Adriano Machado/CrusoéAraújo: responsabilizado pela falta de insumos e vacinas após brigas com outros países

De costas para o mundo

A saída de Ernesto Araújo do Itamaraty pode trazer algum alento, mas a imagem do Brasil no exterior está arruinada – e pode piorar ainda mais
02.04.21

Em discurso na cerimônia de formatura do Instituto Rio Branco, a escola de formação de diplomatas, o então ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, gabou-se do status de pária internacional. “Sim, o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”, disse ele há apenas cinco meses. “Talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e dos semicorruptos.” Araújo também atacou o que chamou de “covidismo”, que ele disse se tratar de um pretexto para controlar todas as relações sociais e econômicas do planeta.

Com mais de 320 mil brasileiros na conta de mortos da pandemia, com um ritmo de óbitos que atualmente representa um terço das vítimas fatais do vírus no mundo, o Brasil está isolado diplomaticamente — e esse isolamento de que se vangloriou Araújo, somado ao seu descaso com a pandemia, terminou por deixá-lo como um dos maiores responsáveis, juntamente com Jair Bolsonaro, pela falta de vacinas e pelos atrasos na entrega de imunizantes da China e da Índia. Na carta de demissão que enviou ao presidente, a quem chamou de “querido Chefe”, Araújo culpou “interesses escusos nacionais e internacionais” pela sua saída. O posto foi assumido pelo diplomata Carlos Alberto França, de quem se espera uma gestão mais racional.

Ernesto Araújo sempre se mostrou mais interessado por temas que nada tinham a ver com a pandemia. Ele simplesmente não tratou a questão das vacinas como prioridade até o começo de 2021, quando a pressão da opinião pública cresceu drasticamente. Basta abrir a conta do Twitter de Araújo para constatar seu total desinteresse pelos temas mais urgentes da sociedade brasileira”, diz o cientista político Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap. A inapetência do agora ex-chanceler levou o Congresso Nacional a agir por conta própria na tentativa de dar vazão aos pedidos desesperados de socorro feitos por prefeitos, governadores e empresários. Em dois momentos, parlamentares assumiram as atribuições do Itamaraty. Em meados de março, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, redigiu uma carta à vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, pedindo vacinas que estão estocadas e ainda sem previsão de uso no país. Dias depois, foi aprovada uma moção de apelo à comunidade internacional para tentar viabilizar um número maior de doses. O pedido foi enviado para os países do G20, para a ONU e para a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE.

Evidentemente, cabe ao Executivo, como titular das relações exteriores, manter o contato com representantes de outros países, em nível diplomático ou governamental. O Legislativo só começou a ocupar esse espaço porque se criou um enorme vácuo. Isso aconteceu antes, com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, e agora segue com Rodrigo Pacheco no Senado”, diz Dorival Guimarães Pereira Jr., professor de relações internacionais do Ibmec, em Belo Horizonte.

Na última semana, o governo de Joe Biden enviou 2,7 milhões de vacinas da AstraZeneca para o México, após um acordo bilateral assinado com o presidente Andrés Manuel López Obrador. O Canadá terá direito a uma cota de 1,5 milhão. O Brasil não ganhou vacinas, mas recebeu insumos, equipamentos de saúde, ventiladores pulmonares e equipamentos de proteção individual. As tratativas foram feitas pelo embaixador americano em Brasília, Todd Chapman. Em postagens nas redes sociais, Chapman fez referências ao novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ao da Câmara, Arthur Lira, e a diversos governadores. O Itamaraty praticamente não aparece. O mal-estar vem desde a eleição americana de novembro, quando os seguidores do ex-presidente Donald Trump contestaram a vitória de Joe Biden e o Planalto demorou para reconhecer o triunfo do democrata.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéCarlos França, o novo chanceler: mudança de forma
Em 7 de janeiro, um dia após uma turba trumpista invadir o Capitólio para impedir a aprovação dos votos para presidente pelo Colégio Eleitoral, Araújo publicou nas redes sociais uma mensagem dizendo ser necessário “reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral“. Sem qualquer evidência, ele falou em possíveis infiltrados na ação. Também fez uma defesa dos invasores: “Há que parar de chamar ‘fascistas’ a cidadãos de bem quando se manifestam contra elementos do sistema político ou integrantes das instituições”. A intromissão de Araújo em questões domésticas americanas provocou uma repreensão dura do senador Bob Menéndez, que também é do Partido Democrata, como Joe Biden, e lidera o Comitê de Relações Exteriores do Senado. Em carta dirigida ao presidente Jair Bolsonaro, em fevereiro, Menéndez falou sobre a invasão do Capitólio: “Esses acontecimentos foram atos de terrorismo doméstico, que resultaram em várias mortes e não foram, como o ministro Araújo alegou, atos de ‘cidadãos de bem’. O ministro Araújo está essencialmente priorizando o relacionamento com uma facção restrita e radical do espectro político americano”.

Com equívocos em série, Araújo foi responsabilizado diretamente pelo fato de o Brasil ainda não ter recebido vacinas dos Estados Unidos. “Ernesto Araújo estava sendo visto com muito ceticismo pelo governo Biden. Não acho que alguém na atual administração esteja chorando por sua saída”, diz o analista político americano Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quarterly, especializada em política, negócios e cultura nas Américas. “Mas os Estados Unidos só deram vacinas para os vizinhos próximos. Como se trata de uma democracia, não é possível distribuir doses pelo mundo sem enfrentar uma resistência por parte da opinião pública. China e Rússia podem fazer isso à vontade porque são países autoritários”, pondera Winter.

Além de amargar a relação com os Estados Unidos, Araújo também desagradou a China, a principal fornecedora do insumo farmacêutico necessário para a produção de vacinas pelo Instituto Butantan e pela Fiocruz. As entregas sofreram atrasos constantes enquanto o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, entrava em sucessivos atritos com Araújo. Depois que o deputado federal Eduardo Bolsonaro culpou a China pela aparição do vírus, em março de 2020, Araújo tomou partido do filho do presidente e os dois representantes diplomáticos ficaram sem se falar por dez meses. Um mês após a confusão, em artigo publicado na internet, Araújo se referiu ao coronavírus da Covid como “comunavírus”. O chanceler ainda convenceu Bolsonaro a pedir que o regime chinês trocasse o seu embaixador no Brasil. O pedido foi tratado com indiferença.

O estopim que levou à saída de Araújo também passa pela briga com Pequim. O ex-ministro insinuou que a senadora Kátia Abreu o tinha pressionado a favorecer o lobby chinês no leilão da tecnologia 5G. A senadora, presidente da Comissão de Relações Exteriores, pediu a cabeça do então chanceler por meio uma nota na qual o chamou de marginal: “O Brasil não pode mais continuar tendo, perante o mundo, a face de um marginal. Alguém que insiste em viver à margem da boa diplomacia, à margem da verdade dos fatos, à margem do equilíbrio e à margem do respeito às instituições“. Ernesto Araújo também demonstrou inépcia ao lidar com a Índia, outro país essencial no fornecimento de insumos para vacinas.

A mera substituição de Araújo por Carlos Alberto França já comporta algumas boas notícias. O novo ocupante do cargo não é afeito a rompantes ideológicos, não tem um histórico de comprar brigas com outros países e não publica ideias estapafúrdias em um blog pessoal falando de “narcossocialismo”, “multilateralismo antinacional” ou “covidismo”. Discreto, França nunca comandou uma embaixada ou teve um cargo de perfil mais político. Até ser nomeado, ele chefiava o cerimonial da Presidência da República. À frente do Itamaraty, espera-se que ele peça ajuda aos diplomatas mais experientes, atitude que Araújo se recusava a adotar. O reparo é que França seguirá sob a influência de Eduardo Bolsonaro e de Filipe Martins, que continua como assessor internacional da Presidência, apesar do gesto supremacista feito durante a audiência de Araújo no Senado. Como os dois chancelaram a indicação do novo ministro, é de se esperar que sua autonomia será relativa.

U.S. Department of StateU.S. Department of StateXi Jinping, presidente da China: atraso na entrega de insumos
A troca no Itamaraty indica uma mudança de forma, mas não de conteúdo. Teremos menos brigas e discursos, mas as ideias serão as mesmas. É uma mudança similar com a que tivemos recentemente em outras áreas. A saída de Abraham Weintraub acalmou o clima no Ministério da Educação, mas não retirou da pauta as escolas cívico-militares ou os cortes no orçamento da pasta”, diz Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional comparada na Universidade Federal de Minas Gerais.

Mais importante, França obedecerá sem discussão as ordens do presidente, que é quem define a política externa – e Bolsonaro já deu fartas demonstrações de que continua o mesmo. A imagem internacional do Brasil, assim, permanecerá manchada, tendo o presidente como seu principal símbolo. “Não basta mudar de ministro. A recuperação da credibilidade nas relações exteriores do Brasil depende de uma mudança radical da política externa do presidente Jair Bolsonaro. Ele produziu danos profundos à imagem do Brasil no exterior ao se aliar não aos Estados Unidos, mas à figura de Donald Trump. Trump demonstrava o mesmo desprezo à democracia, ao estado de direito, à atuação da sociedade civil e à liberdade de imprensa”, diz o venezuelano José Miguel Vivanco, diretor da divisão das Américas da ONG Human Rights Watch.

O mundo hoje vê o Brasil não apenas com piedade por causa da média de 3 mil mortes diárias por coronavírus, mas também com medo. O país já foi definido como uma ameaça global pela Organização Mundial de Saúde. A disseminação descontrolada da doença em Manaus e o alto número de novos casos por dia levou ao surgimento da variante P1. Segundo pesquisadores do Grupo Observatório COVID-19 BR, trata-se de uma cepa mais facilmente transmissível, ainda que não seja comprovadamente mais letal. Seu perigo principal é que, ao comprometer a capacidade do sistema de saúde, o número de mortes aumenta exponencialmente. Mais de cem países bloquearam a entrada de brasileiros para evitar o contágio pela variante.

O Brasil, até disso, está sendo visto como ameaça autoritária. Com a troca do ministro da Defesa e dos três comandantes das Forças Armadas, cresceu a preocupação com as atitudes do presidente. Bolsonaro, acreditam alguns analistas, poderia influenciar outros países da América Latina a tomar um mau caminho. “O que os americanos aprenderam com a invasão do Capitólio no início de 2021 é que mesmo democracias que parecem fortes podem ser frágeis. Vimos isso aqui nos Estados Unidos. A democracia mais velha do mundo, com a mesma Constituição desde o século XVIII, chegou muito perto de entrar em uma aventura autoritária”, diz o analista político Brian Winter. “O medo é que Bolsonaro, que tem na ditadura militar a espinha dorsal de sua ideologia, possa fazer no Brasil o que Trump não conseguiu fazer nos Estados Unidos.” Será preciso fazer muito para tirar o país da condição de pária.

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