Divulgação/Alfredo Brant"Nenhum outro poder chega perto dos privilégios obscenos de que desfrutam os membros do Judiciário, com salários de marajás, férias abusivas, pouquíssima transparência e responsabilização pelos atos"

Retrocesso explícito

Para Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil, a sociedade deve agir para impedir que o país desperdice os avanços contra a corrupção. Ele lamenta que o Judiciário imponha a força bruta a ameaças vindas do andar de baixo
26.03.21

A seção brasileira da Transparência Internacional tem sido incansável na tarefa de denunciar os retrocessos no combate à corrupção no país. Pela sua postura, a organização, que tem sede em Berlim e presença em 130 países, virou alvo de ataques de ministros do Supremo Tribunal Federal e de campanhas de desinformação nas redes sociais. Quem comanda o escritório da Transparência no Brasil é o economista Bruno Brandão, que também é mestre em gestão pública e em relações internacionais.

Para Brandão, a sociedade brasileira precisa se manifestar para impedir o desmanche acelerado dos marcos legais e institucionais do combate à corrupção. Ele entende que, embora a sociedade esteja mais preocupada agora com a pandemia, os assuntos se entrelaçam.  “A indignação que vinha arrefecendo, com tantos anos de notícias diárias de megaesquemas de corrupção, parece estar surgindo novamente nas pessoas, quando se revelam desvios de verba nos hospitais de campanha, furtos de vacinas e grandes empresários furando a fila da vacinação”, diz Brandão.

Além de criticar o Congresso e o Poder Executivo por suas iniciativas para frear as investigações de corrupção, Brandão faz um forte ataque ao Judiciário, que, segundo ele, tem atuado para “dar ares de direito aos privilégios, à impunidade e à inadimplência da elite e garantir a segurança do sistema, impondo a força bruta sobre quaisquer ameaças vindas do andar de baixo”. Segundo ele, a luta contra a corrupção no Brasil também deveria avançar sobre esse setor até hoje intocado. “Nenhum outro poder chega perto dos privilégios obscenos de que desfrutam os membros do Judiciário, com salários de marajás, férias abusivas, pouquíssima transparência e responsabilização pelos atos”, diz. Segue a entrevista.

O combate à corrupção no Brasil está comprometido?
Não há dúvidas de que o combate à corrupção no país passa por graves retrocessos. Até a comunidade internacional já passou a exercer pressão contra o descumprimento de compromissos do país nas convenções anticorrupção. Essa pressão internacional é importante, mas muito mais importante é a pressão interna, dos brasileiros. Se a sociedade cair na apatia diante dos retrocessos, é muito possível que eles se consolidem e que continuemos a assistir ao desmanche acelerado dos marcos legais e institucionais anticorrupção que o país levou décadas para construir.

O fato de que os brasileiros estão muito preocupados com a pandemia de acaba desviando a atenção?
A preocupação prioritária do brasileiro hoje é, óbvia e justificadamente, o controle da pandemia de Covid-19. Claro que isso drena a atenção de todos os retrocessos legais e institucionais, mas a corrupção também se manifesta fortemente no contexto da pandemia e em suas formas mais sórdidas, tirando, literalmente, o oxigênio das pessoas. A indignação que vinha arrefecendo, com tantos anos de notícias diárias de megaesquemas de corrupção, parece estar surgindo novamente nas pessoas, quando se revelam desvios de verba nos hospitais de campanha, furtos de vacinas e grandes empresários furando a fila da vacinação. Quem acha que a população brasileira deixou de se preocupar com a corrupção e que vai abandonar essa pauta pode estar fazendo uma aposta muito errada.

DivulgaçãoDivulgação“Quando governos populistas e autoritários assumem o poder, os primeiros a sofrer são justamente os órgãos de controle da corrupção”
O que explica, depois de tantos passos adiante, o país passar por retrocessos?
Acredito que os retrocessos resultem de vários fatores. Em primeiro lugar, uma lição central de quem acompanha a luta contra a corrupção ao redor do mundo e ao longo da história é que a corrupção sempre contra-ataca. A reação vem, principalmente, quando há um arrefecimento do apoio popular. É aí que começam os movimentos contrários. Muitas vezes coordenadas em várias frentes, essas ações buscam não apenas “estancar a sangria”, mas garantir que ela não volte a ocorrer, com o enfraquecimento de marcos legais e institucionais. Também é comum acontecer uma retaliação aos agentes, para que outros entendam o recado de que não devem se atrever. Em segundo lugar, apesar de a Lava Jato ter colocado o tema do combate à corrupção no topo da agenda nacional durante os últimos anos, jamais fomos capazes de pautar uma discussão séria sobre nosso quadro de corrupção sistêmica e suas causas, fazendo avançar reformas legais e institucionais para tratar a raiz do problema. O Brasil perdeu grandes oportunidades, dando atenção demais ao japonês da Polícia Federal e de menos às políticas públicas anticorrupção. Em terceiro lugar, a pauta anticorrupção no Brasil foi sequestrada pelo bolsonarismo, que, sem qualquer lastro de realizações passadas ou propostas para o futuro, conseguiu convencer boa parte do eleitorado de que empunharia essa bandeira. Mas, no mundo inteiro, quando governos populistas e autoritários assumem o poder, os primeiros a sofrer são justamente os órgãos de controle da corrupção, já que por definição são limitadores do poder de ocasião. E é exatamente o que estamos vendo acontecer aqui.

A Lava Jato também errou?
Não se pode negar que a Lava Jato também cometeu erros e alguns deles, graves. Todos os erros passíveis de correção deveriam ser corrigidos, assim como os acertos, preservados. O país deveria fazer um balanço dessa experiência histórica, buscando o aprimoramento. Mas, infelizmente, em um contexto de tantos interesses poderosos confrontados, cada erro é muito mais munição para o contra-ataque do que lição para o progresso.

O Judiciário está falhando?
O Judiciário não está descumprindo o propósito real a que, historicamente, ele serve: legitimar e garantir ordem ao patrimonialismo brasileiro. Isto é, dar ares de direito aos privilégios, à impunidade e à inadimplência da elite e garantir a segurança do sistema, impondo a força bruta sobre quaisquer ameaças vindas do andar de baixo. Claro que existem muitos agentes públicos comprometidos e dedicados verdadeiramente à justiça, talvez até a maioria, mas isso até hoje não foi capaz de alterar as estruturas corruptas do Judiciário. Nenhum outro Poder chega perto dos privilégios obscenos de que desfrutam os membros do Judiciário, com salários de marajás, férias abusivas, pouquíssima transparência e responsabilização pelos atos. Não é à toa também que ali está uma fronteira que a luta contra a corrupção até hoje não conseguiu superar no Brasil.

As instituições estão se rendendo ao velho establishment político?
Acredito que as instituições brasileiras nunca deixaram realmente de ser ocupadas pelo velho establishment político e econômico. Ou alguém acha que a composição de nossos tribunais, da diretoria das nossas estatais ou do Banco Central tem a cara da nossa gente? O mais importante avanço na luta contra a corrupção ocorre quando um país consegue reverter o domínio oligárquico do estado — ou seja, realmente democratizá-lo, torná-lo acessível aos grupos historicamente excluídos dos espaços de decisão e de poder. Ao mesmo tempo que desaloja as velhas raposas que, por gerações, institucionalizaram a corrupção, essa reversão também torna o estado mais conectado à realidade e orientado ao interesse público. E essa transformação não ocorre em lugar nenhum de cima para baixo, é sempre de baixo para cima, É o fortalecimento da cidadania que transforma o estado. Os países com menores índices de percepção da corrupção no mundo, os nórdicos, refletem exatamente isso.

Que paralelos é possível traçar com outros países que avançaram e depois retrocederam?
Existem estudos que comparam experiências de combate à corrupção a um tipo de tratamento de choque ou com acupuntura. Ou seja, grandes operações anticorrupção ou reformas radicais ilustrariam o primeiro tipo, enquanto avanços institucionais e legais menores, mas continuados, seriam do segundo modelo. Embora o tratamento de choque seja útil para, por exemplo, desestabilizar pactos oligárquicos que estruturam os grandes esquemas de corrupção e a captura do estado, parece ser mais comum que retrocessos ocorram neste tipo de abordagem. Em primeiro lugar, porque não se está atacando a causa, mas o sintoma. Em segundo lugar, a corrupção sempre contra-ataca e quando são muitos e poderosos os interesses confrontados, a reação tende a ser implacável. Obviamente, não há ciência exata aqui. Os contextos têm muitas particularidades e os modelos podem ser combinados.

Reprodução“O estrago que Bolsonaro já causou e ainda pode causar é muito maior”
Estamos passando pela mesma experiência da Itália no período posterior à Operação Mãos Limpas?
Em muitos aspectos, as experiências se espelham, mas também há diferenças importantes. Em ambos os casos, as revelações da promiscuidade entre as estruturas partidárias, o estado e setores do mercado abalaram profundamente o sistema político e abriram espaço para o populismo mais rasteiro. No caso da Itália, Silvio Berlusconi era um bufão corrupto que envergonhou seu país diante do mundo e causou grandes prejuízos políticos e econômicos. Mas o caso brasileiro é mais grave. É a combinação do populismo com a corrupção e o autoritarismo, em um contexto institucional muito mais frágil. O estrago que Bolsonaro já causou e ainda pode causar é muito maior.

O Congresso agora trabalha para revisar leis que vinham sendo usadas com sucesso para combater a corrupção e os desvios, como a lei de lavagem de dinheiro e a lei de improbidade administrativa. Há um processo em curso de desmonte do aparato legal?
Ambas as leis, a de lavagem de dinheiro e a de improbidade administrativa, têm efetivamente pontos a serem aprimorados. Principalmente a lei de improbidade administrativa que, embora seja uma legislação muito importante para o combate à corrupção, também tem sido utilizada de forma abusiva, causando grandes injustiças a servidores públicos que têm que atuar em ambientes disfuncionais e de grande insegurança jurídica. Se tivéssemos um sistema judiciário que neutralizasse esses abusos de maneira eficiente, isso não seria um grande problema. Mas evidentemente não é o que temos.

Pode existir um empenho bem-intencionado por parte dos parlamentares, então?
Se confiássemos que nossos congressistas estivessem empenhados em buscar melhorias nas legislações anticorrupção, não haveria qualquer preocupação em debater as reformas dessas duas leis e outras necessárias. Mas, evidentemente, não é o cenário que temos. Ao contrário, temos um Congresso com centenas de seus membros investigados e hoje uma de suas casas é presidida por um político condenado em duas instâncias, que pôde assumir seu mandato apenas por força de uma liminar que neutralizou o filtro da ficha limpa. Nesse ambiente, todo cuidado é pouco.

O que pode acontecer com a posição do Brasil no ranking da Transparência sobre percepção da corrupção?
Historicamente, o desempenho do Brasil no Índice de Percepção da Corrupção é relativamente estável, já que normalmente oscila dentro do intervalo de confiança na escala de 0 a 100, em que quanto menor a pontuação, maior a percepção de corrupção. Em 2014, o Brasil atingiu seu melhor resultado nos últimos anos, 43 pontos. No entanto, com o início da Operação Lava Jato naquele mesmo ano, a pontuação caiu e se firmou em um patamar bastante inferior nos anos seguintes: o país alcançou 38 pontos em 2015 e com pequenas variações se manteve neste patamar muito ruim até 2020. É relativamente comum que países que começam a confrontar o problema da corrupção de maneira mais contundente sofram como efeito de curto prazo uma piora da percepção da corrupção, pela simples razão de que ela se torna mais visível. Mas é de se esperar também que nos países que persistem neste esforço e, principalmente, começam a atacar as raízes do problema, ocorra em determinado momento uma inflexão da curva e o início de uma trajetória positiva, de menor percepção de corrupção. Infelizmente, não é algo provável de ocorrer nos próximos resultados do Brasil, pois estamos falhando em ambos os aspectos: em persistir nos esforços e ainda menos de buscar tratar as causas do problema.

Alguma coisa vai ficar da Lava Jato? O quê?
O principal que deveria ficar seriam as lições desse evento histórico em um processo sóbrio de depuração e análise. Embora isso seja quase impossível no momento atual, com o debate público tão contaminado de paixões, interesses escusos e disputas de poder, talvez haja condições para fazê-lo ium pouco adiante. Compreender bem o sistema de macrocorrupção que a Lava Jato revelou, em detalhes, no Brasil e em mais de uma dezena de países, é fundamental para tratarmos das causas desse problema terrível. Também é essencial estudar a própria operação, o que funcionou e o que não funcionou e, antes disso, quais foram as condicionantes que permitiram que algo como a Lava Jato acontecesse no Brasil e não em outros países com graus semelhantes de desenvolvimento. Tudo isso tem muito valor para a luta contra a corrupção não só no Brasil, mas no mundo. A Lava Jato também foi uma mudança de paradigma para a sociedade brasileira e alguns efeitos devem perdurar. Talvez o principal e mais importante foi desnaturalizar a impunidade de poderosos. Apesar dos muitos reveses, a sociedade viu pela primeira vez a lei valer também para o andar de cima. Saber que a impunidade da elite corrupta não é um fato imutável da natureza muda a expectativa da sociedade com respeito à lei. Por outro lado, todos esses anos de Lava Jato ajudaram a reforçar uma noção popular de que a luta contra a corrupção passa prioritariamente pela via penal, pelas prisões. Acabar com a impunidade é importante, não há dúvida, mas país nenhum no mundo realmente avançou no combate à corrupção apenas por essa via. Esta luta se vence com melhores leis, melhores instituições e, principalmente, uma cidadania ativa e um amplo consenso social sobre o valor da integridade.

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