Adriano Machado/CrusoéGilmar é, hoje, a voz mais eloquente da ofensiva à Lava Jato

O ministro da artilharia

O papel central de Gilmar Mendes na ofensiva contra a Lava Jato mostra que a guerra está longe de ser só pela reabilitação de Lula
26.03.21

No dia em que Luiz Inácio Lula da Silva foi alvo da condução coercitiva ordenada por Sergio Moro para depor em São Paulo, em março de 2016, Gilmar Mendes fez piada com o episódio durante uma palestra para estudantes em Fortaleza. “Antes, batiam à nossa porta e a gente sabia que era o leiteiro, não a polícia”, ironizou. Duas semanas depois, o ministro do Supremo Tribunal Federal se apoiou em outro ato de grande repercussão determinado pelo então juiz da Lava Jato – a divulgação de uma conversa interceptada entre o ex-presidente e sua sucessora, Dilma Rousseff –, para anular a nomeação de Lula como ministro do governo, alegando que, com a manobra política, o petista buscava o foro privilegiado no Supremo, para escapar de uma possível prisão preventiva decretada pelo juiz do Paraná. Na ocasião, Gilmar decidiu ainda manter a investigação do tríplex do Guarujá na 13ª Vara de Curitiba e, em seguida, minimizou uma outra queixa dos advogados de Lula relacionada aos grampos, dizendo que Moro “justificou” a “confusão” que resultou na quebra de sigilo da linha telefônica usada pela banca que defende o ex-presidente.

Era abril de 2016. A Lava Jato já havia completado dois anos e o governo do PT agonizava diante de novas descobertas no escândalo da Petrobras que inflamavam os protestos de rua. No dia seguinte à histórica votação em que a Câmara dos Deputados deu início ao processo de impeachment contra Dilma, Gilmar se mostrava plenamente satisfeito com o curso das investigações, no centro do programa Roda Viva, da TV Cultura. Durante mais de uma hora de entrevista, o ministro fez reiterados elogios à condução da Lava Jato, citando a atuação da força-tarefa então liderada pelo procurador Deltan Dallagnol como exemplo de que “as instituições brasileiras estão funcionando” e que a operação se desenrolava bem “graças a Deus e graças ao juiz Moro”. “Eu acho que ele (Moro) está conduzindo um processo extremamente complexo, sofrendo uma pressão imensa, e tem conduzido muito bem”, afirmou o ministro no programa. Àquela altura, Gilmar dizia enxergar a super exposição de Moro, que passou a estampar cartazes em manifestações e a figurar nas pesquisas de intenção de voto para presidente da República, como reflexo da “carência de liderança” no país. “Eu não vejo essa transformação de magistrados em justiceiros“, salientou.

Divulgação/PFDivulgação/PFPoliciais em ação em uma das fases da operação: para Gilmar, Moro e procuradores agiram como “gângsters”
Cinco anos depois, os mesmos fatos endossados por Gilmar em 2016 e rechaçados em três instâncias da Justiça como provas da parcialidade de Moro para julgar Lula ganharam uma nova interpretação do ministro do Supremo em sua cruzada para fulminar a Lava Jato. A condução coercitiva de Lula, as interceptações telefônicas autorizadas pelo ex-juiz e até a manutenção da investigação do petista em Curitiba foram descritas por Gilmar na sessão que declarou a suspeição de Moro na última terça-feira, 23, como exemplos de “práticas autoritárias” de um “modelo soviético” de persecução penal adotado pela “República de Curitiba”. O pano de fundo da decisão que anulou todos os atos do ex-juiz na ação do tríplex do Guarujá vai muito além do que o ministro definiu como a “chance de um julgamento justo” a Lula. Na mesma sessão, Gilmar deixou claro que pretende usar o caso do ex-presidente como “alicerce” para atingir um objetivo ainda maior contra a operação que desmantelou o maior esquema de corrupção já visto no país. “Faço os mais sinceros votos de que o julgamento de hoje não apenas se encerre neste processo”, afirmou. “Estou terminando esses dias como alguém que ganhou a batalha”, disse aos colegas.

O início da guerra de Gilmar contra a Lava Jato coincide exatamente com a queda do PT do poder e o avanço das investigações sobre empresários e políticos que são próximos do ministro, como o ex-presidente Michel Temer, o senador José Serra e o deputado Aécio Neves, no segundo semestre de 2016. Considerado o mais político dos membros do Supremo, não apenas pela estreita relação com esses caciques, mas também por opinar sobre tudo, Gilmar foi semeando aos poucos o que hoje representa uma completa guinada retórica sobre a operação anticorrupção. Tanto que o ministro tem dito que “desde o começo apontou que havia atrás desse modelo de prisões alongadas desígnios totalitários”, uma narrativa desmentida pelos fatos. Para sustentar o que hoje afirma ser o “maior escândalo judicial da humanidade”, o ministro teve de varrer para debaixo do tapete o “modelo de governança corrupta” do lulopetismo que ele criticava e chamava de “cleptocracia”. De “líder da oposição” ao PT no STF, rótulo que ele mesmo explorou para se dizer “insuspeito” no julgamento contra Moro, Gilmar assumiu o posto de líder da oposição à Lava Jato no Judiciário. E para proteger os amigos e a si próprio – o patrimônio da família de Gilmar chegou a ser alvo de uma apuração da Receita Federal –, o ministrou não se furtou a usar o caso de Lula como emblema de sua nova guerra particular.

Para conseguir levar a cabo o plano de destruição da Lava Jato, que chegou a prender Temer e a denunciar Serra e Aécio, Gilmar se viu obrigado a mudar de posição no campo de batalha. O ministro garantista que soltava os poderosos presos na primeira instância passou também a atacar os juízes que ousavam encarcerar políticos e empresários acusados de corrupção e lavagem de dinheiro. De goleiro, apelido que recebeu do notório operador tucano Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, o ministrou assumiu a função de artilheiro para conseguir virar o jogo sobre a Lava Jato. O placar do julgamento estava 2 a 0 contra a suspeição de Moro quando Gilmar pediu vista do processo e levou o habeas corpus impetrado pela defesa de Lula para o seu gabinete. Era dezembro de 2018. À época, o ministro temia uma derrota com o voto do decano Celso de Mello. Gilmar só voltou a cogitar retomar o julgamento depois que as mensagens roubadas dos telefones celulares da força-tarefa começaram a ser divulgadas, em junho de 2019. Ainda assim, a vitória não parecia garantida na turma. Com a aposentadoria de Celso de Mello em 2020 e o aval de Ricardo Lewandowski para que a defesa de Lula tivesse acesso formal ao acervo de mensagens, no início deste ano, o cenário mudou.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéKassio Marques votou contra a suspeição e ouviu impropérios de Gilmar
Aos poucos, os advogados do ex-presidente foram municiando os ministros da Segunda Turma e a imprensa com novos trechos das mensagens hackeadas, enquanto Gilmar sinalizava que estava prestes a retomar o julgamento após mais de dois anos. O movimento acabou sendo precipitado por uma outra reviravolta – esta sim, imprevisível –, quando Fachin decidiu anular todas as decisões da 13ª Vara Federal de Curitiba envolvendo os casos do ex-presidente, inclusive as condenações nas ações do tríplex e do sítio de Atibaia, por considerar que não havia relação dos crimes praticados pelo petista com o escândalo da Petrobras. Ao determinar a remessa dos casos para a Justiça Federal de Brasília, Fachin conferiu ao juiz que receberá os processos de Lula a possibilidade de usar as provas produzidas contra o petista no Paraná e extinguiu o habeas corpus que pedia a suspeição de Moro. Indignado com a decisão do colega, que beneficiava Lula mas não punia Moro, Gilmar ignorou o despacho e pautou o habeas corpus de Lula para o dia seguinte. Seu voto foi carregado com uma série de diálogos hackeados para desqualificar toda a operação, imputando crimes aos procuradores e a Moro. O mesmo fez o ministro Ricardo Lewandowski.

O estratégico uso retórico das provas ilícitas, como “reforço argumentativo” para declarar Moro parcial com os mesmos fatos conhecidos desde 2018 se mostrou exitoso. Embora não tenha convencido o ministro Kassio Marques, que rechaçou o uso das mensagens roubadas e demonstrou certo alinhamento aos interesses do presidente Jair Bolsonaro, quem o indicou para o Supremo, o plano de Gilmar triunfou quando a ministra Cármen Lúcia alterou o voto de dois anos atrás para julgar Moro parcial, alegando que o “cenário” que se tinha em 2018 mudou. Ela descartou ter levado em consideração na mudança de sua convicção as mensagens de Telegram lidas e relidas por Gilmar e Lewandowski, mas certamente não deve ter gostado de ter sido chamada de “fraquinha” e “amiguinha de Gilmar” nas conversas entre procuradores. Agora, como foi autor do voto condutor da vitória por 3 a 2 sobre Moro, o artilheiro Gilmar fica responsável por apreciar casos semelhantes – ou seja, ele será o relator de todos os outros pedidos de suspeição do ex-juiz que outros réus da Lava Jato devem endereçar à Segunda Turma para tentar anular suas condenações. Há novas batalhas nessa guerra e ela agora é controlada por Gilmar.

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