certa sempre exige sacrifícios, inclusive o de ficar longe do poder. Vejo atualmente o Brasil com certa tristeza, mais de 300 mil mortos na pandemia, as dificuldades na economia e o desmantelamento de algumas conquistas institucionais do passado, como o combate à corrupção.

O Brasil parece, às vezes, uma nau sem rumo ou, pior, em direção ao desastre. É claro que o país é maior do que esses problemas e deve superá-los, embora o tempo seja aqui um fator relevante. Não acredito que o povo brasileiro tenha vocação para repetir o destino da tripulação do Pequod.

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